Matsés
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- AM 1700 (CTI, 2016)
- Peru 2500 (CTI, 2016)
- Família linguística
- Pano
Os Matsés, também conhecidos como Mayoruna, habitam a região de fronteira Brasil-Peru. Suas comunidades estão distribuídas ao longo da bacia do rio Javari, no extremo oeste da Amazônia brasileira, e, no Brasil, vivem na TI Vale do Javari junto com outros povos falantes de línguas das famílias Pano e Katukina. Guerras empreendidas pelos Matsés no século passado e a incorporação dos cativos de outros grupos indígenas da região fizeram com que se tornassem o mais numeroso dos povos Pano setentrionais.
Exímios caçadores, transitam por extensas áreas em expedições de caça e pesca e usam o conhecimento dos caminhos da floresta não só para defender seu território, como também para manejar os recursos. Alternando os sítios de caça, pesca e plantação de roças, os Matsés se previnem do esgotamento dos solos e dos animais, mesmo mantendo comunidades relativamente fixas nas margens dos rios, e assim garantem a ocupação e vigilância de suas terras. Nos últimos anos, os Matsés têm enfrentado a perda de familiares por causa de doenças decorrentes do precário atendimento à saúde na região.
Nomes e língua
A palavra matses, na língua indígena, é polissêmica. Pode denotar o povo que conhecemos por este nome, por oposição a outros (esses chamados de maiu ou matses utsi); qualquer povo indígena, por oposição aos não-indígenas (estes chamados chotac); ou “gente”, por oposição a outros seres. Matses pode significar ainda o grupo de co-residentes ou os parentes mais próximos do falante, bem como se referir ao conjunto dos tios maternos e maridos das tias paternas (nesse caso, precedida pela partícula cun, que indica posse). No Peru, a palavra é usada como etnônimo. No Brasil, os Matsés são também conhecidos como Mayoruna.
Mayoruna é um termo de origem quechua (mayu = rio; runa = gente), usado a partir do século XVII por colonizadores e missionários para se referirem a grupos que habitavam a região do baixo Ucayali, alto Solimões e Javari (Erikson, 1992). Através dos documentos elaborados por missionários e outros a serviço da conquista da região, e até o início do século XX, não se pode aferir muito sobre tais grupos. Comparações lexicais entre listas de palavras “Mayoruna” e “Maxuruna” coletadas por Castelnau (1851), Martius (1867) e Spix & Martius (1831) e do Matsés atual apontam para a proximidade destas línguas e para a possibilidade de pertencerem a um mesmo subconjunto dentro da família Pano (Fleck, 2003). No entanto, a proximidade lingüística não é suficiente para atribuirmos continuidade cultural ou histórica entre os Mayoruna dos viajantes oitocentistas e os Matsés/Mayoruna atuais.
Os Matsés são o mais numeroso dos grupos atuais que comporiam um subconjunto dentro dos Pano Setentrionais (Erikson, 1992). A eles se somariam os Matis, Kulina-Pano, Maya, Korubo, e possivelmente outros que evitam contato permanente com os não-índios. Além de falarem línguas inteligíveis entre si, esses grupos compartilhariam traços culturais, como o uso da zarabatana, técnicas de caça específicas, metades patrilineares, entre outros. Mas, para além de marcadores de uma suposta identidade comum, o que justificaria tratar tais povos em conjunto seria a afirmação, pelos próprios Matsés, de que eles seriam mais próximos, por “falarem a mesma língua” ou reconhecerem neles exemplos “de como viviam os nossos antigos”.
Com exceção dos Matsés e Matis, sobre os quais há estudos etnológicos, pouco sabemos sobre esses povos, tanto no que concerne a suas línguas, como cosmologia ou organização social. Quase toda a população dos Kulina-Pano vive em apenas uma aldeia no igarapé Pedro Lopes, tributário do Curuçá. Há ainda alguns Kulina-Pano casados com Matsés e vivendo entre eles, principalmente nas aldeias Trinta e Um (no alto Javari) e Nova Esperança (no rio Pardo). Um pequeno grupo de 25 Korubo (entre adultos e crianças) foi contatado em 1996 na confluência dos rios Ituí e Itacoaí. A Coordenação de Índios Isolados da FUNAI mantém nesse local uma base de vigilância da Frente de Proteção Etno-Ambiental Vale do Javari, e próxima a ela vive esse grupo de Korubo. O grupo denominado Maya (ou “arredios do Quixito”) atualmente encontra-se em “isolamento voluntário”.
A população Matsés é notavelmente numerosa perto de todos os outros povos Pano Setentrionais mais próximos linguística e culturalmente, o que pode ser compreendido pela atividade guerreira empreendida pelos Matsés no último século.
Situação lingüística
Os Matsés que vivem no Brasil são em sua maioria monolíngues, as crianças que crescem nas aldeias são educadas exclusivamente em língua indígena. Apenas aqueles que trabalharam ou estudaram nas cidades peruanas ou brasileiras do entorno falam fluentemente português e espanhol.
Localização e população
Para determinar a área em que vivem os Matsés hoje é necessário considerar, além das comunidades e roças utilizadas cotidianamente, o vasto território em que transitam para realizar expedições de caça e pesca; as antigas roças e assentamentos, que podem ser reocupados, e os quais visitam para colher pupunha; as casas que algumas famílias mantêm em roças dispersas, nas quais habitam durante algumas semanas ou meses a cada ano, e até mesmo casas em cidades brasileiras e peruanas, como Angamos, Palmeiras do Javari, Atalaia do Norte e Tabatinga.
As comunidades matsés se localizam na bacia do Javari, rio que constitui em toda sua extensão a fronteira Brasil-Peru, no extremo oeste da Amazônia brasileira. No Brasil, habitam a Terra Indígena Vale do Javari, no sudoeste do estado do Amazonas. Nela vivem, além dos Matsés, os Matis, os Kulina-Pano, os Korubo, os Marubo (todos da família Páno) e os Kanamari (família Katukina); além de povos isolados (ver mapa da TI Vale do Javari).
No Vale do Javari, os Matsés estão distribuídos em oito comunidades no rio homônimo, no igarapé Lobo, e nos rios Curuçá e Pardo. Há também uma comunidade localizada fora da Terra Indígena, perto do Pelotão de Fronteira Palmeiras do Javari, onde vivem 90 pessoas [dados de 2008]. De acordo com censos da Funasa de 2007, a população total de Matsés no Brasil era de 1.143 pessoas.
No Peru, segundo Matlock (apud Fleck, 2003), a população atingia 1.314 pessoas no ano de 1998. Em 2003, segundo Fleck (2003), havia 14 comunidades matsés nesse país. A maioria das comunidades está localizada na reserva indígena, que possui 452.732 hectares. A terra foi titulada “Comunidad Nativa Matsés”, em 1993, e compreende o triângulo formado pelo Gálvez quando deságua no alto Javari, e tem como limite sul uma linha que liga os dois rios, passando pela cabeceira do Choba, que fica entre eles.
A mobilidade de famílias entre as aldeias é grande, inclusive na travessia da fronteira. Assim, os dados da população Matsés em cada país são dificilmente exatos.
Dados populacionais anteriores
Os dados sobre a população Matsés no Peru, mais antigos e seguros, são de 1976 (Romanoff, 1984). Eram 599 no total. Destes, 508 viviam no povoamento nas proximidades do alto igarapé Choba, junto à base da missão estabelecida desde 1969 pelo SIL; 44 em um povoamento na boca deste mesmo igarapé; e 7 residiam numa casa no povoado de Angamos, localizado na desembocadura do Gálvez no Javari.
Em 1984, havia entre 800 a 1.100 pessoas: 55% vivia na margem dos rios Gálvez, alto e médio Javari; o restante no interflúvio Gálvez-Choba, em comunidades no alto Tapiche, rio Blanco, e nos povoados Requena e Jenaro Herrera, no rio Ucayali (Calixto, 1984: 16).
No Brasil, os números publicados mais antigos são de 1980: havia 337 Matsés. Destes, 86 viviam em 10 casas no igarapé Lobo; 127 na aldeia Trinta e Um (alto Javari) em 22 casas; 32 pessoas em uma maloca na aldeia no igarapé Ituxi; e 92 na aldeia Lameirão (baixo Javari). Para este ano há ainda registros de um grupo que vivia no alto Lobo, mas não mantinha contato com os brasileiros. (Melatti, 1981).
Em 1985, a equipe da “Campanha Javari” registra no Brasil 483 Matsés, vivendo nas comunidades Lameirão (113), Trinta e Um (173), Lobo (107), Santa Sofia (35), Ituxi (42), e 13 fora das comunidades. (Campanha Javari, 1985: 17).
No relatório de identificação do Vale do Javari, Coutinho reporta, em 1995, 651 Matsés no território brasileiro: 308 em Trinta e Um; 286 em Lobo; 88 em Lameirão; 42 em São Raimundo, e 27 em Palmeiras do Javari (Coutinho Jr., 1998).
Formação do povo Matsés e histórico do contato
Período de guerras
Assim como os Marubo, a população Matsés hoje é resultado de uma composição de vários povos que antes habitavam malocas distintas e nem sempre falavam línguas mutuamente inteligíveis. A formação do grupo que vem se constituindo como uma “etnia” e definindo-se como “Matsés” deu-se principalmente pela sucessiva incorporação de cativos (principalmente mulheres e crianças) de outros grupos da região.
Ao longo do século XX, até a década de 60, os Matsés empreenderam ataques a diferentes malocas ou grupos, muitas vezes falantes de línguas Pano. Nestes ataques, a prática era de exterminar os homens e raptar mulheres e crianças, que eram incorporadas às famílias dos guerreiros como esposas e filhos.
A poligamia era associada à captura de mulheres; desta maneira, os Matsés foram tornando-se um grupo de famílias cada vez mais numerosas, compostas por pais Matsés e mães “estrangeiras”. Na época de sua pesquisa no assentamento do alto Choba (Peru), nos anos de 1974-76, por exemplo, Romanoff registrou a impressionante estatística segundo a qual havia “cativos de no mínimo 10 grupos lingüísticos, incluindo falantes do que pareciam ser dialetos do Matsés (mutuamente compreensíveis, mas com alguns vocábulos distintos), falantes de outras línguas ameríndias, falantes de espanhol e português”. No total, o antropólogo cita 74 cativos, e afirma que “dos dez grupos, os Matsés extinguiram ao menos quatro” (Romanoff, 1984: 69).
Já dados obtidos no Brasil em 1975 fazem referência a duas brasileiras e uma peruana raptadas entre os Matsés do igarapé Lobo (Melatti e Montagner-Melatti, 2005 [1975]). Também há informações de 1980 que registram cinco mulheres Kulina-Pano na aldeia Trinta e Um; uma brasileira, um peruano e uma peruana na aldeia Lameirão (Melatti, 1981: 65).
Ao mesmo tempo em que os Matsés dizem ser um povo “misturado”, orgulhosamente ostentam traços que os diferenciam dos demais povos que conhecem, afirmando o que poderíamos chamar de um modo de vida matsés. A “hegemonia cultural” neles encontrada pelos pesquisadores (Erikson, 1992, 1994; Romanoff, 1984) é de fato notável perante a exogamia exacerbada e o padrão guerreiro mantido pelos Matsés no último século.
Notável, mas tipicamente amazônico: os bens e práticas culturais pelos cativos foram incorporados pelos Matsés, e hoje fazem parte do que define sua especificidade em relação aos outros grupos. Assim, eles atribuem a substituição da zarabatana (ao estilo dos Matis) pelo arco e flecha a um povo que é associado aos atuais Marubo. De forma não muito distinta, os mitos narram como outros bens culturais foram adquiridos de inimigos ou aliados “estrangeiros”: a agricultura, do Mutum; os nomes, do povo da água; os remédios do mato, de um povo que vivia rio abaixo.
Os não-indígenas começam a ser uma parte importante desta dinâmica guerreira por volta da década de 1920, quando intensificam as expedições e ataques às regiões das cabeceiras dos rios Gálvez, Choba, Javari e Curuçá. Um emblema desta época é a aquisição das armas de fogo pelos Matsés, que relatam como sua utilização lhes foi ensinada por uma mulher roubada dos peruanos
Relações com os não-índios
No auge do período da borracha no rio Javari, aproximadamente entre as décadas 1870 e 1920, os Matsés perderam o acesso a este rio, que freqüentavam nas estações secas para coletar nas praias ovos de tracajá e tartaruga. Não há menções a malocas ou grupos que poderiam ser Matsés nos documentos elaborados por aqueles que exploraram o Javari nessa época (Melatti, 1981: 69). Durante este período, os Matsés evitaram conflitos com os brancos, recolhendo-se às áreas de interflúvio, e mantiveram um padrão de dispersão que possibilitou o seu afastamento das frentes seringueiras que subiam os rios (ver Mobilidade dos grupos locais no período de guerras).
Um episódio narrado pelos Matsés que vivem no Brasil conta a primeira vez em que seus antepassados viram uma colocação seringueira. Essa narrativa tem uma estrutura mítica marcada por uma sucessão de equívocos: os Matsés experimentam em suas orelhas os cartuchos pensando que são brincos; os palitos de fósforo usam como enfeites labiais; bebem o leite da borracha pensando ser mingau de mandioca; se assustam com suas imagens num espelho e fogem. Desse “primeiro contato” levaram apenas uma galinha, animal que antes nunca haviam visto.
Conflitos diretos começam a aparecer nos relatos a partir da década de 1920. Em 1926, um peruano que trabalhou no rio Gálvez, entrevistado por Romanoff (Romanoff, 1984), afirmou que não era possível para os patrões seringueiros estabelecer-se no rio Choba por causa dos ataques dos índios.
Tais ataques foram retribuídos com expedições punitivas ou as chamadas “correrias”, em que mulheres e crianças Matsés eram capturadas. Certamente isso acarretou a intensificação das atividades guerreiras matsés. Atualmente alguns velhos contam como foi empreendido por seus avôs um ataque de vingança contra brancos na cidade de Requena. Nestes ataques capturaram mulheres e adquiriram armas de fogo e objetos de metal.
Enquanto isso, as guerras entre os Matsés e outros povos continuavam. No Brasil, em depoimentos colhidos por Melatti e Montagner-Melatti (2005 [1975]) há a referência a um conflito ocorrido em 1933 entre os Marubo da comunidade Maronal, no Curuçá, e os Matsés que viviam no Pardo (citados no relatório como “Mayo” e “Mayoruna”, como eram chamados pelos informantes não-índios). Neste episódio, um Matsés morreu e os Marubo levaram suas mulheres. Segundo esta fonte, este grupo de Matsés vivia na região desde a década de 20 (Melatti, 1981: 69).
A partir da década de 1950, a exploração da borracha na região da fronteira foi sendo substituída ou complementada pela atividade madeireira e pelo comércio de carne e pele de animais da floresta, para abastecer principalmente as cidades da Amazônia peruana.
A expansão madeireira na região coincidiu com a criação do pelotão de fronteira peruano Angamos (1947) e dos pelotões de fronteira brasileiros Estirão do Equador (1958) e Palmeiras do Javari (1965), nas margens do rio Javari. Documentos desse período comprovam a participação do exército peruano e brasileiro em correrias punitivas contra os Matsés, acompanhadas por civis que tiveram parentes mortos pelos índios.
No Brasil, há, por exemplo, o registro de ações de retaliação pelo ataque matsés a madeireiros no igarapé Sacudido em 31 de agosto de 1958. Nesse ocorrido, “3 civis e 59 militares, encontraram e derrotaram 3 malocas indígenas, uma na região entre os igarapés Flecheira [afluente do Curuçá], e Santana [afluente do médio Javari], e duas no rio Negro [afluente do Curuçá]” (Coutinho Jr., 1993). Em 1963, foi realizada uma expedição punitiva do exército brasileiro contra os “Mayoruna”, organizada pelo então comandante do Grupamento de Elementos de Fronteira (GEF), com sede em Manaus.
Por volta de 1960, registram-se novamente momentos da guerra entre os Matsés e Marubo: Matsés raptaram três mulheres marubo que viviam na comunidade Maronal, no Curuçá. Fugiram pelo igarapé Amburus, tributário deste rio, e foram depois perseguidos pelos Marubo, que mataram quatorze Matsés (Melatti e Montagner-Melatti, 2005 [1975]).
Também em 1960 os Matsés que viviam no Curuçá expulsaram seringueiros que trabalhavam neste rio. Na investida, mataram índios chamados Kulina (hoje identificados como Kulina-Pano) que viviam no igarapé Pedro Lopes e estabeleciam relações pacíficas com os seringueiros, que fugiram (Melatti, 1981: 69).
No Peru, Romanoff (1976) cita a expedição punitiva que partiu em 1964 da cidade de Requena em direção ao interflúvio Gálvez-Choba e que foi organizada pelo prefeito e autoridades eclesiásticas da cidade. Chegaram a uma maloca matsés onde foram surpreendidos e atacados. Os feridos foram resgatados por helicópteros da marinha norte-americana. Depois do resgate, aviões peruanos bombardearam o local. Alguns homens e mulheres que hoje vivem no Brasil, e que quando crianças viviam na maloca bombardeada, guardam lembranças impressionantes deste episódio.
Através destes acontecimentos podemos vislumbrar como neste período de guerras intensas não é possível traçar um divisor entre um modo de vida tradicional e um modo de vida depois da chegada dos brancos. A dispersão e guerra estavam em curso muito antes do contato direto com os não-índios e, ao mesmo tempo, os efeitos indiretos da colonização se faziam sentir por meio das epidemias e dos rearranjos territoriais vividos pelos diversos povos nativos da região.
Mas, a partir da década de 1970, o cessar de conflitos armados e a relativa sedentarização, que foram sendo possíveis e realizados gradualmente pela maior parte dos Matsés através do estabelecimento de relações não-belicosas com certos brancos, podem ser interpretados como fatores de grandes mudanças, sentidas assim pelos próprios Matsés.
Chegada da missão (Peru)
Os Matsés são unânimes em afirmar que foi a partir da chegada das missionárias norte-americanas do Summer Institut of Linguistics (SIL), em 1969, que começou o processo definido por eles mesmos de “serem amansados”. No entanto, não devemos nos enganar com a expressão, adotada do inimigo. Seria errôneo entender que o fim dos conflitos armados a partir da convivência com as missionárias seria conseqüência de uma suposta adoção pelos Matsés de uma moralidade cristã, que anulasse a potencialidade da relação conflituosa com os brancos ou outros povos. Sem adotarem completamente a moral cristã (o que é atestado pela dispersão posterior ao primeiro período de aglomeração em torno das missionárias), os Matsés livraram-se dos ataques dos brancos às suas malocas, que obviamente cessaram depois da chegada do SIL, apoiada pelo governo peruano. Dadas as proporções a que chegaram tais ataques (até o ponto de um inacreditável bombardeio), não podemos ignorar que a presença das missionárias na área foi importante para a proteção dos índios. Esse fato, entre outros, possibilitou uma aproximação gradual do grupo contatado por elas (através da prática comum de oferta de bens industrializados, deixados próximos às habitações matsés).
Antes da aproximação decisiva, as duas missionárias estabeleceram, por volta de 1963, os primeiros contatos com falantes da língua Matsés: uma peruana e seu filho, cativos que haviam fugido, e um jovem cativo de outro grupo Pano setentrional, chamado por elas José (ou Joe) - que foi encontrado na margem do Javari, acenando para um barco que passava. Este jovem morou por um ano e meio com as missionárias e em seguida tentou intermediar o contato com o resto do grupo matsés com o qual vivia, mas foi morto por eles. Depois dessa tentativa frustrada de um mediador indígena, as missionárias passaram buscar o contato direto. Elas acamparam nas margens do rio Javari enquanto aviões transmitiam por alto falantes mensagens para as malocas. Depois de um contato inicial amigável, famílias matsés passaram a se estabelecer em torno de uma pista de pouso, próxima ao alto curso do Choba, construída pelos Matsés sob a direção das missionárias (Romanoff, 1984: 54).
Como é comum nos primeiros anos de contato com os não-índios, uma série de epidemias seguiu o estabelecimento no assentamento missionário e o cuidado médico oferecido pelo SIL tornou-se também um atrativo para os grupos que viviam afastados, mas recebiam as notícias (e doenças) dos visitantes provindos de lá. Dizem os Matsés que alguns grupos não aceitaram se aproximar dos brancos, e até hoje vivem em isolamento voluntário.
Durante o período de estadia do antropólogo Romanoff na área, entre 1974 e 1976, a equipe do SIL (as missionárias pioneiras e um casal que se juntou a elas posteriormente) provia atendimento médico e fornecia bens industrializados comprados com a venda dos artesanatos produzidos pelos Matsés. Além dos serviços médicos e comércio, as principais atividades do SIL eram: “investigação lingüística, tradução da Bíblia, evangelização (...), agir de intermediários entre os Matsés e os de fora, e alfabetização”. O antropólogo afirma ainda que os missionários que trabalhavam entre os Matsés tinham um contrato com o Ministério da Educação do Peru, e por isso “também realizavam tarefas administrativas” (1984: 51).
Depois de um período de concentração de malocas em torno da pista de pouso, próxima ao Choba, seguiu-se, ao que parece desde o início da década de 80, uma tendência à dispersão, em que famílias passaram a deixar o assentamento missionário e foram se estabelecer em casas nos rios Gálvez e alto Javari. Nestas comunidades ribeirinhas, as famílias patrilocais extensas (grupos de irmãos, suas mulheres, filhos e suas esposas, filhas não-casadas, e, eventualmente, parentes mais velhos dependentes), passaram a não mais viver em uma mesma maloca, mas em casas separadas por família conjugal (Calixto, 1984: 18).
Contatos pacíficos com a Funai e com o exército (Brasil)
No lado brasileiro, a Funai atua no rio Javari desde 1971, com a implantação da sede no alto Solimões (a Ajudância do Alto Solimões, Ajusol). A chegada da Funai na região se deu no contexto da abertura da rodovia Perimetral Norte.
Por volta de 1974, foi instalado um posto no igarapé Lobo, que mantinha contato com um grupo de Matsés. Em 1975, havia uma frente de atração da Funai na boca do igarapé Lobo, que mantinha contato com três malocas dos “Mayoruna” (Melatti e Montagner-Melatti, 2005 [1975]: 10).
No ano de 1978, o pelotão de fronteira Palmeiras do Javari foi envolvido num conflito entre famílias matsés atendidas pelo posto indígena da Funai. Em 1977, um Matsés que havia deixado sua comunidade no alto Lobo e vivia em Atalaia do Norte, trabalhando como funcionário braçal da Funai, tentou voltar e subir o igarapé, mas foi ameaçado pelo grupo que morava nas malocas no meio do curso. Reuniu seus parentes na maloca do alto e atacou as malocas do médio Lobo, sendo derrotado. Buscou reforços entre os Matsés do Peru e causou a fuga dos inimigos para a confluência do igarapé com o alto Javari.
No ano seguinte, em janeiro, voltou para o igarapé a trabalho, mas foi agredido pelos moradores da boca do Lobo. Retirou-se para sua aldeia original e depois para o lado peruano, novamente trouxe de lá guerreiros para atacar a aldeia da boca do Lobo. Foi confirmada nesse conflito a morte de quatro homens, dois de cada lado (Melatti, 1981: 71). Com medo de sofrer novos ataques de Matsés que viviam no Peru, famílias deixaram sua moradia na boca do Lobo e se refugiaram em Palmeiras do Javari. Apesar dos ataques não se concretizarem (possivelmente pela garantia de proteção do exército brasileiro), essas famílias, impossibilitadas de voltar a suas casas, foram transferidas pelo exército e pela Funai a uma localidade no médio Javari chamada Lameirão (Melatti, 1981: 71).
Durante as décadas de 70, as atividades madeireira e seringueira na região brasileira da bacia do Javari (além de prospecções realizadas pela Petrobrás) continuaram ameaçando a integridade dos nativos da região, principalmente pelo perigo de transmissão de doenças, algumas fatais para os índios.
Em 1975, havia onze seringais no Jaquirana (alto Javari), um no médio Javari, também chamado Lameirão, e dois no rio Pardo (Melatti, 1981: 80). Em 1985, o documento “Campanha Javari” registra mais de 170 madeireiros e mais de 70 seringueiros, além de 11 regatões trabalhando regularmente nos rios Jaquirana (alto Javari) e afluentes, no rio Pardo e igarapé Grande (área da comunidade Lameirão). Está registrado também o trabalho de homens Matsés na extração de madeira e seringa (Campanha Javari, 1986).
O documento “Campanha Javari” deflagrou uma campanha nacional e internacional em favor da demarcação de uma área de proteção para os índios da região. No entanto, somente no ano de 2000 foi realizada a demarcação física da Terra Indígena Vale do Javari e, em 2 de maio de 2001, sua homologação. A retirada de não-indígenas que viviam em toda a área foi feita com sucesso, mas a falta de fiscalização permite ainda hoje que madeireiros, caçadores e pescadores ilegais atuem em certas regiões.
Com a demarcação, a região do Lameirão acabou ficando fora dos limites da Terra Indígena. As famílias que lá viviam mudaram-se para comunidades nas margens dos rios Curuçá e Pardo, onde moram até hoje. Do grupo que permaneceu no igarapé Lobo depois do incidente de 1978, a maior parte continua vivendo nas margens desse igarapé e do alto rio Javari. A última grande mudança deu-se, em 2006, quando mais da metade da população da aldeia Trinta e Um, situada no alto Javari, próxima à boca do Lobo, mudou-se para o rio Pardo devido a várias mortes causadas pela hepatite B.
Mobilidade dos grupos locais no período das guerras
Durante o tempo em que viveram uma época de intensos conflitos, os Matsés mantiveram um padrão de ocupação do território e organização sócio-espacial descrito por Romanoff (1984) como “fissão-fusão”. Este padrão permitiu um relativo sucesso no período de guerras, já que não foram exterminados ou aliciados para o trabalho compulsório pelos brancos, como ocorreu com outros povos da região no século XX.
Neste período, segundo depoimentos de homens hoje de meia idade, que ouviram dos pais as histórias de tais proezas, o território percorrido pelos guerreiros ia desde a área limitada no oeste pelo baixo Ucayali e os tributários orientais do rio Tapiche; atravessando a fronteira Brasil-Peru (rio Javari) e alcançando a leste o rio Ituí.
Já a área de dispersão e agrupamento das famílias, onde construíam as malocas, era centrada na região do Gálvez (afluente da margem esquerda do alto Javari no Peru) até o Curuçá (afluente da margem direita do Javari, no Brasil).
Cada grupo local, que vivia em uma mesma maloca ou aglomerado de malocas, era composto por grupos de irmãos homens, cujos filhos, depois de um período de “serviço pela noiva”, traziam suas esposas oriundas de outras malocas. Diferentemente de outros grupos Pano, como os Kaxinawá, entre os quais uma maloca ou aldeia era idealmente composta em torno de dois cunhados, cujos filhos deveriam casar-se entre si (Kensinger, 1995), o grupo patrilocal Matsés dependia de alianças matrimoniais com outros (ou da captura de mulheres).
Cada maloca era construída no centro da roça comunal. Os grupos locais mantinham várias dessas casas/roças, tipicamente separadas por um ou meio dia de caminhada umas das outras, entre as quais alternavam a moradia ao longo do ano, acompanhando os ciclos de produção. A habitação principal era a casa/roça que estava em seu auge produtivo, no período de maturação das bananas e mandiocas (cerca de um ano e sete meses depois do plantio, respectivamente). As casas/roças secundárias eram habitadas na época do plantio do milho e posteriormente na colheita (Romanoff, 1984: 182). Enquanto o milho crescia, o grupo deixava a nova plantação e retornava à maloca principal. Os homens da metade jaguar (ver Dualismo tsasibo x macubo) eram interditados de ver o milho antes da maturação, pois um simples olhar poderia prejudicar o seu crescimento.
Assim, um mesmo grupo local possuía vários assentamentos habitáveis ao longo do ano e isso permitia não só a dispersão sazonal, como rearranjos no próprio grupo. Nem sempre as famílias que constituíam um assentamento migravam juntas e algumas vezes nesses movimentos, se reagrupavam com outras famílias antes distantes. E assim dava-se o padrão de “fissão-fusão”. A composição e a recomposição dos grupos locais favorecia a dispersão que protegia as mulheres, as crianças e os velhos das retaliações inimigas (Romanoff, 1984: 147).
As roças mais antigas ou aquelas com baixa produção também eram visitadas, principalmente para a coleta dos frutos das palmeiras (como a pupunha e o patauá) e de sua madeira, usada na fabricação das lanças e casas.
Formação das aldeias ou comunidades
O padrão de morada dos Matsés começou a modificar-se depois do estabelecimento das missionárias nas proximidades do alto Choba, no ano de 1969. O que mudou fundamentalmente foi a fixidez deste pólo atrativo que era a missão e a pista de pouso. Esse novo elemento na paisagem era fonte de novidades que os Matsés desejavam, mas exigia deles a permanência num mesmo local para comparecer às reuniões onde ouviam as palavras das missionárias, para receber bens e medicamentos que passaram a necessitar e para ter a proteção contra ataques dos regionais.
Os ciclos de fissão e fusão já descritos (ver Mobilidade dos grupos locais) deram lugar, então, a um assentamento relativamente estável de malocas em torno da base missionária. No entanto, os Matsés não abandonaram o movimento de dispersão. Mantendo malocas mais permanentes no alto Choba, as famílias continuaram vivendo certos períodos do ano em malocas alternativas e depois retornavam ao assentamento missionário. Romanoff fala ainda de um padrão de alteração da moradia em “centro/periferia” (1984: 180).
Este padrão, que alterna a moradia entre comunidades ou aldeias (relativamente mais permanentes e populosas) e roças familiares dispersas, se mantém até hoje. No Brasil e Peru, as famílias matsés vivem em aldeias ou comunidades nas margens dos rios e igarapés, o que lhes permite manter relações e comércio com os brancos, como também roças dispersas, nas quais passam boa parte do ano cuidando da plantação e realizando caçadas e pescarias – que nesses locais isolados resultam em fartura.
Para os Matsés que vivem na Terra Indígena no lado brasileiro, outro fator que influi na escolha da localização das casas/roças dispersas é a vontade de defender o território. O grupo de irmãos, considerados os “caciques” da aldeia Lobo, por exemplo, mantém roças em pontos importantes da fronteira e realiza expedições de vigilância por conta própria. Eles contam que já tiveram que expulsar invasores e que uma de suas casas de apoio foi queimada criminalmente (Matos, 2006).
Malocas
As malocas matsés têm um desenho hexagonal, com um corpo retangular formado por dois lados opostos mais longos. O teto de palha cobre toda a estrutura, deixando duas aberturas de cerca de 1,25 metros de altura. Essas “portas” ficam nos vértices frontal e posterior da maloca, nos extremos de um corredor central que a divide em duas partes. Cada metade é divida por sua vez em pequenos compartimentos separados por esteiras de palha que servem de “paredes”.
Os compartimentos são chamados quënë e abrigam um homem, sua mulher (ou duas) e filhos. Se o homem tem mais esposas, ao lado, no próximo quënë, pode estar outra esposa (geralmente a mais velha) e seus filhos. Em seguida, o irmão desse homem e suas mulheres e filhos e assim sucessivamente. Em cada quënë há um fogo, onde as mulheres preparam a maioria das refeições cotidianas para sua família, que aquece a casa durante a noite. O homem considerado o “dono” (icbo) da maloca (aquele que exortou seus parentes para o trabalho de construção) geralmente dorme com sua mulher e filhos nos compartimentos mais próximos à entrada.
Na abertura principal, ficam localizados os bancos paralelos, feito de troncos inteiriços. O espaço em que descansam os bancos é chamado nantan, onde, de maneira muito formal, sentam-se os homens visitantes, que imediatamente são servidos com o que tiver disponível de comida pelas mulheres que vivem na maloca. As mulheres, mesmo visitantes, não se sentam nesses bancos e comem em pequenas rodas no chão, junto às crianças.
As maiores malocas observadas por Romanoff em 1976, no Peru, chegavam a 35 metros de comprimento e 10 metros de altura, abrigando 100 pessoas. Nestas, o antropólogo observou mais duas portas, localizadas no meio das paredes paralelas que formam a base retangular.
Atualmente, no Brasil, apenas a comunidade Lobo, localizada nas margens do igarapé de mesmo nome, possui uma maloca habitada. Nela vivem um grupo de irmãos que são considerados os “caciques” da aldeia, suas mulheres, filhos e sua mãe viúva. Quase toda noite ou fim de tarde, os homens que vivem nesta mesma aldeia se reúnem no nantan para conversar e tomar rapé depois da refeição. Planejam caçadas, trabalhos coletivos, e trocam as notícias do dia.
Até 2006, havia uma grande maloca na comunidade Trinta e Um, que foi derrubada por estar velha e pelo fato de seus “donos” estarem preparando a mudança para a aldeia Nova Esperança. Esta maloca não era habitada, mas servia como uma “casa dos homens”, principalmente os de meia idade, que no fim do dia lá se reuniam para refeições coletivas seguidas de sessões de rapé. Era também o lugar onde os caciques recebiam visitantes brancos para reuniões (os representantes de ONGs, Funasa, Funai etc.).
A maloca possuía apenas sua estrutura e dois bancos paralelos que ocupavam toda sua extensão (feitos de toras de madeira dispostas em continuidade).
A absoluta maioria das habitações atuais dos Matsés no Brasil foi construída em estilo regional. Cada casa abriga uma família conjugal: um homem, suas mulheres e filhos solteiros. A preferência pela moradia patrilocal se manteve e assim quase todos os homens quando se casam, constroem sua casa de palafita e paxiúba perto ou ao lado da casa de seus pais, e muitas vezes vão buscar suas futuras esposas em aldeias distantes, inclusive no Peru. É comum, e faz parte da etiqueta, que o pretendente, principalmente se é jovem e está realizando seu primeiro casamento, fique um período na casa dos pais da futura mulher, antes de levá-la para sua futura casa.
Atividades de caça e pesca
As atividades de caça são altamente valorizadas pelos Matsés, que se consideram, sobretudo, caçadores dos interflúvios, mesmo vivendo em aldeias nas margens dos rios. As presas cotidianas mais apreciadas são o macaco-preto e os queixadas (cada vez mais difíceis de encontrar), mas os Matsés também caçam anta, macaco-barrigudo, caititu, paca, tatus, veado, jabutis, jacarés, preguiças (estas muito valorizadas quando filhotes como animais domésticos). Caçam também mutum, nambus e várias outras aves do mato. Na estação das secas, matam tracajá e recolhem seus ovos nas praias dos rios para comer. A coleta de ovos de tracajá é uma atividade importante, tanto que os Matsés marcam o período de um ano pelo termo seta, o mesmo que designa o tracajá.
Os caçadores utilizam arco e flechas, armas de fogo e cachorros nas caçadas. Muitas vezes, no entanto, os animais são capturados ou mortos antes que gastem suas flechas ou munição, graças a uma série de armadilhas e técnicas especiais de caça para cada tipo de animal. Assim, a anta pode ser morta por armadilha, os tatus são acuados nas cavidades no chão que fazem para morar e afogados com água. As pacas, com a ajuda dos cachorros, são levadas a pular na curva de um igarapé, lá são cercadas e quando emergem são atingidas por paus. Com amarras especiais prendem as preguiças pelo pescoço e garras, retirando-as das copas das árvores e levando-as vivas para a aldeia.
Mas a característica mais notável das práticas cinegéticas matsés é a participação ativa das mulheres em boa parte das caçadas. Assim como os homens muitas vezes acompanham suas mulheres à roça para buscar mandioca, banana e outros produtos, as mulheres vão caçar com seus maridos. Elas ajudam a encontrar e acuar a caça, participam da perseguição, recuperam flechas que erraram o alvo, atacam os animais com paus afiados ou machados. Muitas vezes as crianças acompanham o casal, e também participam de alguns momentos. Desde pequenas, as crianças são estimuladas a procurar filhotes de presas, tanto para comerem como para servirem de animal doméstico.
A presença de mulheres em certas caçadas, no entanto, não implica que entre os Matsés não há a idéia comum na Amazônia de que há certa incompatibilidade entre as mulheres e a atividade de caçar. A falta de sorte ou habilidade na caça, traduzida pelo termo regional panema, pode ser causada no caçador pelo excesso de relações sexuais. Alguns animais não toleram o cheiro ou presença femininos; assim, quando preparam uma armadilha para uma anta, os homens devem abster-se de relações com suas mulheres. Talvez por isso preferencialmente sejam os homens já velhos que preparam as armadilhas para esse animal (Romanoff, 1984: 172).
Para melhorar a habilidade e o sucesso do caçador, combater a panema, o desânimo ou preguiça de ir caçar, os Matsés utilizam substâncias que tornam o corpo mais forte, duro e limpo. Todas essas substâncias são ligadas ao princípio do amargor (muca), que rege também o poder xamânico (Erikson, 1994).
O veneno do sapo kampo, o rapé feito de folhas de tabaco (nënë), as picadas de formigas tucandeiras e aplicação de sumo de plantas, que permitam aos caçadores visualizarem melhor suas presas, são utilizados de maneira rotineira. Principalmente, o tabaco, consumido diariamente pelos homens Matsés.
Outro conjunto de rituais associados à caça são banhos medicinais que os Matsés aplicam às crianças pequenas para impedir que os animais mortos ou comidos por seus pais prejudiquem sua saúde. As plantas, chamadas neste, são colhidas principalmente pelos homens e mulheres mais velhos, que sabem identificá-las. As folhas são associadas aos diversos tipos de animais. Apenas depois que seus filhos pequenos são banhados com a infusão da planta correta, os pais podem matar ou comer animais de carne forte, como anta e macaco-preto. Ao matar cobras grandes e onças, os pais devem também proteger seus filhos contra o mal que esses espíritos podem causar.
Os homens, mulheres e crianças Matsés pescam nos rios próximos às aldeias nos dias em que não há caça. As famílias realizam ainda pescarias coletivas com veneno (antinte), que dissolvem na água de lagos e igarapés, principalmente na época das secas. Também são comuns as expedições de caça e pesca em que passam vários dias em acampamentos na floresta. Chamam esse movimento de capuec, caminhar, e apreciam muito o tempo em que ficam na mata.
Dualismo tsasibo x macubo
Os Matsés se dividem entre aqueles que são tsasibo e os que são macubo. Os Tsasibo (“duro” + coletivizador) são também chamados bëdibo (jaguar + col.), shëctembo (porco do mato + col.). Os macubo (larva + col.) são também shëctenamëbo ou aiabo (queixada + col.). Os animais que andam em bando são caracteristicamente macubo, e os animais solitários e os mais ferozes (de carne escura e dura) são tsasibo.
Através das descrições feitas pelos Matsés do que é ser macubo ou tsasibo, podemos dizer que as metades parecem ter um rendimento ritual muito maior que político. Antes que denotar o pertencimento a uma classe ou subgrupo que comporia com outras um todo coerente, os termos nos remetem a maneiras de ser e relacionar com os outros homens, espíritos e animais.
Assim, por exemplo, os homens macubo são aqueles que têm relações privilegiadas com as larvas que se alimentam do milho e que podem destruir uma plantação caso não sejam retiradas. Somente os macubo podem realizar a retirada das larvas, pois elas são “seus parentes”. Se os tsasibo tentam fazer a limpeza da plantação, as larvas ao contrário se multiplicam, acabando com o milho.
Os tsasibo, por sua vez, não são molestados pelas onças quando vão caçar, já que as pintas feitas de urucum em suas flechas, semelhantes às que carregam as onças em sua pele, fazem os animais perceberem que são seus “parentes” os que estão caçando, e portanto, não vão atacá-las. Enquanto a pintura corporal mais usada dos tsasibo são as pintas, os macubo usam o padrão se assemelham às pegadas dos queixadas, estilizadas em triângulos opostos pelo vértice, ou traços paralelos que remetem aos macu [larvas].
Desde a formação na barriga da mãe, a criança, seja mulher ou homem, terá marcas corporais herdados do pai. Se a mulher teve relação com homens tsasibo e macubo, a criança pode ter traços de ambas metades. O casamento preferencial de um rapaz é com a filha de seu cucu, ou irmão da mãe, de forma que, sem ser uma regra explícita, os casamentos quase sempre se dão entre homens e mulheres de metades diferentes.
Os cantos de lamento de morte também diferem conforme o morto seja macubo ou tsasibo. Estes são entoados por parentes próximos, a partir do entardecer, podendo durar toda a noite. São cantos muito bonitos e extremamente tristes, executados por uma ou duas pessoas, que evocam as atividades que o cantador e o morto faziam juntos. Um vocabulário especial é utilizado nesses cantos para se referir ao morto e seus parentes, aos animais caçados e aos produtos que eram plantados na roça por ele.
O dualismo matsés ressoa, assim, com aquele encontrado entre outros povos Pano, como entre os Kaxinawá (Kensinger, 1995), mas não funciona como um dispositivo criador de grupos sociais, nem influi diretamente na escolha matrimonial (não há uma exogamia de metades).
Saúde
Como todos os outros povos que vivem na Terra Indígena Vale do Javari, os Matsés não recebem um atendimento de saúde eficiente pelos órgãos oficiais. O Distrito Sanitário Especial Indígena Javari da Funasa é responsável pelo atendimento de saúde na TI desde 1999. Nesses quase dez anos, doenças como malária, verminoses, tuberculose, desnutrição e hepatites não apresentaram qualquer recuo, ao contrário, parecem estar fora do controle.
A falta de estatísticas confiáveis não esconde o fato de que os Matsés vêm sofrendo de doenças que seriam controláveis com vacinação, medicamento e prevenção adequados. As epidemias de malária, por exemplo, com quase todas as aldeias em níveis altíssimos de contaminação, retornam a cada ano, e a falta de medicamentos para o tratamento e de microscópios para o diagnóstico é a realidade na maioria das aldeias.
Mas a maior preocupação dos Matsés hoje é o alto índice de contaminação de hepatite B e Delta, para o qual faltam estatísticas confiáveis. Os Matsés não sabem quantos deles estão contaminados, mas as perdas constantes de jovens, a maioria com menos de 30 anos, dissemina um clima de tristeza e medo. Durante os anos de 2005 e 2006, por exemplo, mais de 15 jovens Matsés morreram devido a complicações hepáticas. No ano de 2007, apenas na aldeia Trinta e Um, oito pessoas morreram, e os Matsés não têm certeza se foi de hepatite, mas reportam que os pacientes sofriam do fígado. Algumas vezes, os falecimentos ocorreram de maneira trágica, pois a hepatite Delta pode matar em poucos dias, e nos momentos finais o paciente sofre com dores insuportáveis e vômitos de sangue. A quantidade de mortes e notícias de contaminação tem levado os Matsés e outros povos do Vale do Javari até a pôr em dúvida a eficácia das vacinas. Outro fato que causa a desconfiança generalizada dos Matsés em relação ao órgão responsável pelo atendimento à saúde é o de que sempre faltam informações claras aos parentes dos pacientes sobre o que exatamente os vitimou.
Apesar de haver registro de mortes por hepatite B entre os Matsés desde pelo menos o final da década de 70 (Melatti, 1981; Campanha Javari, 1986) até hoje, nada de efetivo foi feito pelos órgãos governamentais para evitar a disseminação da doença (Matos & Marubo, 2006).
A equipe do CTI (Centro de Trabalho Indigenista) tem elaborado informes, textos e relatórios nos quais podem ser encontrados dados recentes sobre a grave situação da saúde e das hepatites entre os povos que vivem no Vale do Javari, bem como análises de suas conseqüências (http://www.trabalhoindigenista.org.br/papers.asp#Javari). Há também um relatório elaborado pelo antropólogo Walter Coutinho Jr. (2008), onde estão expostas as estatísticas disponíveis sobre a contaminação na TI Vale do Javari.
Educação escolar
No Brasil, todas as aldeias matsés possuem um professor da própria comunidade, mas nenhum deles possui ainda a formação completa. A Secretaria Estadual de Educação do Amazonas vem realizando cursos de formação de professores indígenas entre os povos do Vale do Javari, mas, devido a dificuldades com a organização, os cursos ocorrem de forma irregular. Apesar de ser uma reivindicação das comunidades matsés, apenas as aldeias Flores e Três José possuem escolas construídas pela prefeitura municipal de Atalaia do Norte. Uma das principais conseqüências da baixa qualidade do ensino escolar na aldeia é o êxodo de estudantes para as cidades do entorno, como Atalaia do Norte, Benjamin Constant e Tabatinga. Muitos Matsés mandam seus filhos ainda crianças para a cidade na esperança de que estudando conseguirão postos de trabalho remunerados.
Com o objetivo de proporcionar melhores condições de trabalho para os professores indígenas, a ONG Centro de Trabalho Indigenista (CTI) oferece, desde 2003, cursos complementares de formação de professores, programas de acompanhamento das escolas das aldeias e promove a elaboração de materiais didáticos. No ano de 2008, será publicado o primeiro livro didático elaborado pelos professores Matsés em parceria com o CTI.
Outras leituras
Para obter mais informações sobre o número de professores, alunos, estudantes indígenas nas cidades do entorno e a situação das escolas na TI Vale do Javari, consulte o diagnóstico produzido pelo Centro de Trabalho Indigenista (2008).
Organização indígena
Em 2009, foi criada a primeira associação matsés, a OGM (Organização Geral dos Mayuruna).
Até então, os Matsés no Brasil não tinham nenhuma associação ou organização indígena própria e faziam parte do Civaja (Conselho Indígena do Vale do Javari) desde sua criação, na campanha da demarcação da TI. Recentemente, esta organização foi renomeada e hoje se chama Univaja. O Civaja, fundado em 1991, sempre foi dirigido pelos Marubo do alto Curuçá. Alguns líderes Matsés participam de todas as assembléias do Conselho, mas muitas vezes reclamavam que ocupavam pouco espaço nas decisões e atividades da organização indígena.
Fontes de informação
- Calixto Méndez, L. Las practicas socio-culturales del uso de la tierra en el grupo etnico Matsés (manuscrito), 1985.
- Cavuscens, S. & Neves, L. J. Povos Indígenas do Vale do Javari. Campanha Javari. CIMI e OPAN, Manaus, 1986.
- Melatti, Júlio Cezar. Povos Indígenas no Brasil, volume 5 (Javari). CEDI, São Paulo, 1981.
- Coutinho Jr., W. Brancos e Barbudos. Universidade de Brasília, 1993. (dissertação de mestrado)
- Coutinho Jr., W. Relatório de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Vale do Javari. FUNAI, Brasília, 1998.
- Coutinho Jr., W. Hepatopatias No Vale Do Javari: Virulento Agravo À Saúde Indígena e Afronta aos Direitos Humanos. Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Amazonas, Manaus, 2008.
- CTI (Centro de Trabalho Indigenista). Diagnóstico sobre a Educação Escolar Indígena na T.I. Vale do Javari. 2008 http://www.trabalhoindigenista.org.br/Docs/Javari_Diagnostico%20Escolar%20_2008.pdf.
- Erikson, P. “Uma singular pluralidade: a etno-história Pano”. In: Historia dos Índios no Brasil. Manuela Carneiro da Cunha (org.), 1992, pp. 239-251.
- Erikson, P. “Los Mayoruna”. In: Guía Etnográfica de la Alta Amazonía, Volumen II . Fernando Santos & Frederica Barclay (orgs.). Quito: FLACSO, 1994, pp. 1-127.
- Fleck, D. A Grammar of Matsés. PhD Thesis. Rice University, 2003.
- Kensinger, K. How real people ought to live. Illinois, Waveland Press, 1995.
- Matos, Beatriz. “Os Mayoruna e a vigilância da fronteira.” In: Beto Ricardo & Fany Ricardo. (Orgs.). Povos Indígenas no Brasil, 2000-2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006, pp. 443-443. www.trabalhoindigenista.org.br/Docs/MatosBA_Os-Mayoruna-e-a-vigilancia-da-fronteira.pdf
- Matos, Beatriz & Marubo, Jorge. “Colapso no Atendimento Provoca Retorno de Epidemias” In: Beto Ricardo & Fany Ricardo. (Orgs.). Povos Indígenas no Brasil, 2000-2005. São Paulo: Instituto Socioambiental, 2006, pp. 444 - 445. http://www.trabalhoindigenista.org.br/Docs/Matos&Marubo;_Javari-Sa%C3%BAde-Colapso%20no%20atendimento%20provoca%20retorno%20de%20epidemias.pdf
- Melatti & Montagner-Melatti. “Relatório sobre os índios Marubo”. In: Série Antropologia 13. Universidade de Brasília. 2005 [1975].
- Romanoff, S. “Informe sobre el uso de la tierra por los Matsés en la selva baja peruana”. In: Amazonia Peruana 1(1): 97-130. CAAP, Lima, 1976.
- Romanoff, S. Matsés Adaptations in the Peruvian Amazon, Ph.D. dissertation, Columbia University, New York, 1984.