De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Piotr Jaxa, 1993

Krikatí

Autodenominação
Kricatijê
Onde estão Quantos são
MA 1031 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística

Os Krĩkati tiveram suas terras invadidas por fazendas de gado desde o século XIX e só tiveram seus direitos territoriais plenamente reconhecidos pelo Estado brasileiro em 2004, depois de décadas de conflitos. Hoje procuram dar curso ao seu modo de vida e visão de mundo característicos dos povos Timbira que habitam essa região.

Nome e população

Krikati desfiando fibras de palmeira. Foto: Gilberto Azanha, 1989.
Krikati desfiando fibras de palmeira. Foto: Gilberto Azanha, 1989.

A autodenominação do grupo é Krĩcatijê, que quer dizer “aqueles da aldeia grande”, denominação esta que lhes é aplicada também pelos demais Timbira. Seus vizinhos imediatos, os Pukopjê, a eles se referem usando o designativo Põcatêgê que significa “os que dominam a chapada“.

Devido à referência comum nas fontes históricas entre os Krĩkati e os Pukopjê, no início do século XIX o total da população dos dois grupos foi estimado por Paula Ribeiro em aproximadamente 2.000 índios. Em 1919 um censo do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) indicou uma população de 273 índios distribuídos entre as aldeias Engenho Novo e Canto da Aldeia.

Foi só a partir dos anos 60 que as populações dos dois grupos começaram a ser indicadas em separado.

Data Fonte Número de índios
1963 SPI 230
1964 JEAN CARTER LAVE 210
1969 DOLORES NEWTON 204
1970 COTRIM / FUNAI 146
1979 MONTAGNER / FUNAI 291
1984 SANTOS 338
1990

FUNAI

420
1996 CTI 487
2005 FUNASA 682

 

Localização e situação das terras

Preparação para a corrida de Toras. Foto: Piotr Jaxa, 1993.
Preparação para a corrida de Toras. Foto: Piotr Jaxa, 1993.

A Terra Indígena Krĩkati está localizada nos municípios maranhenses de Montes Altos e Sítio Novo, a sudoeste do estado. A TI é banhada por rios e córregos das bacias do Tocantins (Lajeado, Arraia, Tapuio, entre outros) e Pindaré/Mearim. Aliás, o primeiro destes importantes rios do Maranhão tem sua cabeceira principal dentro da Terra Indígena.

Em 2005, os Krĩkati habitavam em duas aldeias: São José (a maior e mais antiga) e Raiz, esta fundada poucos meses depois da conclusão da demarcação física da área em 1999. Havia ainda uma aldeia (Cocal) composta por indivíduos guajajara casados com algumas mulheres krĩkati.

Histórico do processo de reconhecimento da TI

Os Krĩkati tiveram seu território declarado como Terra Indígena em 08 de julho de 1992, através da portaria ministerial nº 328. Esta portaria designou como posse indígena um total de 146 mil hectares. Os estudos que delimitaram a TI Krĩkati não foram feitos somente pela Funai, mas por um perito nomeado pelo Juiz Federal da 2ª Vara de São Luis, o qual reconheceu sua validade jurídica ao indeferir o pleito de muitos fazendeiros de Montes Altos, que entraram em juízo em 1981 para tentar o reconhecimento legal de seus títulos de propriedade incidentes na área pleiteada pelos Krĩkati. O Juiz Federal não reconheceu como válidos os títulos dos 120 fazendeiros que propuseram a ação, julgando-a extinta, sem julgamento de mérito.

Os próprios peritos indicados pelos fazendeiros na ação foram forçados a reconhecer que os títulos de propriedade apresentados “... eram de posses sem denominação, localização, limites confrontantes ou área definida – o que determina a nulidade dos registros promovidos pelos herdeiros ou sucessores” (Ação nº 1875/81, 2ª Vara da Justiça Federal do Maranhão). Portanto, o que foi reconhecido em Juízo, além da legitimidade da posse indígena sobre a área proposta pelo perito, é que os pretensos proprietários eram na verdade ocupantes de terras da União Federal cujo usufruto exclusivo caberia somente aos índios Krĩkati, segundo o disposto no artigo nº 231, caput, da Constituição da República. A omissão do Poder Público, ao postergar indefinidamente a demarcação administrativa da área indígena, gerou uma situação explosiva, colocando em risco a sobrevivência física dos índios Krĩkati.

Em 1989, a Funai cadastrou 563 ocupações na área delimitada para os índios Krĩkati, quando se constatou que em 161 delas os ocupantes não moravam no imóvel (o que quer dizer que esses ocupantes não vivem exclusivamente do imóvel ou têm uma outra fonte de renda). E que 256 ocupações foram estabelecidas entre os anos de 1979 e 1989 (após, portanto, a primeira portaria de delimitação) e, destas, ainda um total de 96 foram efetivadas somente nos anos de 1988 e 1989. Portanto, quase 50% das ocupações foram estabelecidas depois do início da ação judicial (o que caracteriza a má-fé destes ocupantes).

Em 1999, a Funai iniciou o processo de desocupação, com o pagamento das benfeitorias, no entanto a extrusão total dos ocupantes ainda não se efetivou. Enquanto isso, os Krĩkati estão recebendo uma terra devastada, com poucas matas, sem caça e sem peixes.

Histórico do contato

... os Krĩkati nunca abandonaram as suas antigas sedes ao leste do Tocantins, onde este rio muda sucessivamente a sua direção de sul/norte para leste/oeste, ao nascente de Imperatriz, no interior”. (Nimuendajú,1946:19).

Todas as referências históricas aos Krĩkati (“Caracati”) os situam exatamente no território descrito por Nimuendajú – Casteneau (1844), Ferreira Gomes (1859) e Marques (1870) assim o fazem. Na sua “Memória sobre as Nações Gentias” escrita em 1819, o major Francisco de Paula Ribeiro menciona de passagem os “Poncatgêz”, grupo cujo território coincide com aquele historicamente ocupado pelos Krĩkati. Juntamente com seus vizinhos Pãrecamekra (que habitavam ao norte do Rio Farinha, Tocantins abaixo), aqueles índios foram atacados em 1814 por uma bandeira organizada em São Pedro de Alcântara e auxiliada pelos Mãcamekra (Paula Ribeiro, 1841). Além da coincidência geográfica, o seu nome coincide com a designação que os Gavião-Pukopjê e demais Timbira dão aos Krĩkati: Põcatejê (“aqueles que dominam a chapada”). Tudo leva a crer que os “Põcatgêz” de Paula Ribeiro seriam na verdade uma subdivisão – mais meridional – dos assim chamados Krĩkati.

Foto: Julio Azcárate, s/d.
Foto: Julio Azcárate, s/d.

Próximos culturais e espacialmente falando, os Krĩkati foram muitas vezes confundidos com os Gavião-Pukopjê. Tal fato explicaria o aparecimento tardio do termo “Caracati” nas fontes históricas e a omissão de Paula Ribeiro que, como qualificou Nimuendajú, “um único erro cometeu esse bom conhecedor dos antigos Timbira”. (op. cit: 8). Ao observarmos o mapa do Maranhão elaborado por Cândido Mendes de Almeida (e publicado em 1868) verifica-se que a região compreendida entre Imperatriz e a Serra da Desordem está anotada com o termo “Is. Gaviões”. Outro fato importante a observar é que, por ser praticamente “desocupada” de fazendas ou vilas, a região acima referida é pouco detalhada geograficamente, induzindo o autor a erros evidentes (por exemplo, a colocação da própria Serra da Desordem). Isso quer dizer que o que o autor citado conhecia de fato à época era que entre Imperatriz e a Serra da Desordem habitavam os índios “Gaviões”.

Aguerridos e belicosos, os assim chamados “Gaviões” (isto é, os Pukopjê e Krĩkati) tornaram infrutíferas as tentativas de colonização da região compreendida entre as cabeceiras do Pindaré e Tocantins (os “Campos do Grajaú”) até 1841. Em 1817 o governo do Maranhão financiaria a instalação de uma colônia militar nas margens do alto rio Grajaú, a Colônia Leopoldina, para “chamar os índios da região à paz” e permitir a colonização. A execução desse projeto ficou a cargo de Francisco Pinto de Magalhães, o “bem sucedido pacificador dos Mâkamekra”, e contou com o apoio de 40 soldados de linha. Porém em 1821 nada mais restava dessa colônia, pois Francisco de Magalhães “(...) viu-se obrigado (...) em presença da ferocidade (dos índios) a abandonar o presídio e retirar-se com dezoito homens”. (Marques; [1870] 1970; 200,362).

Depois da instalação da colônia militar de Santa Thereza (atual Imperatriz do Maranhão) – por ordem e expensas do governo do Pará – e do estabelecimento ali do missionário Manuel Procópio, alguns grupos de índios Timbira começariam a estabelecer contatos pacíficos com o padre:

Os primeiros com que (o padre) tratou foram os Apinayé – mas que infelizmente se rebelaram e abandonando o lugar que habitavam, se internaram. Dirigiu-se então as malocas dos Caracatis, Caracatigês e Gaviões e com mais fortuna pode estritar com elles relações amigáveis, tendo já chegado ao ponto de conseguir que seus Tuxãuas ou chefes, lhe promettessem segui-lo e aldeiarem-se sobre sua direção. Havia o missionário escolhido para assentamento da povoação o lugar denominado – Campo dos Frades – que lhe pareceu ser o mais conveniente” (Aguiar, 1851: 57/58).

Em outro relatório lê-se:

O missionário de Santa Thereza de Tocantins (...) comunicou-me em fins do ano passado (ou seja, em 1853) que nessa accazião haviam descido do Sertão para sua missão quinhentos indígenas; (...) e ultimamente participa haver reunido ahí mais trezentos e dois da tribu Cravaty”. (Rego Barros; 1854; 37).

Estas são as principais referências explícitas aos “Caracati” nas fontes históricas enquanto um grupo diverso dos “Gaviões” – e através delas ficamos sabendo também que os primeiros contatos pacíficos com os “Caracatis” somente teriam acontecido em 1854. Contudo, dos 302 “Caracatis” mencionados acima, poucos ali devem ter permanecido, pois no relatório do seguinte (1855) informa-se que a população indígena da colônia era de apenas 109 índios (Pinto Magalhães, 1855, 26).

O relatório do presidente da província do Maranhão de 1855 não faz referência àquela colônia, mencionando os “índios Gavião e Caracatys (...) existindo na margem esquerda do Rio Grajahú” (Olímpio Machado, 1855: 58).

Em 1856, outro relatório indicava que “o missionário da nova missão de Santa Thereza (...) recorreu ao juiz de direito da comarca de Carolina pedindo força e protecção por causa das ameaças e depredações de gado que cotidianamente erão feitas, segundo sua phrase, por mil arcos que circundão a missão” (Cruz Machado, 1856; 70). O mesmo relatório, entretanto, ao tratar das três diretorias parciais existentes na Vila da Chapada (Grajaú), cita “treze pequenas aldeias de índios ‘Gaviões’ que habitavam a margem do Grajaú” (idem, ibidem; 67/68). Como as duas outras diretorias parciais da Vila da Chapada eram compostas por índios “Matteiros” (Xàcamekra) e “Canellas”, isto nos leva a supor que novamente o autor do relatório englobou sob a denominação “Gaviões” os Pukopjê e Krĩkati.

Este relatório é importante, pois além de citar o número de aldeias dos “Gaviões” na margem esquerda do Grajaú, afirmava que “excepto a (aldeia) do capitão Pompeu, que por muito estranhada não é conhecida, todas as mais comunicão-se mais ou menos com os christãos” chegando mesmo ao requinte de precisar que “os chefes de seis deles já tem nomes christãos e compõe-se ao todo de 592 índios” (pg. 68). Além disso, o próprio autor afasta o risco de haver confundido aldeias “Gavião” e Guajajara ao considerar que “em toda a extensão da comarca da Chapada existem numerosas tribus de indígenas não civilizados cujo número é orçado em cerca de quatro mil. Em geral estes silvícolas conservam seus hábitos originários (...). Os Guajajara são os únicos que têm recolhido proveito do trato social, devido na maior parte à excellente índole de que são dotados” (idem, ibidem: 68).

Até o início dos anos 1860, pelo menos, são numerosas as evidências que atestam que a região compreendida entre o rio Tocantins e a margem esquerda do alto curso do rio Grajaú (na altura da Serra da Desordem) era de domínio dos “índios Gaviões” – como afirmam Cândido Mendes de Almeida e César Augusto Marques.

Hoje nos encontramos de posse de material etnohistórico suficiente para podermos considerar que os grupos indígenas englobados sob a denominação “Gaviões” eram na verdade:

  • os “Gaviões do Oeste” ( Paracatêjê, hoje habitando a TI Mãe Maria, no Pará), que até o início dos anos de 1970 mantiveram-se arredios – uma parte do grupo apenas – e dominando o nordeste de Imperatriz, do igarapé dos Frades até a altura de Alcobaça (Tucuruí);
  • os Gaviões Pykopjê, que dominam ainda hoje a bacia de Santana e os formadores da margem esquerda do alto Grajaú (e que habitam hoje TI Governador – MA);
  • os Krĩkati (Põcatêjê), que tinham seus habitat localizados ao sul e sudeste dos Gaviões/Pukopjê, nas cabeceiras do Grajaú e Pindaré e – passando o divisor de águas deste rio – nos afluentes da margem esquerda do rio Tocantins, entre o ribeirão Arraia e Imperatriz e;
  • os Pihàcamekra (ou “Pivocas” ou “Caracatigês”), cujas “antigas sedes eram no Embira Branca, um igarapé que desemboca no Tocantins pela margem direita, um pouco abaixo de Imperatriz” (Nimuendajú, 1946: 18). Em 1859, Ferreira Gomes conheceu uma das aldeias (“Caragés”) “a uma légua de Santa Thereza achando aí entre 50/60 habitantes pobres e mal alimentados” (1862: 510). Marques citando um documento de 1862, afirma serem duas as aldeias destes “Caragés” (= “Caracatêjês” = “Pivocas” = “Pivoca-Mecrãns”- Pihàcamekra) nos arredores de santa Thereza “(...) tendo nas suas habitações a um quarto de léguas e outros a uma légua, além de inúmeros bravios, que habitando em lugares mais longínquos; estão contudo em contato com esses indígenas”(1970 (1870): 567 – grifo nosso). Uma lista de grupos indígenas fornecida pelo juiz de Direito de Carolina ao Presidente da Província do Maranhão em 1861 cita a aldeia dos “Pivocas” nas cabeceiras do Pindaré e nas imediações de Santa Thereza (idem; ibidem: 180). Como comenta Nimuendajú: “a lista merece pouca fé ... mas ele parece indicar que naquela época pelo menos uma parte da tribo (dos Pihàcamekra) já tinha se retirado para além do divisor do Tocantins”. (1946: 18).

A história Krĩkati por eles mesmos: a dinâmica das aldeias

A memória dos atuais Krĩkati alcança uma aldeia situada no rio Batalha, a que eles se referem como aldeia do Cutõi (maracá). Seguindo o curso do rio Batalha formaram outra aldeia, próxima ao lago que eles denominam como Aaprore, perto da serra Mentocará. Daí se deslocaram até a serra Hutéxãmxà. Estas serras são, na verdade, as extremidades da serra do Cocalinho.

Foi nessa época que, segundo os velhos Krĩkati, os “portugueses chegaram”, ou pelo menos a presença dos brancos passa a incomodar e a interferir no processo de mudança das aldeias Krĩkati e, portanto, com a ocupação do território. Contam que da serra do Cocalinho saíram para a chapada e formaram uma aldeia perto do lago dos Fortes (Kyprejõnku) em uma cabeceira do rio Pindaré – próximo ao lugar onde se situava o lugarejo chamado Quiosque.

Sempre se afastando por causa do cupen (“civilizado”), os Krĩkati contam que desceram até águas do São Gregório formando a aldeia Hõcrécaixô. Quando situados nesta aldeia os Krĩkati tiveram algumas crianças roubadas pelos brancos e, depois de terem assaltado uma fazenda para recuperá-las, dispersaram-se com medo de represálias.

Marques narra esse episódio referindo-se aos:

fatos lamentáveis que os índios da tribo – Caracati – praticaram na fazenda Salto de D. Raimunda Pereira da Luz, e dos quais resultou a morte desta e de mais dezesseis pessoas (...) os índios para essa que cometeram, foram provocados por João Machado e outros, em cujo número se compreendem três genros da mencionada D. Raimunda, que invadiram a aldeia em que moravam e lhes roubaram alguns filhos tendo depois para ocultarem tão iníqua ação, barbaramente assassinado dois índios dos que haviam roubado, sendo que por estes crimes já se acham presos e estão sendo processados pelo delegado de polícia de Carolina” (1970 [1870]: 182).

Esta notícia aparece em um ofício do então juiz de Direito de Carolina, Dr. Manoel Jansen Ferreira, ao responsável pela abertura de uma estrada entre Santa Thereza e Monção e é interessante, para os nossos propósitos, citar o trecho conclusivo do ofício:

além disso, aqueles índios (os Caracatis) moram muito distante dos lugares por onde a estrada tem de ser aberta ... Não se deixe, pois, levar por infundadas notícias de agressões e, sem que de todo abandone as medidas aconselhadas pela pendência, deve Vmcê tem em vista que os índios selvagens, conhecedores pela tradição de seus maiores de superioridade que sobre eles temos, e á baldos de recursos para viverem na primitiva independência, porque se acham reduzidos a pequeno território, e este cercado por todos os lados de povoações civilizadas, desejam e procuram viver em paz, e não fazem a menor agressão, senão depois de provocados” (Marques, 1970 [1870]: 183 – grifo nosso).

O trajeto da estrada referido neste ofício, deveria passar pelo riacho Bacabatiua (idem, ibidem: 182), cortando portanto o território dos Pihàcamekra. O início dos trabalhos da estrada se deu em 1864-65. Mas o relato não precisa a data do ataque à fazenda “Salto” que, pelo que se pode inferir dos textos arrolados por Marques, deve ter ocorrido alguns anos antes (provavelmente em 1861).

A fazenda Salto situava-se presumivelmente nas águas do Ribeirão Salto, que, junto com o Ribeirão Tapuio e São Gregório, formam o Rio Arraia. Portanto a notícia de Marques é procedente na medida em que está de acordo tanto histórica quanto geograficamente com a história oral Krĩkati, que nos informa que nessa época (a do assalto à fazenda) havia uma de suas aldeias nas margens do Rio São Gregório (ocupando assim a bacia do rio Arraia).

Depois deste ataque à fazenda, os Krĩkati se dispersaram. Um grupo se refugiou na serra da Desordem nas proximidades, segundo eles, de onde é hoje a cidade de Imperatriz (antiga Santa Thereza). Novamente Marques, a este respeito, nos dá uma indicação ao notificar que:

em abril e maio de 1862 havendo 300 índios pouco mais ou menos encontrado a estrada do Tocantins novamente aberta, que pela posição em que se acha separada a mata em que eles residem, vieram com outros já domesticados à povoação de Santa Thereza pedir paz, receando sem dúvida as bandeiras de tristes e sanguinolentas recordações” (id.ibd.: 180)

Esses trezentos índios seriam provavelmente um dos grupos Krĩkati que se dispersaram depois do salto à Fazenda Salto; os “outros já domesticados” seriam os Pihàcamekra, com quem os Krĩkati mantinham relações de aliança.

Enquanto esse grupo permanecia nas imediações da colônia militar de Santa Thereza, um outro grupo havia se refugiado em direção oposta, na serra da Desordem.

Contam os índios dos tempos difíceis em que tinham de permanecer no alto da serra, já que ali não havia água. Nessa época (por volta de 1866) instalou-se na região um “fazendeiro” de nome Amaro. Contam os índios que muitos jovens, atendendo ao convite e promessa deste fazendeiro, desciam da serra e não mais retornavam à aldeia. Até que o chefe da aldeia, o capitão Ahyt, mandou que outros dois índios acompanhassem à distância o jovem enviado pela aldeia para atender ao convite do fazendeiro, verificando assim o seu destino. E o que contam é que o fazendeiro mandava amarrar os índios de cabeça para baixo para depois matá-los, fazendo com que bebessem “sebo de gado quente”.

Interessante é que este episódio é marcado diferentemente por Delvair Montagner, e seu relatório à Funai 1980:

Nesta Serra (da Desordem) se refugiam dos “cristãos” (Kupê). O “pacificador” Amaro, escala a Serra da Desordem para chegar a aldeia e atrair mais índios. Os sertanejos estavam escondidos, e quando mais de vinte índios foram apanhar a comida oferecida por eles, foram mortos e jogados no rio. Os Krĩkati queriam ver os companheiros que tinham chegado anteriormente. Amaro diz que os matara e os recompensa com bens materiais. Os índios vão embora. O negro é ordenado a retornar à aldeia e levar capturado o capitão Alexandre. Esses fatos se desenrolam nas proximidades de Cabeceira do Arraia, logo atrás da serra da Desordem, num lugar denominado Fortaleza”.

Os Krĩkati atuais contam esse episódio, acontecido há aproximadamente cem anos, com tal riqueza de detalhes e com tamanha prontidão como se este tivesse acabado de acontecer. Na verdade o fato de reforçarem a belicosidade do fazendeiro Amaro significa o esforço de reunirem em um só episódio (o mais ilustrativo) a situação de perseguição em que se encontravam na época e o espanto de terem que repartir com grupos absolutamente estranhos (a ponto de não saberem qual era o destino dado aos jovens da aldeia que resolviam excursionar nas redondezas das moradias de brancos) os territórios que antes disputavam com iguais (os demais grupos Timbira).

E na seqüência do relato contam que, tendo sido descoberto, esse fazendeiro dá aos Krĩkati, numa aliança de paz, duas roças de mandioca e cinco currais cheios de gado; quando então descem da Serra da Desordem, fazendo uma aldeia no local. De “matador” a “amigo” dos índios, este relato é o resumo das relações dos índios com os neobrasileiros, e aponta a forma em que os brancos, através de “agrados” (doação de gado, roça de mandioca etc.) estabeleciam o contato com os índios que lhes garantia a permanência em seus territórios.

Os índios se recordam que seus antepassados lhes contavam que antigamente no seu habitat não havia civilizados. Lentamente estes foram chegando e pedindo licença ao capitão para aí residirem. O agradavam com presentes e fumo. Diziam-se amigos deles e que eram “bonzinhos”. Comiam as suas caças e depredavam a mata que hoje quase inexiste. Contam que o “pacificador” Amaro pediu ao Capitão para morar na área. Seu filho, dono da Fazenda São Francisco, solicita ao capitão Lourenço para ficar em definitivo no lugar onde se encontrava (...)” (Montagner, 1980: 5).

Depois da fuga, tem lugar o contato mais sistemático: “o início da convivência pacífica” e os Krĩkati nos contam que da aldeia da Fortaleza deslocaram-se para águas do ribeirão Tapuio formaram outra aldeia, a do Caldeirão - Hincá. Deste grupo, um bando se deslocou para formar uma aldeia nas águas do ribeirão Faveira (próximo ao lugar onde hoje estava o Quiosque). Posteriormente voltaram para o rumo do Caldeirão e, juntando-se todos, fizeram a aldeia do Quati, quase na cabeceira do Tapuio, voltando novamente para a Serra da Desordem.

Contam os Krĩkati que foi nessa aldeia que tomaram contato com a família de Raimundo de Souza Milhomem e pediram ao Lourenço (Krìàkra), bisavô de Francisco (ex-capitão e liderança importante entre os Krĩkati atuais) permissão para morar e criar algum gado, e o velho índio levou os Milhomem para um lugar chamado Cana Brava. “Mas por causa da malária os Milhomem se mudaram e foram se assentar nas águas do Ribeirão Campo Alegre” (bem próximo da atual aldeia dos Krĩkati, São José). É importante observar que, por ter dado a permissão para permanecerem em seus territórios, o antigo “capitão” Krĩkati passou a adotar o sobrenome dos Milhomem, transmitindo esse “direito” a seus descendentes.

E por estar estabelecido em território Krĩkati – mantendo com eles relações de alianças – é que Raimundo de Souza Milhomem foi nomeado, em 1887, para ocupar o cargo de Diretor de índios da Diretoria Parcial de Imperatriz, legitimando e incentivando a ocupação do território indígena por seus familiares e assumindo, perante os índios, a contrapartida da “proteção”.

Enquanto “diretor dos índios”, Raimundo Milhomem passaria a “agradar” os Krĩkati (isto é, a pagar o arrendamento aos índios pela ocupação de suas terras) não mais com seus próprios recursos, mas com verbas públicas que eram a ele repassadas pelo governo provincial. E é necessário novamente ressaltar que a finalidade explícita das “Diretorias Parciais” era a de “retirar os indígenas de seu estado selvagem – para tornar possível a ocupação civilizada – de seus imensos terrenos”.

Da aldeia do Quati um grupo Krĩkati deslocou-se para as águas do rio Arraia, formando a aldeia do “Canto da Aldeia”.

No século XX

Estamos, aproximadamente, no limiar do século XX. E foi no Canto da Aldeia que os dois subgrupos Krĩkati voltaram a se juntar. Mas reforçamos agora a movimentação do outro grupo Krĩkati que, quando do assalto à Fazenda Salto, havia se deslocado para as proximidades de Santa Thereza. Não sabemos por qual motivo este grupo Krĩkati – que havia buscado proteção na colônia militar Santa Thereza – começou a voltar para lugar de onde se retirara. O que importa assinalar é que este subgrupo Krĩkati juntou-se a um grupo Pihàcamekra, fato este corroborado pelo relato do velho Zezinho (o índio mais velho da aldeia, de mais ou menos 90 anos) ao dizer que seu povo saiu por causa do sarampo da cabeceira do Cacau (território deste último grupo) e daí foi para Imperatriz (a colônia de Santa Thereza), e de lá foram beirando o Tocantins até cabeceira do Ribeirão Clementino onde acabaram por estabelecerem-se nas águas do Rio Arraia, formando a aldeia do Bacuri Seco. Segundo o velho Zezinho, o grupo que estava em Imperatriz (os Pihàcamekra) “estavam quietos, os que estavam na Serra da Desordem é que estavam tendo problemas com os cupen”.

Desta aldeia – e sempre em águas do rio Arraia – se deslocaram para formar a aldeia São João, depois para a Aldeia Mata Verde, acabando por retornar para o lugar da antiga aldeia São Gregório – e há uma distância de um quarto de légua formaram uma nova aldeia, também denominada São Gregório.

Os Krĩkati contam que quando este grupo formou esta aldeia no São Gregório o outro grupo estava situado na aldeia Faveira. Depois que este último se deslocou para formar a aldeia “Canto da Aldeia”, na cabeceira mais meridional do rio Pindaré, é que os dois grupos começaram a estabelecer relações mais sistemáticas, através de ligações matrimoniais, da procura de curadores, ou mesmo através dos convites para a participação nos rituais. Finalmente, o subgrupo da aldeia São Gregório acabou vindo se juntar aos Krĩkati do Canto da Aldeia.

Provavelmente os dois grupos vieram a se unir porque seu contingente populacional era insuficiente para que pudesse cada um por si garantir a reprodução de sua vida. Foi quando estavam novamente juntos nesta aldeia que fizeram um grande acampamento (rancharia) em um poço do Pindaré. Esta zona é extremamente preciosa para os índios, pois é rica em rãm (almácega do brejo, cuja seiva é empregada nas “empenações”, motivo pelo qual é constante os Krĩkati fazerem acampamentos em suas margens. Este poço é denominado atualmente “Poço do Caboclo Velho” (Ramcô), porque, contam os Krĩkati, naquela época um índio velho foi morto e atirado no poço pelos “cristãos”.

A aldeia localizada no “Canto da Aldeia” é o ponto de referência para a descrição e análise de movimentação dos subgrupos Krĩkati por seu território no século XX, expresso nos deslocamentos e no processo de fusão e divisão de suas aldeias.

O censo do SPI em 1919 menciona duas aldeias Krĩkati – “Engenho Velho”, com 65 habitantes, e “Canto da Aldeia” com 204. Entretanto Numuendajú, que os visitou em 1920, faz referência a uma terceira aldeia (“Caldeirão”) sem, contudo, mencionar sua população (Nimuendajú, 1946: 17).

Convém lembrar que foi da aldeia do Caldeirão (águas do Tapuio, formador do rio Arraia) que um dos bandos Krĩkati saiu para residir no Canto da Aldeia. O provável é que algumas poucas famílias tenham ficado no antigo lugar. Nimuendajú não deve tê-los visitado, por isso não estima sua população; mas deve ter ouvido falar, no Canto da Aldeia, de algumas famílias que ainda não haviam se juntado totalmente ao grupo. “Engenho Velho” era formada por uma família extensa composta pelo finado índio Manduca (pai do velho Ludogero, ainda vivo) com filhos, genros e noras. A trajetória deste pequeno subgrupo nos indica que ele mantém-se autônomo até aproximadamente 1978.

Reunidos novamente em uma aldeia populosa, depois de quase 70 anos, “Cano da Aldeia” tornou possível a realização dos grandes rituais (aqueles ligados ao ciclo da iniciação, e que exige a participação não de um grupo familiar, mas de todas as famílias que compõem a aldeia). E também a época em que as invasões em território Krĩkati se aceleram e os índios começam a perder o controle sobre os moradores que passam a ocupar seus territórios.

Os novos ocupantes ou os descendentes dos pioneiros passaram a não mais retribuir com gado seu estabelecimento em “terra de índio”. E na proporção em que o gado começa a aumentar e a caça começa a rarear, os índios passam a intensificar o abate do gado dos cupen. Paira a ameaça de que ataques isolados – como do velho índio morto e atirado no poço do Rio Pindaré (reivindicado como limite norte do território tradicional e atual) – pudessem se tornar verdadeiros “massacres de índios”.

E por força desta situação que o SPI determinaria, em 1929, que seu encarregado Marcelino Miranda promovesse, não o afastamento do território Krĩkati de seus invasores e responsáveis pelo clima de tensão, mas sim a transferência dos Pykobjê e dos Krĩkati para a região de Barra do Corda – o que daria por encerrada a desobstrução desta parte sul do Maranhão das populações indígenas, garantindo uma colonização iniciada há 90 anos atrás.

A documentação histórica sobre esta transferência é significativa: conta-nos Marcelino Miranda, em seu relatório “Apresentado à Inspetoria de Serviço de Proteção aos Índios, nos Estados do Pará e Maranhão, sobre a transferência dos índios ‘Caracatys’ e ‘Gaviões’”

Passo às mãos de V.s. o relatório dos fatos concernentes à transferência dos índios de Grajahú para a Barra do Corda, de que fui por V.s. incumbido em virtude de ameaças contra os mesmos, por parte de fazendeiros lá residentes e de exigência do governo do Estado que declarou que se não os retirasse elle os mandaria retirar, cujos índios são os Gaviões e Caracatys das aldeias “São Félix” e “Recurso” a 105 Km distantes daquela cidade e 24 Km acima da outra.

Em má situação como estes estando os Caracatys do lugar “Canto da Aldeia” no município de Imperatriz comprehendi que a mudança devia abranger toda a tribo ... Esta aldeia está situada 66 Km distante daquela de Grajahú.

... Não sei qual dos seus inimigos teve a sinistra idéia de fazer correr o falso boato que os silvícolas se preparavam para atacar Grajahú e por fim até Barra do Corda ... Ao mesmo tempo incutiam-lhes (nos índios) que a Inspetora os mandaria buscar para matá-los...

No dia seguinte (2 de julho) ao da minha chegada (à aldeia São Félix), alli expus aos índios os motivos que me levava àquellas aldeias desta vez. Então todos se recusaram a vir para a Barra do Corda. Segui para a aldeia Recurso, sendo igual o resultado.

... Então resolvi seguir para o “Canto de Aldeia” para ver se podia trazer os Caracatys (...) tendo chegado de madrugada de 24 do alludido mês – a casa de fazendeiro, o major Salustiano Gomes, há uma meia légua distante daquela aldeia, justamente quando anoitecera alli pernoitei (...) partindo para a aldeia na madrugada seguinte.

Como os fuxicos ali tivessem chegado, fui encontrar os índios acampados a meia légua distante da aldeia. Então seguiram para a mesma, juntamente comigo, onde procurei convencê-los que deveriam vir para Barra do Corda e os agradei da melhor forma (...) Os índios que recusaram vir logo fugiram par uma matasinha próxima, de sorte que apenas pude trazer sete índios e cinco índias.”

O Sr. Miranda conta ainda que, mesmo depois de ter “botado” roça para eles em Barra do Corda e de ter-lhes dado alimentos, roupas e ferramentas, os Krĩkati

(...) queriam seguir para a aldeia e logo compreendi que se os detivesse por mais tempo aqui sairiam como fugidos. Dei-lhes então o necessário para o seu sustento na viagem e deixei-os seguir satisfeitos, incumbidos de convidarem seus companheiros para virem. O meu plano era buscá-los em setembro findo, mas aconteceu que um Sr. Manduca Milhomem, residente no lugar “Campo Alegre” há duas léguas distante daquela aldeia, levou-nos com illusões para onde mora, escrevendo depois dizendo que não os fosse buscar que não os traria porquanto lhe devem, segundo diz, 500 mil réis de mercadorias que vendeu-lhes ... Comprehendi que se fosse elle mandaria os índios fugirem e eu iria perder tempo e dinheiro. Assim resolvi dirigir-me ao Presidente do Estado o que já fiz por carta para auxiliá-los contra aquelle intruso pernicioso ... e meu genro Antonio Miranda por elle escrevi a Manduca que deixasse os índios retornar à aldeia sob pena de responsabilizá-lo civil e criminalmente (...)”.

Eis agora o relato que fazem os Krĩkati destes mesmos fatos:

Quando o povo estava morando no Canto da Aldeia, de vez em quando matava um gado do cupen. No começo os cupen davam umas cabeças de gado para agradar o povo. Depois os mais velhos morreram e os filhos pararam com o costume, mas o povo já tinha pegado o gosto da carne de gado e vez em quando matava um. Mas, nesse tempo os cupen deram aviso ao Marcelino Miranda que era encarregado do SPI em Barra do Corda. E o Marcelino veio e estava hospedado no cupen. E o povo estava cantando, estava no arremate da festa do wyty do Neuto, meu irmão mais velho, que está bem aqui.

O povo tinha feito um acampamento no lugar que se chama Akrãré, perto da aldeia. E daí o Marcelino chegou com outros cupen. O povo ficou com medo e correu para o mato. Até o Mariano, que era o meu pai e era o “dono” da festa, enfrentou o Marcelino.

O Marcelino falou que era preciso a gente abandonar a aldeia, já que ele tinha ordens do governo e que o SPI já tinha uma terra para a gente em Barra do Corda. O povo foi obrigado mesmo; depois do cerco de policiais é que foram levando os índios, que nem boiada, até o Rodeador (a gleba de terra adquirida, pelo SPI para alojar os Gaviões e Krĩkati); mas o povo aqui e acolá ia pendendo e quando chegaram lá só tinha mesmo quinze índios, e que acabaram botando roça por lá, antes de voltar para a aldeia” (Francisco Milhomem Krĩkati).

Este plano deixa clara a prática usual utilizada pelos criadores de gado na ocupação do centro-sul maranhense: ofertar algumas cabeças de gado ao chefe da aldeia como pagamento pela ocupação das pastagens que ficavam dentro dos territórios dos índios.

De “arrendatários” a “proprietários”

Entretanto, como os próprios índios afirmam, com o passar dos anos essa relação se altera: de “arrendatários” da terra (dos índios), os descendentes destes pequenos fazendeiros passam a se considerar “proprietários” de terra (dos índios), interpretando o pagamento do arrendamento que seus pais ou avós faziam aos índios como a compra de um direito de posse: eram com base nesta “legitimação” que justificariam, mais tarde, os massacres pelo abate do gado.

Esta inversão da relação acabou levando alguns grupos Timbira, como os Krahô e Ramcôcamekra, a movimentos messiânicos. Tais eventos pretendiam reviver os termos da antiga aliança – a convivência pacífica – com os primeiros fazendeiros, marcada pela “doação” de cabeças de gado. A partir do momento em que essas “doações” passam a diminuir, até cessar por completo como prática, os índios, reafirmando o direito aos seus territórios, novamente voltam a abater o gado dos cupen. O objetivo do ritual messiânico era conseguir, por meios mágicos, a doação de grandes rebanhos de gado e de todas as mercadorias dos cupen – o que legitimava aos olhos dos índios a sua ação (o abate constante de gado), já que todo ele seria mesmo de propriedade dos índios, quando da chegada de AUKÊ, o “messias”.

A história dos grupos Timbira no decorrer deste século é pautada, pois, pela disputa pelo território através do abate do gado, que culmina com o surgimento de dois movimentos messiânicos, entre os Krahô em 1951 e entre os Ramcôcamekra em 1963; e dos massacres entre os Krahô (1940), Ramcôcamekra (1963) e Kênkatêgê (1913) e/ou ameaças que justificaram a ação “protetora” do SPI. Contudo ao tentar transferir os Pykopjê e Krĩkati em 1930 e transferindo os Ramcôcamekra-Canela (após o massacre), a ação daquele órgão cedia na verdade à pressão dos interesses locais.

Foi devido a essa tentativa de remoção que os Krĩkati passaram por um momento de quase total desarticulação, a ponto de Nimuendajú considerá-los como extintos enquanto um grupo organizado; quando os visitou, em 1929, seus remanescentes estavam “dispersando-se em todas as direções”. Entretanto, nesse mesmo ano, Nimuendajú assinala a presença de muitos Krĩkati entre seus vizinhos Pykopjê vindos em anos anteriores, na aldeia São Felix, e de remanescentes de um grupo Timbira não identificado (Côtugrecatêjê), na aldeia do Recurso (idem: 19). Ao enfatizar a extinção dos Krĩkati,

“Nimuendajú nos conduz a pensar que ambos os grupos (Pykopjê e Krĩkati) tenham se amalgamado juntamente com outros já extintos tornando-se então um único grupo, sob a denominação do grupo anfitrião – os Pykopjê” (Barata, 1981: 40).

Este “amalgamento” é praticamente um dado para o SPI, como podemos observar no relatório do Dr. Marcelino Miranda ao estender para as aldeias Krĩkati (Canto da Aldeia) o que lhe fora ordenado para as aldeias Pykopjê (São Félix e Recurso) sob a justificativa de que “a mudança devia abranger toda a tribo...”

Entretanto os Krĩkati voltaram a organizar-se enquanto um grupo autônomo. Contam eles que o povo que foi “pendendo no caminho” acabou formando a aldeia “Estraira”, na beira do córrego Traíra (formador do rio Arraia), onde ficaram até terminar a festa do wyty (iniciada quando da chegada de Marcelino Miranda).

Dessa aldeia, um grande número de famílias saiu para formar a aldeia de Macaúba “perto de uma grota, em um lugar muito feio” e daí saíram para formar a aldeia Taboquinha, “em um lugar limpo e bonito”. Esta aldeia deve ter sido formada em 1936-1937 (Newton, 1971: 27).

Na aldeia do Estraíra havia ficado quatro grupos domésticos (o do Benjamim, Marcelino, Bestolo e Mariano), que depois acabaram vindo se juntar ao restante do grupo, já na aldeia de Taboquinha.

Contam os Krĩkati que a aldeia de Taboquinha era grande e nessa época havia muita fartura. Mas “foi a época que deu muita epidemia brava, o povo botava sangue pela boca e começou a morrer, morria logo; o povo começou de novo a espalhar, era muito fuxico e muito feitiço; até que mataram o feiticeiro”.

Mas aí o povo já tinha espalhado: um grupo de três a quatro famílias, “o povo do finado Dominguinho”, foi formar uma aldeia num lugar chamado “Boi de Carro”. E o grupo do finado Agostinho foi fazer aldeia no lugar chamado Piquizeiro; mais tarde esse grupo se desloca para a Baixa Funda formando ali uma nova aldeia. E o resto do povo que formava a aldeia de Taboquinha se dividiu, com uma parte indo formar a aldeia de Sucupira e outra formando uma aldeia no Estraíra novamente. A aldeia do Estraíra cindiu-se pouco depois, com algumas famílias retornando para águas do ribeirão São Gregório enquanto a maior parte acabou indo formar a aldeia “Canto Grande”. Mais tarde os dois grupos voltariam a se fundir, com o grupo São Gregório se incorporando à aldeia “Canto Grande”.

Nessa época o povo da aldeia de Sucupira (cisão da aldeia Taboquinha) se transfere para a beira do ribeirão São José, fundando a antiga aldeia São José, ao lado do lugar da atual aldeia com esse nome, para onde vão se juntar uma parte das famílias Krĩkati que residiam no Canto Grande, enquanto o restante da aldeia se transferiu para o lugar denominado Batéia.

Durante todo este tempo, o povo do finado Manduce continuava vivendo “apartado”. Do “Engenho Velho” – aldeia visitada por Nimuendajú em 1929 – este grupo passaria a residir no Vão da Serra e posteriormente para o local denominado “Cabeceira das Cabras”.

Em 1962, “por causa da matança de gado”, os fazendeiros voltaram a ameaçar os Krĩkati, exigindo que o prefeito de Montes Altos, Jocino Gomes, tomasse providências enérgicas contra os índios. O prefeito convocou então uma reunião na Prefeitura onde estiveram presentes representantes Krĩkati de todas as aldeias existentes na época (Baixa Funda, Cabeceira das Cabras, Batéia e São José) e os fazendeiros. Neste encontro acabaram por estabelecer um acordo em que os índios receberiam uma cabeça de gado para ser consumida pela comunidade para que deixassem de matar porcos e gado dos fazendeiros.

O Prefeito escolheu dois índios que estavam presentes na ocasião e dominavam bem o português, Urbano e Francisco, para vigiarem o cumprimento do acordo. O prefeito aconselhou também que todos os Krĩkati deveriam viver juntos em uma só aldeia, o que facilitaria o trato com a prefeitura (que acenava com a possibilidade de alguma assistência). No contexto desta “cooperação”, Frei Aristides, missionário italiano que acabava de chegar a Montes Altos, iniciaria uma escola na aldeia de São José com o compromisso de que todas as crianças Krĩkati estudassem nela.

A escola do Padre Aristides, que tinha como professor outro missionário italiano, Frei Antônio, foi o mecanismo principal utilizado pelos políticos regionais para que os Krĩkati deixassem de habitar simultaneamente em vários pontos de seu território. Sem dúvida esta pluralidade de pequenas aldeias estava dificultando a ocupação plena de parcelas do território Krĩkati pelos fazendeiros vizinhos.

Segundo informações contidas em relatório da antropóloga Delvair Montagner (Funai, 1980: 55), a transferência da aldeia da Batéia foi realizada em outubro de 1978, conforme registro nos arquivos do Posto; entretanto a antropóloga, quando esteve entre os Krĩkati em 1979, informa que ainda existiam onze pessoas nesta aldeia, pois que haviam se recusado a residir em São José.

Em 1979 os Krĩkati ainda habitavam três pontos distintos de seu território: em águas do Ribeirão São José (aldeia São José); em águas do Ribeirão Bom Vivendo (aldeia Batéia); e em águas do Ribeirão Buenos Aires (aldeia Areia). A partir de 1980 os Krĩkati estavam todos reunidos em uma única aldeia, São José.

A aldeia “Areia” é composta de famílias extensas Guajajara que residem no território Krĩkati na região da Serra do Cipó (limite sudeste) e com os quais os Krĩkati mantém intercasamentos. Os Krĩkati os consideram como “agregados”; na verdade são os únicos agregados que lhes são, hoje, fiéis. Na região do rio Arraia (na “Mata Verde”), limite sudoeste, reside ainda uma família nuclear.

Modo de vida

Corrida de toras. Foto: Gilberto Azanha, 1989.
Corrida de toras. Foto: Gilberto Azanha, 1989.

Para os Timbira o tempo é visto como uma seqüência de verão (amcró) e inverno (ta’ti), ou melhor, da estação da seca (que compreende os meses de abril até setembro, aproximadamente) e da estação das chuvas (de outubro a março, aproximadamente). Estas duas estações regulam os dois períodos cerimoniais da vida social e também o conjunto das atividades produtivas. Grande parte dos ritos ligados ao ciclo anual se concentra no período da estação das chuvas, enquanto a estação seca se reserva para a realização de um dos ritos ligados à iniciação.

As festas (amji kin, literalmente: “alegrar-se”) Krĩcati, como nos demais povos Timbira, são relativas ao ciclo anual (festa do milho, da batata-doce, da mudança da estação do ano), à iniciação dos jovens, à regulamentação das relações de parentesco e interpessoais, usando as relações entre os animais como paradigma (como a festa do peixe, do papa-mel, das máscaras), as festas relativas a assunção ou a entrega da dignidade de wyty (menino ou menina ritualmente associado aos indivíduos do sexo oposto da aldeia) ou ainda as festas e pequenas cerimônias relativas ao ciclo vital de um indivíduo (fim de resguardo do casal pelo nascimento de filhos, ritos de re-introdução de alguém que ficou afastado por muito tempo do convívio na aldeia, por doença ou luto). Nestes dois últimos casos (wyty e ciclo vital), a responsabilidade pelo suprimento de comida e bens a aldeia é da casa de origem do homem ou mulher.

Estas festas exigem uma farta distribuição de alimentos, e hoje em dia algumas delas se prolongam em período de “latência” de vários meses até que a aldeia promotora possa providenciar comida e outros itens necessários para sua conclusão. Além da comida, são necessários miçangas e cortes de pano, que são oferecidos para os participantes das outras aldeias.

Cada festa é marcada pelo nome de uma tora de corrida específica e por cantos específicos – o que leva à conclusão que sem um “cantador” (incrercatê) que domine os cantos, não se pode realizar determinado ritual. As aldeias que se encontram nesta situação superam o problema “contratando” um cantador de outra aldeia do próprio grupo ou de outra aldeia Timbira.

As festas marcam assim a solidariedade necessária ao convívio nas aldeias e são momentos onde se enfatizam as regras de comportamento. Os amjkin, além de proporcionar um momento de “alegria” e descontração (pois nestes momentos os jovens têm a oportunidade de conhecer mulheres de fora, e os homens e mulheres casadas, para experimentarem relações sexuais extramatrimoniais, porém permitidas), são fundamentais para a atualização da estrutura sociocultural e para o equilíbrio das relações internas.

Portanto, as “festas” preenchem o calendário anual das aldeias quase integralmente: sempre, em qualquer período do ano, uma aldeia estará preparando uma festa, executando outra ou aguardando condições para finalizar uma outra.

Para outras informações sobre o modo de vida e a organização social desse povo, visite o verbete Timbira

Fontes de informação

  • BARATA, Maria Helena. A antropóloga entre facções políticas indigenistas : um drama do contato interétnico. Belém : MPEG, 1993. 140 p. (Coleção Eduardo Galvão)

 

  • COELHO, Elizabeth Maria Beserra. A política indigenista oficial na dinâmica da disputa pela terra : o caso da demarcação da terra Krikati. In: BARREIRA, Irlys; VIEIRA, Sulamita (Orgs.). Cultura e política : tecidos do cotidiano brasileiro. Fortaleza : UFCE, 1998. p. 51-75. (Percursos, 2)

 

  • CORREA, Katia Nubia Ferreira. Muita terra para pouco índio? O processo de demarcação da Terra Indígena Krikati. São Luis : UFMA, 2000. 208 p.

 

  • LADEIRA, Maria Elisa. Krikati : um longo processo para o reconhecimento de suas terras. In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil : 1987/88/89/90. São Paulo : Cedi, 1991. p. 491-2. (Aconteceu Especial, 18)

; AZANHA, Gilberto. Os “Timbira atuais” e a disputa territorial. In: RICARDO, Carlos Alberto (Ed.). Povos Indígenas no Brasil : 1991/1995. São Paulo : Instituto Socioambiental, 1996. p. 637-41.

 

  • LAVE, Jean Elizabeth Carter. Social taxonomy among the Krikati (Ge) of Central Brazil. Cambridge : Harvard University, 1967. 384 p. (Tese de Doutorado)

 

  • NEWTON, Dolores. Social and historical dimensions of Timbira material culture. Cambridge : Harvard University, 1971. 342 p. (Tese de Doutorado)