Kiriri
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- BA 2806 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
Kiriri é um vocábulo tupi que significa povo "calado", "taciturno". Essa designação teria sido atribuída pelos Tupi da costa aos índios habitantes do sertão. O povo kiriri constitui hoje um grande exemplo de luta para outros povos indígenas localizados na região Nordeste do país. No espaço de quinze anos, eles se estruturaram politicamente e promoveram, em fins dos anos noventa do século passado, a extrusão de cerca de 1.200 não-índios incidentes na Terra Indígena Kiriri, homologada desde 1990.
Histórico de ocupação e do contato
Historicamente, se poderia datar uma primeira aproximação dos Kiriri a uma idéia de território - assim como o conhecemos hoje, com seus limites bem definidos - no início do século XVIII, época da doação, por parte do então rei de Portugal, de uma légua em quadra de terras a todas as aldeias do sertão com mais de cem casais, fruto de solicitações constantes por parte dos jesuítas face aos conflitos decorrentes da expansão da pecuária, em especial com sesmeiros da região que interferiam com certa freqüência na administração dos párocos das aldeias ali constituídas (Bandeira 1972).
Assim, Saco dos Morcegos, uma das quatro aldeias kipeá-kiriri fundadas pelos jesuítas, com uma população então estimada em 700 casais, foi delimitada como havia sido determinado, ou seja, a medida de uma légua de sesmaria (6.600 m), do centro a todas as partes, isto é, conforme o costume à época, da igreja missionária aos oito pontos cardeais e colaterais, formando um octógono regular de 12.320 ha (Bandeira, 1972).
O Alvará régio que regulamentou o processo de doação não se constituiria contudo, por si só, durante muito tempo, em um instrumento eficaz de garantia dos índios à posse dessas terras, pois, após a expulsão dos jesuítas, em 1756, Saco dos Morcegos seria elevada a vila (em 1760), adotando a denominação atual de Mirandela (Bandeira, 1972).
A implantação de uma administração civil nas aldeias do sertão ensejou um processo de indiferenciação entre índios e colonos, implicando uma significativa abertura para a invasão das terras indígenas e um forte processo de "desindianização" ao qual não resistiriam as demais aldeias dos Kipeá-Kiriri, depois de elevadas a vilas e submetidas à administração dos "Diretores de Índios" ao longo do século XIX (Brasileiro & Sampaio, s/d).
É muito provável que, dada a sua proximidade e a identidade cultural dos índios ali residentes, boa parte da população dessas vilas tenha se refugiado em Saco dos Morcegos, cuja sobrevivência pode ser atribuída a uma localização mais afastada das rotas da pecuária e a relativa inferioridade da fertilidade de suas terras, comparativamente às das demais aldeias. Deste modo, Saco dos Morcegos seria progressivamente ocupada por diversos outros segmentos camponeses não indígenas, repelidos justamente daquelas áreas mais valorizadas do agreste. Sua presença não restringiu drasticamente o espaço disponível para os Kiriri: uma pequena faixa íngreme de terras onde até há pouco residiam, constituindo cinco núcleos marginalmente localizados, circundados por pequenos povoados de regionais.
Reestruturação sócio-política
O contexto marcado por perseguições e desmandos administrativos que dominou o século XIX e caracterizou a ação dos "Diretores de Índios", freqüentemente contrários aos direitos e interesses indígenas, agravar-se-ia, ainda mais após a extinção dessa Diretoria, contribuindo para expor ainda mais acentuadamente as terras ocupadas por índios à cobiça de posseiros e pequenos fazendeiros.
Apenas em meados do século XX as terras doadas pelo rei de Portugal seriam efetivamente reclamadas pelos Kiriri, principalmente após a instalação, em Mirandela, em 1949, de um Posto Indígena do então Serviço de Proteção aos Índios.
Tal iniciativa, fruto de incessantes gestões junto ao seu diretor, o Mal. Rondon, por parte do pároco Renato Galvão, do município vizinho de Cícero Dantas, foi precedida pela visita aos índios, em 1941, do engenheiro Luiz Adami, do Ministério da Agricultura e, em 1947, do sertanista Sílvio dos Santos. Ambos os relatórios decorrentes deste primeiro contato mais oficial com os Kiriri ressaltam a precisão com que esses índios referiam ao formato octogonal do chapéu de sol que constituía o território reivindicado, e o desenhavam, identificando e localizando ainda os oito marcos que o delimitavam, a despeito deles terem sido de há muito destruídos ou deslocados. Na sua falta, marcos naturais que, grosso modo, mantinham a configuração original, foram apontados:
do cume do Pico, ao norte, à Pedra da Bica ou do Suspiro, a noroeste; daí ao Pau-Ferro, na estrada para Salgado, a oeste, local do atual povoado de mesmo nome; do Pau-Ferro à Pedra Escrevida, na Baixa do Juá, a sudoeste; daí à Pedra do Batico, na Baixa da Catuaba, extremo-sul da área, na estrada pra Pombal; do Batico à Casa Vermelha, na estrada para Curral Falso, a sudeste; deste local à Pedra do Gentio, a leste; daí à Marcação, antiga fazenda e atual povoado, na estrada para Banzaê, a nordeste, e daí finalmente ao ponto de origem (Rosalba 1976).
Narrativa indígena
por Dernival Kiriri
Desde o contato com os colonizadores os indígenas vêm sofrendo perseguições e perdas das suas tradições. Nas aldeias as perdas foram muito fortes, pois muitos dos seus anciãos foram mortos devido aos seus rituais sagrados. As celebrações praticadas pelos índios eram inaceitáveis pelos jesuítas.
Em 1949, o SPI (Serviço de Proteção aos Índios) instalou em Mirandela um posto indígena, nos dando assistência precária nas áreas de saúde e educação. Neste mesmo ano indicou o índio Daniel Antônio de Patrício como capitão do povo Kiriri.
Com o passar dos anos a figura do capitão foi substituída pelo cacique. Em 1972 o próprio Daniel indica o índio Lázaro Gonzaga de Souza para comandar a nação Kiriri como cacique geral.
No dia 5 de outubro de 1974 as lideranças Kiriri organizaram uma caravana com cerca de 100 índios cujo destino era a terra indígena Tuxá, localizado no norte da Bahia. Em princípio para realizar um jogo de futebol entre as duas tribos, já com objetivo de assistir o ritual do toré realizado por aqueles índios. No ano seguinte no mês de fevereiro de 1975 os índios Armando, Arizona, Lúcio e Batista de Rodelas vieram ensinar aos Kiriri a prática do toré. Desde então os Kiriri vem praticando o ritual até hoje."
A existência de um Posto Indígena em Mirandela instaura um contexto interétnico mais bem definido, legitimando formalmente a condição indígena dos Kiriri e instituindo um anteparo legal entre esses e a sociedade nacional mais ampla. Nos 20 anos subseqüentes à sua instalação, que coincidiram com uma fase de decadência geral do SPI, a atuação dos encarregados do Posto notabilizar-se-ia, principalmente, pela intermediação de conflitos isolados entre os índios e os não-índios ocupantes de suas terras e pelo atendimento de algumas de suas pequenas demandas, tais como construção de escolas, posto de saúde, doação de ferramentas, remédios etc. A questão do território, móvel mais imediato dos esforços que culminariam na presença do órgão, não seria, ainda durante esse período, encaminhada.
Em fins da década de 1960, a falência do órgão tutelar reflete-se em seu posto de Mirandela, totalmente desaparelhado e, mais que isso, comprometido com as oligarquias regionais. A situação kiriri à época era marcada pela existência de disputas entre os núcleos indígenas, por altos índices de mortalidade e de alcoolismo e por ataques perpetrados por não-índios.
Em 1972, face à total inoperância do órgão tutelar -que então já era a Funai- e à necessidade premente de constituir uma estrutura organizativa minimamente independente e representativa que enfrentasse os regionais e efetivasse a luta coletiva pela demarcação do território, os Kiriri elegeram um líder indígena para o cargo de "cacique", além de um conselho formado por um representante em cada núcleo.
No contexto do processo organizativo que se seguiu à eleição do cacique e conselheiros, os Kiriri empreenderam uma série de ações que inicialmente foram orientadas à revitalização étnica do grupo, ao estreitamento de relações com outros povos indígenas e, ainda, à familiarização com os meandros administrativos do Estado. Em 1976, com a entrada em cena de um chefe de posto com razoável experiência de trabalho indigenista, independência política e, principalmente, disposição para respaldar os projetos coletivos dos Kiriri, tais ações ganham uma conotação mais estritamente política, centrando-se na condução de um pleito pela demarcação e extrusão (expulsão dos invasores) do território indígena, com base no montante da área doada pelo Rei de Portugal, ou seja, os 12.320 hectares que compreende a "légua em quadra" e, internamente, em apropriações parciais simbólicas e efetivas desse território, aqui destacadas esquematicamente:
1979 - Organização de uma roça comunitária na Baixa da Catuaba, situada ao sul do Território indígena, na estrada que liga o povoado de Mirandela ao município de Ribeira do Pombal, caracterizada por forte incidência de ocupações de regionais. |
1981 - Demarcação da Terra Indígena Kiriri, com 12.320 ha. |
1982 - Ocupação da Picos, localizada no núcleo Lagoa Grande, maior fazenda no interior do território kiriri, tida por posseiros e fazendeiros como baluarte na ocupação das terras indígenas. Seu pretenso proprietário, Artur Miranda, era apoiado por políticos da região e considerado pelos índios como o seu mais crucial inimigo. |
1985 - Ocupação de uma fazenda de 700 ha. no núcleo Baixa da Cangalha. |
1986 - Os Kiriri interditam importante estrada de acesso de Mirandela ao povoado de Marcação, retirando todas as posses e roças de regionais ali localizadas. |
1987 - A FUNAI indeniza e o INCRA reassenta 37 famílias de não-índios incidentes no território kiriri, nas fazendas Taboa e Serrinha, situadas no município de Quijingue. |
1989 - 85% do território kiriri passa a compor o município de Banzaê, desmembrado de Ribeira do Pombal, em uma manobra política com o intento de "livrar" esse último município da presença indígena. Mirandela havia sido estrategicamente escolhida como sede do novo município. Todavia, mediante injunções na Assembléia Legislativa, em Salvador, os Kiriri conseguem obstar que a nova sede se situe nos limites da Terra Indígena. |
1989 - Cerca de 50 famílias kiriri acampam nas cercanias de Mirandela, após terem suas moradias parcialmente destruídas por uma enchente. Mantêm-se permanentemente no local que se constituía, até 1995, em um núcleo de resistência e pressão frente aos não-índios então ocupantes de Mirandela. |
1990 - A Terra Indígena Kiriri tem a sua demarcação administrativa homologada através do Decreto nº 98.828, de 15 de janeiro, sendo posteriormente realizada a regularização imobiliária - Reg. CI mat. 2969, livro 2m, f. 83, em 23 de março daquele mesmo ano. |
1991 - A FUNAI indeniza algumas casas habitadas por não-índios em Mirandela e famílias kiriri as ocupam. |
1995 - Os Kiriri ocupam Mirandela, retirando todos os não-índios ali incidentes. |
1996 - Os Kiriri ocupam o povoado Gado Velhaco, situado a 2,5 Km de Mirandela. |
1997 -Os não-indios desocupam o povoado Baixa da Cangalha. |
1998 - Os Kiriri ocupam os povoados de Marcação, Araçá, Segredo e Pau Ferro, retirando as últimas famílias de não-índios residentes na Terra Indígena. |
Localização
A Terra Indígena Kiriri localiza-se no norte do estado da Bahia, nos municípios de Banzaê (95%) e Quijingue (5%), em uma região de clima semi-árido, faixa de transição entre o agreste e a caatinga ("boca de caatinga"). O relevo da área é irregular, com ocorrência de morros tabulares e encostas entremeados por extensas planícies. Os cursos d´água são intermitentes em vista da baixa incidência pluviométrica anual. Observa-se uma acentuada devastação nativa, um processo acelerado de erosão provocado por mais de três séculos de exploração econômica. Mirandela, centro da Terra Indígena, situa-se a 24 Km a noroeste da cidade de Ribeira do Pombal, mais importante centro econômico da região.
Os núcleos tradicionais de ocupação kiriri - Sacão, Baixa da Cangalha, Cantagalo, Lagoa Grande, Cacimba Seca - foram substituídos pelos povoados antes ocupados por regionais: Mirandela, Gado Velhaco, Marcação, Araçá, Pau Ferro, Segredo, Baixa do Camamu, Baixa da Cangalha ("Biombo").
Atividades produtivas
Os Kiriri praticam, de modo geral, uma agricultura voltada para a subsistência, comercializando, de forma esporádica e em pequena quantidade, excedentes das suas roças de cultivos temporários - compostas basicamente de mandioca, feijão e milho - e algumas verduras cultivadas nas exíguas hortas, localizadas preferencialmente nos quintais das casas de moradia. Do montante da produção, parte é aprovisionada para consumo doméstico durante o ano, parte reinvestida imediatamente em insumos e em outros artigos necessários à reprodução da unidade familiar. Outra estratégia freqüentemente utilizada é a constituição de uma pequena reserva destinada tanto à aquisição gradual de bens, quanto de sementes para o próximo plantio.
As atividades econômicas dos Kiriri se encontram, de certa forma, orientadas para o mercado regional, haja vista que a especialização dos bens produzidos, assim como a natureza da agricultura praticada, restringem as possibilidades de existência de uma economia semi-autárquica, determinando uma ativa comunicação com os centros comerciais mais próximos, aos quais os Kiriri se dirigem freqüentemente para comercializar seus produtos a fim de adquirir gêneros de primeira necessidade não produzidos localmente, tais como carne, café, óleo, açúcar, sal, além de diversos outros artigos de consumo menos imediato.
Ao mercado também se destina, com certa periodicidade, o produto da coleta de frutos silvestres, como caju, umbu e pinha, além de, mais esporadicamente, um artesanato trabalhado em cerâmica e trançados. Supõe-se, com base em informações coletadas por Bandeira em fins da década de 1970, que historicamente este artesanato tenha chegado a alcançar um peso significativo na economia kiriri, constituindo-se ainda, por outro lado, em um dos fatores de diferenciação e de discriminação étnica. Nos últimos anos, fruto da intensificação do contato entre povos indígenas, os Kiriri passaram a produzir, embora em pequena expressão, colares e outros adereços semelhantes àqueles comercializados pelos Pataxó, em Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália.
Os ciclos de plantio e colheita de cada cultivo devem se articular de forma a prover a subsistência mínima do grupo doméstico durante o ano agrícola. O feijão branco, também conhecido como "carioca" ou "de arranca", é, entre os Kiriri, plantado em associação com o milho e à mesma época: de fins de abril a fins de maio, sendo a colheita realizada a partir de agosto. Já o feijão "verde" ou "de rama" - o "ligeirinho" - também consorciado com o milho, é plantado em fevereiro, sendo colhido normalmente de março até meados de julho. A mandioca, cultivo de ciclo razoavelmente longo - de um ano e meio a dois -, é colhida nos meses de junho, julho e agosto, quando principiam as "farinhadas".
Os Kiriri dispõem atualmente de casas-de-farinha motorizadas, comunitárias, implantadas pela Funai, que progressivamente substituíram as manuais, de propriedade familiar. Nestas novas unidades, cada grupo doméstico processa livremente a sua produção, pagando uma taxa de utilização - ao órgão tutelar ou aos seus administradores, no caso, os conselheiros, em cada núcleo - correspondente em farinha, ao óleo consumido.
Seguindo o padrão camponês regional, a família nuclear kiriri é a unidade básica de produção e consumo, e o trabalho de todos os seus membros, desde a infância, é constante e necessário à sua reprodução sócio-econômica. A diversificação das roças, muitas vezes distantes umas das outras, constitui uma medida de prevenção contra eventuais fracassos numa ou noutra área, tanto em função da escassez de terrenos férteis, quanto da necessidade de melhor aproveitar as diferentes modalidades dos solos disponíveis.
Além do trabalho realizado no âmbito restrito da unidade doméstica propriamente dita, persistem estratégias de cooperação interfamilial, comumente denominadas de "batalhões", ou "adjuntos", nas quais participam, de modo geral, apenas membros do grupo étnico. Trata-se de uma das formas nas quais se reveste a "troca de dias", que, diferentemente do trabalho "contratado", ou "alugado", se caracteriza por uma simetria nas relações entre as partes envolvidas. Com base nos grupos de parentesco, ou de vizinhança, um batalhão reúne um número variado de indivíduos que acordam entre si, de modo que, a cada dia, a roça de um seja trabalhada por todos. Aos denominados "donos" do batalhão - donos da roça a ser trabalhada - compete fornecer a alimentação necessária ao "grupo de trabalho" assim constituído.
Outra forma de "adjunto" observada entre os Kiriri é o "batalhão convocado", que se destina à execução de tarefas eventuais, tais como a construção de casas de moradia, escolas ou mesmo a abertura de novas roças. Para a ocasião, convida-se com antecedência, comparecendo um número significativo de "parentes", vizinhos e amigos, que compartilham da comida e bebida que houver.
Nas roças kiriri, como nas de outros segmentos camponeses da região, é utilizado um instrumental tecnológico que inclui basicamente enxadas, enxadecos, tombador, arado, foice, entre outros. De modo geral, os índios não dispõem de insumos, tais como adubos artificiais ou agrotóxicos ("venenos"). No plantio, observam com freqüência a associação de cultivos e sua sucessão alternada, práticas tidas como adequadas às reduzidas extensões dos terrenos disponíveis para agricultura.
Dada a exigüidade de bens de produção, o fator solo se reveste de especial importância, determinando a produtividade do agricultor. Sem adubos e aditivos para recuperar o solo, a localização e fertilidade naturais da terra são fatores decisivos para os Kiriri.
As atividades do ano agrícola obedecem a uma variação, sazonalmente determinada, da intensidade do trabalho requerido, assinalando uma diferenciação entre os períodos de inverno e verão, que caracterizam o calendário agrícola e, por extensão, o ritmo de vida da região, concentrando ou dispersando a mão-de-obra disponível. Durante os períodos críticos do verão, quando diminui a quantidade de trabalho necessária à manutenção das roças individuais e comunitárias, torna-se muitas vezes imprescindível a recorrência a outras estratégias de reprodução, sendo muito comuns, nestas épocas, práticas como a "empreitada" ou a "diária" - formas de assalariamento - e mesmo a migração.
O ritual do Toré
Em 1974, líderes kiriri organizaram uma caravana com cerca de cem índios à Terra Indígena Tuxá, localizada em Rodelas, norte da Bahia, em princípio para realizar um jogo de futebol entre os dois povos, mas já com a clara intenção de assistir ao ritual Toré realizado por aqueles índios e aprendê-lo. O Toré é parte de um conjunto mais amplo de crenças - no centro do qual se encontra a jurema - que, muito provavelmente, podem vir a ser agrupadas em um complexo ritual comum aos povos do sertão (Cf. Nascimento, 1994). Entre os índios no Nordeste, o Toré representa um símbolo de união e de etnicidade, fornecedor de elementos ideológicos de unidade e de diferenciação e, portanto, fonte de legitimação de objetivos políticos.
O processo de adoção do Toré é melhor viabilizado no plano simbólico, por um lado, pela sua relação com certas práticas xamanísticas então vigentes entre os Kiriri, selecionadas com atenção ao critério de representatividade étnica. Com a entrada em cena do Toré, essas práticas foram progressivamente deslegitimadas e os que não se adaptaram aos procedimentos utilizados no ritual, que não "aliam seus guias aos guias do Toré", foram marginalizados, impedidos de "trabalhar".
Sobre a estrutura do Toré aprendido, os Kiriri introduziram novos elementos: seus "encantados" (seres sobrenaturais), acrescentados àqueles tomados de empréstimo dos Tuxá, progressivamente assumiram lugar de destaque; ao repertório melódico original, os Kiriri adicionaram seus próprios toantes e mesmo as bases coreográfica e de vestuário têm passado por inovações (Martins, 1985).
O Toré é geralmente realizado aos sábados à noite - com uma interrupção apenas nos períodos da quaresma - em amplos terreiros junto aos quais há sempre algum recinto fechado, onde se deposita o pote com a "jurema" e se desdobram as seqüências privadas do ritual. A cerimônia tem início com a concentração de pessoas nas imediações do terreiro e no recinto fechado onde principia a defumação que, em seguida, se estenderá ao terreiro, através de grandes cachimbos de madeira de formato cônico, com desenhos em relevo. Inicia-se também aí a ingestão da "jurema", que se intensificará durante a dança, distribuída sempre pelo conselheiro local ou por outra figura de relevo na hierarquia ritual e política. Passando-se ao terreiro, prosseguem os trabalhos de "limpeza", comandados pelo pajé, quando então, através do uso de apitos, os "encantados" são convidados a participar. Começam os cantos e as danças, inicialmente em fila indiana, com o pajé à frente, seguido pelos homens, mulheres e crianças, nesta ordem. A fila serpenteia pelo terreiro em movimentos progressivamente elaborados à medida em que os toantes se sucedem, intensificando o envolvimento dos participantes, até o clímax que sobrevém com a "chegada" dos "encantos", perceptível nos evidentes sinais de incorporação apresentados pelas "mestras".
A esta altura, as disposições se alteram e a hierarquia horizontal da fila indiana cede lugar a movimentos em torno dos encantos, que ocupam posição central no terreiro e pouco se deslocam, enquanto principiam a falar numa língua pretensamente indígena, ritual que consiste numa seqüência de sons bastante recorrentes e incompreensíveis para os Kiriri de hoje. São, em seguida, conduzidos ao recinto - a "camarinha" - onde serão consultados com relação aos mais diversos temas, fornecendo conselhos de caráter genérico, que, via de regra, reproduzem os ideais de unidade do grupo. Os interlocutores e intérpretes principais das suas mensagens são as lideranças políticas dos Kiriri e, em especial, os pajés (Rocha Jr., 1983).
Língua e organização social
Falam hoje apenas o Português, embora utilizem esporadicamente alguns fragmentos do dialeto kipeá, da família lingüística Kariri.
No final da década de 1980, os Kiriri duplicaram a sua estrutura política, passando a se organizar em dois segmentos faccionais - atualmente as unidades mais efetivas da ação política formalizada no grupo - lideradas por seus respectivos caciques, pajés e conselheiros. Cada cacique é auxiliado por seus conselheiros, "chefes locais" responsáveis pela administração dos núcleos, que compreendem a menor unidade política kiriri. Historicamente, esses núcleos são as áreas nas quais esses índios foram se fixando, enquanto iam sendo rechaçados, desde o fim do aldeamento missionário, de seu centro, em Mirandela. Cada um desses núcleos, num total de seis, submete-se à autoridade de um conselheiro, secundado por um "ajudante". Os povoados, extrusados recentemente, submetem-se à autoridade dos conselheiros dos núcleos a eles adjacentes.
Entre a população kiriri, há uma migração de caráter mais ou menos permanente resultante de conflitos políticos e da fragmentação por herança. Os Kiriri realizam ainda, com relativa freqüência, migrações sazonais, verificando-se o retorno invariavelmente nas épocas de plantio e colheita. Dirigem-se principalmente a São Paulo e Rio de Janeiro, ou para regiões mais próximas, como Sergipe, ou mesmo para fazendas nas vizinhanças. Nesses locais, submetem-se a longas jornadas de trabalho, por um tempo que lhes permita a acumulação de um capital mínimo, que deverá ser reinvestido na área de origem, viabilizando assim a própria reprodução da condição camponesa.
Fontes de informação
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