Katukina do Rio Biá
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- AM 2004 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
- Katukina
Os Katukina do Biá chamam a si mesmos de Tükuna, termo semelhante à autodenominação kanamari, significando "gente". Os dois povos falam variedades da mesma língua e compartilham inúmeros aspectos culturais, mas os Katukina são singulares em relação a seus próprios mitos, rituais e formas de organização social. Conseqüentemente, têm sua própria maneira de lidar com os desafios que os 150 últimos anos lhes trouxeram.
Localização
Os Katukina moram no Rio Biá, afluente do Rio Jutaí, no estado do Amazonas. O Jutaí está situado entre os rios Juruá e Jandiatuba, ambos afluentes da margem direita do Alto Solimões. Somam aproximadamente 450 indivíduos, distribuídos em seis aldeias da boca até a cabeceira do Rio Biá e em seu principal afluente. Até pouco mais de dez anos atrás, as aldeias eram compostas de uma só maloca, oblong, chamada de hak manya ou hak nyanin (literalmente "casa grande"). Hoje as aldeias são compostas de casas em estilo regional sob palafitas e abrigam basicamente uma família nuclear (pai, mãe e filhos).
A homologação da Terra Indígena do Rio Biá não tem impedido invasões na área do Ipixuna, no extremo-leste da terra, principalmente de moradores da cidade de Carauari. Os Katukina são também solicitados por ribeirinhos ou por outros povos, como os Tikuna, para entrarem na TI principalmente no verão para pescar. Mas o principal lugar de interação dos Katukina com outras populações não é mais o Bia, e sim as cidades aonde vão no intuito de comprar e vender produtos, assim como receber salários (para os agentes de saúde e os professores). Essa mudança de perspectiva traz um maior conhecimento do mundo dos brancos e uma lenta integração ao cenário político social do Alto Solimões, particularmente das organizações indígenas.
Histórico
Etnônimos como Katukina, Kanamari e Kulina foram utilizados para designar povos bem diferentes ao longo da história e em diversos lugares. Isso se deve a uma classificação dos primeiros colonos do Juruá entre índios “dóceis” e “rebeldes”, entre os quais os termos Kanamari/ Katukina/ Kulina estavam associados ao primeiro tipo, enquanto os Kaxinawa eram identificados com o segundo. Com o propósito de fugir das expedições de captura e matança dos colonos brasileiros, muitos povos adotaram os etnônimos Katukina, Kanamari e Kulina.
Os Katukina falam de um tempo em que viviam com os Kanamari nas cabeceiras dos afluentes do Biá, circulando entre este rio e o Mutum. Nessa época os Katukina eram nômades, não cultivavam mandioca e tinham uma alimentação à base de milho e de um cipó, tyiwi, que tem um tubérculo cuja goma é comestível. Um conflito entre os Kanamari os teria levado a deixar o Biá. Há dados lingüísticos que permitem estimar essa separação há mais ou menos duzentos anos.
A época da borracha trouxe peruanos e seringueiros para o Bia, mas a baixa qualidade do látex extraído naquela região protegeu os Katukina de uma invasão maciça. Durante todo o século XX, os katukina sempre foram mais numerosos, mas conviveram com brasileiros e peruanos no Bia, seja morando, seja viajando em busca de mão de obra. Os Katukina contam muitas histórias de quando os brancos subiam de recreio vazio e voltavam cheios de Tükuna provavelmente levados à força para trabalharem em outros lugares.
Em torno de 1920 os Katukina também tenham interagido com povos do Alto Solimões. Indivíduos Kambeba, Cocama e Miranha subiram até o Bia e alguns se casaram com indivíduos Katukina. Em meados dos anos 40 um grupo Kanamari, provavelmente originário do Rio Mutum, desceu o Jutaí e se instalou no Bia. Deviam estar fugindo dos ataques de outro grupo e dos patrões brancos. Não se casaram com os Katukina, mas houve intercâmbios, incluindo conhecimentos e serviços xamânicos. Em razão de um conflito que resultou na morte de um Kanamari, esse grupo foi embora e é provável que seja o que hoje em dia mora no Japurá, na margem esquerda do Solimões. Posteriormente um grupo Kulina (madiha, de língua arawa) se instalou no Biá. Pela fama de terem grandes e poderosos xamãs, os Kulina são temidos pelos Katukina. Porém, após a demarcação da Terra Indígena os Kulina foram se instalar no curso mais baixo do Jutaí, numa tentativa de obter a demarcação da própria terra
Mitologia
A mitologia katukina faz parte do complexo regional, girando em torno de dois heróis culturais criadores do mundo, dos Tükuna, dos outros índios e do "branco": Tamakori e Kirak. Ao contrário dos Madiha e em conformação com os Kanamari, Tamakori exerce quase sempre o papel do sábio e Kirak o papel de quem estraga tudo. Mas são os estragos de Kirak que criam o mundo tal como ele é: por exemplo, por chorar na morte do seu filho condenou os Tükuna a não ressuscitarem após a morte. Ele é visto como uma criança, não fisicamente mas em relação ao saber, e a voz dele é de uma criança, sempre perguntando para o irmão o que vão fazer agora.
A jornada de Tamakori e Kirak entre os Katukina se diferencia dos Kanamari por não ser relacionada diretamente à criação dos rios e não se passar durante uma jornada rio abaixo. A origem da água terrestre é contada em um mito em que não aparecem Tamakori e Kirak. Todavia, a gesta de Tamakori e Kirak aparece bem como a formação do mundo atual, sendo o céu produto de sua ação, a partir de um pedaço de terra arrancado e levado pouco a pouco, ao som dos cantos do Kohana (principal festa Katukina). Tamakori e Kirak também dão origem às diferentes populações humanas, cada uma com seu conhecimento próprio, como as cidades para os brancos e os rituais Kohana e Alao para os Tükuna. O Kohana foi cantado pela primeira vez por Tamakori, e o Alao é o ritual de Kirak. Na jornada desses heróis também é criada a primeira mulher.
No fim do mito eles se separam, de modo que Tamakori vai morar no leste e Kirak no oeste, cada um com seu povo. Eles moram onde o céu encontra a terra e de lá não influem diretamente na vida dos Tükuna. Estão presentes através dos ciclos da lua e do sol comandados pelos mesmos, ou durante eventos como os arco-íris. A chuva também vem deles, chuva grande do leste por Tamakori e chuva rara e fina do oeste por Kirak.
A mitologia katukina não é formada unicamente pelo ciclo de Tamakori. Existem vários outros mitos protagonizados por animais sob forma humana ou humanos, chamados de pai kidak, termo de parentesco pelo qual são chamados os homens da geração dos bisavós. Nesses mitos são tematizadas as relações com animais, com espíritos de árvores ou seres poderosos como o adyaba i tyai (um ogro devorador de criança, "adyaba de dente comprido"), o adyabatiri (dono do poder de caça que deu origem ao uso do veneno da Phyllomedusa sp para fins propiciatórios). Segundo os Katukina, esses mitos explicam como os bichos viraram bichos mesmo, ou seja, explicam a diferenciação das espécies a partir de um mundo onde os animais têm atributos da humanidade, permitindo uma comunicação inter-específica.
Mas a mitologia katukina reflete também a história katukina. Por exemplo, no mito de Tokaneri, herói que viaja pelas aldeias transformando os habitantes em animais de acordo com o que eles comem. Os comedores de peixe viram ariranhas, os comedores de oxi (fruta gordurosa) viram queixadas... E é com a ajuda de um livro que ocorre a transformação: ele simplesmente escreve no livro "quem come isso vai virar tal bicho" e pronto. No fim do mito ele morre engolido por uma sucuri gigante, antes de transformar toda a humanidade. Um segundo exemplo de mito incorpora a estória de Pedro Malazarte, presente no folclore nordestino e que circulava nos seringais. Para os Katukina, Pedro é um índio enganando o branco, e as aventuras são as mesmas, diferindo só na parte final, quando Pedro sobe ao céu, encontra Adão e Topana. Este o manda de volta à terra para verificar o que aconteceu depois de um dilúvio. Lá Pedro começa a comer os mortos e se transforma em urubu, enquanto Topana desce com o livro para recriar a humanidade e os bichos.
Cosmologia e xamanismo
Depois de organizarem o mundo tal como é hoje, Tamakori e Kirak se retiraram e não influenciam diretamente a vida cotidiana e ritual dos Katukina. A manutenção do mundo ocorre por meio do ciclo do sol, originado por Kirak e da lua, por Tamakori. Topana foi então incorporado no lugar central que ele tem nas religiões cristãs: no céu, ligado ao destino depois da morte. Todavia essa figura é instável e seu papel varia de acordo com o contexto, podendo ser um equivalente a Tamakori, ou então Tamakori pode "trabalhar" para ele, ou ainda ele pode estar num outro céu, dos brancos, nesse caso sem influência na vida e morte dos Katukina.
O mundo onde os Katukina vivem é um patamar intermediário entre dois céus e os mundos subterrâneos cujo conhecimento é menos difundido, podendo ser um só ou vários... O primeiro céu é o Kodohdi, que é formado por uma parte arrancada do "nosso mundo" por Tamakori e Kirak. É ali que vivem os mortos dançando e comendo. Ele é similar a este mundo, com animais, frutas e espíritos. Acima dele há o Ipina, lugar mais triste ("tudo de ferro"), onde vão os que foram mordidos por cobra (mesmo sobrevivvendo), aqueles que foram mortos e os matadores. Embaixo há o mundo dos Don Mïn Pönhiki, "gente das vísceras de peixe". Esse mundo é similar ao mundo dos Tükuna, mas lá a água é clara, pura, e a predação é limitada. Ali os humanos tem uma pele branca e caçam muito pouco, sendo mais pescadores, e lá não tem onça nem cobra. As passagens entre esse mundo e o dos Tükuna geralmente são nas cabeceiras dos igarapés, chamadas de wiri mï, "buraco das queixadas". Esses lugares servem de ponto de fuga para as queixadas e outras presas das caçadas. No patamar inferior haveria também outros humanos, mas não se sabe muita coisa sobre esse mundo, pois não existem relatos de quem tenha ido até lá, como existe para o primeiro céu e o primeiro mundo subterrâneo.
O patamar dos Tükuna pode ser dividido em três grandes ambientes: o ityonin, a floresta onde vivem os humanos; o mundo subaquático, domínio dos espíritos da água, os hïmanya; e o mundo de dentro da terra, que é dos espíritos baradyahi. A interação entre esses três ambientes constituem o cotidiano dos Katukina. O domínio de caça dos humanos e dos espíritos é o mesmo, a floresta (o ityonin), nesse sentido são concorrentes. Esses espíritos tem relações especiais com alguns animais que são presas dos humanos, por isso é preciso ter muito cuidado para andar no mato ou remar no rio, afim de não despertar sua ira. Em certos casos esses espíritos podem ser considerados protetores de algumas espécies de animais.
O termo usado para designar os espíritos é owei, mas esse termo não se aplica só às entidades que moram no patamar dos Tükuna, mas também àquelas no patamar celeste. Os owei celestes interagem de maneira diferente com os Katukina e são fundamentais nas festas.
Os “espíritos” da terra
O primeiro tipo de espírito que pode se encontrar no patamar onde vivem os Katukina são os ogros baradyahi e hïmanya. Esses seres não moram na terra, mas podem ser vistos caçando na floresta. Os baladyahi moram dentro da terra em aldeias grandes, são pretos e podem subir na terra pelos barrancos. Os hïmanyan são a contra-parte aquática dos baradyahi, provocando as turbulências nas águas. São descritos ora como grande cobra, ora como boi (quando saem da água), mas podem ter aparência humana (especialmente para o xamã). De fato existem vários tipos de hïmanyan e esse termo designa ora todos os espíritos da água, ora um especifico associado às piranhas, o qual aparece sob forma de cobra. Existe também o espírito hïdak, protetor dos quelônios, e o espírito kotomoknin, protetor das antas. Os baladyahi eram Tükuna, mas por terem matado e queimado Kilak, Tamakoli os levou ao barranco e os deixou afundarem no barro. Os hïmanyan moram na água, sendo o tracajá seu banco, a sucuri sua corda e o jacaré sua “vovó”.
No mato vivem os owei das árvores, pequenos espíritos ligados a algumas espécies altas. Eles moram na árvore em casal, o macho na copa da árvore e a fêmea nas raízes. Normalmente são invisíveis, mas se você fica por alguma razão uma noite no mato, pode ouvir e até vê-los. Esses espíritos são temidos pelos Katukina em virtude de seus poderes xamânicos e capacidade de roubar almas (wäko tan) para transformá-las em espírito (sobretudo os hïmanyua e baradyahi). Eles são atraídos pelo cheiro do sangue, que indica que um animal protegido foi matado, bem como o cheiro do sangue menstrual, o que leva os Katukina a tomarem grande cuidado na hora de cortar presas ou peixe (longe da água, cuja correnteza levaria o cheiro para lugares aonde têm espíritos), e traz restrições para o casal em resguardo pós-parto ou durante a menstruação (como não tomar banho no rio, e evitar sair na floresta...)
Ao contrário dos outros, o terceiro tipo de owei que pode se encontrar na terra é menos temido, o “owei alma”. Esse é um dos componentes da pessoa que se separa no momento da morte, quando diversas “almas" são liberadas ou aparecem e cada uma delas tem seu próprio destino “pos-mortem”:
-wäko tan, “alma verdadeira”, aquela que tem um destino pos-mortem no céu, onde passa a viver como na terra. Inicialmente ela sai do corpo e sobe diretamente. Quando viva manifesta-se pela fala, koni, e sob a forma do sangue (mimï) e do coração (diyahkon). Essas emanações vão para o céu, pois o morto “não precisa mais delas”. É essa alma que é o alvo dos ataques dos espíritos.
- alma owei, é dita um resíduo da alma verdadeira que não sobe ao céu, sendo possivelmente um tipo de sombra, ou duplo. Ela pode tomar a forma de um rato e ficar perto das aldeias, vigiando os parentes do defunto e carregando sua saudade. Pode provocar leve doença, principalmente diarréia, mas não por maldade, não tendo poder xamânico.
- alma onça, pïda, essa é a parte em nós que gosta de comer carne, visível através do “sangue grande”. Essa alma vai virar uma onça de verdade, a menos que um pajé a capture.
- alma boto cor-de-rosa, wapikaru, contra-parte aquática da alma onça, corresponde a parte em nós que gosta de peixe; ela é visível através do pulso, mas não nos braços. Se não é familiarizada pelo pajé, vira boto de verdade.
- alma lontra pequena, wodyon, corresponde ao pulso e veias dos braços. Como as duas precedentes, vira lontra se não for familiarizada pelo pajé.
Os espíritos auxiliares do xamã
Os espíritos auxiliares do xamã, tanto na espionagem quanto nas comunicações com outros xamãs ou na guerra, são também chamados de owei. Portanto não são nem espíritos das árvores familiarizados, nem baladyhi ou hïmanyan. São também considerados pajés por seus poderes de agressão. Os owei auxiliares do pajé são de fato uma “criação” dele, que passa por um processo de captura ou familiarização das diversas almas dos mortos.
O xamanismo Katukina é muito parecido com o xamanismo Madiha e Kanamari, localmente chamados de xamanismo de "pedra", pois usam agentes patogênicos que podem ter a aparência de pedra, em Kanamari e Katukina, dyohko. É ele que provoca a doença e, na cura, o xamã tem que extrair o dyohko do corpo do paciente afim de assegurar sua recuperação. Para se tornar xamã é preciso aprender a controlar um dyohko que um outro xamã vai colocar em você, o qual vai permitir a comunicação com o mundo dos espíritos e a aquisição de mais dyohko, sugando os dos pacientes ou trocando com outros pajés. Mas a diferença entre o xamanismo entre os Katukina e os Kanamari está no fato que os dyohko não são as únicas ferramentas dos xamãs, pois eles têm a possibilidade de controlar e até criar espíritos a partir de partes de animais, como pelos do jaguar, mas sobretudo a partir das almas.
À exceção das “almas verdadeiras”, todas podem ser familiarizadas pelo pajé por meio de técnicas específicas. Assim, para conseguir uma alma-onça ele vai ter que lutar e capturá-la, o que só é possível aos baohi tan (baohi=pagé; tan=verdadeiro). Com as outras almas basta conversar e negociar. Mas essa familiarização é só o início do processo que vai converter essas almas em auxiliares do xamã. Uma vez as almas sob controle, dentro da barriga dele, o pajé deve pouco a pouco moldá-las, colocando dyohko nelas. No caso da onça, para torná-la mais forte e convertê-la numa arma poderosa que pode ser enviada longe para matar. São esses espíritos auxiliares que o pajé envia para espiar uma aldeia inimiga, ou para dizimá-la. Já falei que pajé se diz baohi, mas pode também ser designado por owei wara-hi, que significa “dono-corpo” de owei. De fato o poder do xamã está na capacidade de conseguir espíritos auxiliares, e não nas coleções de dyohko que pode adquirir.
Os espíritos celestes
Os espíritos celestes são bem diferentes daqueles dos patamares inferiores, pois não são espécies, mas sim personagens individualizados. Contudo, são também chamados de owei. Esses espíritos têm nomes e aparência específica. Por exemplo, o Kodomari é descrito com uma aparência humana, grande, branco e de cabelo preto e comprido. Eles são poderosos e temidos pelos katukina, pois podem mandar dyohko potentes.
No entanto, eles não são deuses caçadores de humanos, e descem à terra apenas nos rituais. A cada ritual um ou dois desses deuses descem nas aldeias para verificar se os Tükuna estão fazendo como tem que ser feito. Esses deuses vêm para vigiar as festas e beber os diferentes mingaus, mas têm uma vida própria e podem brigar até se matar. Se há coisas erradas nos Tükuna, eles castigam mandando dyohko. Essa ligação com as festas faz com que eles possam ser nomeados em função da festa onde atuam. Assim, na festa pïda, “onça” ou espírito se chama pïda-wara. Aqui se reconhece a mesma sufixação de wara (corpo-dono) usado para nomear os espíritos das árvores.
No primeiro patamar celeste as almas vivem como na terra. Dançam (o que provoca trovoadas), comem, caçam, têm roçados grandes, com muitas frutas de grande tamanho. No patamar celeste, devido a igualdade entre o mundo aonde vão as almas verdadeiras e o mundo terrestre, se encontram também os espíritos das árvores, mas eles não interferem na vida na terra. De maneira geral os produtos do roçado na terra foram trazidos por um ser celestial que casou com uma mulher Tükuna. No momento da morte as almas verdadeiras vão diretamente a esse mundo, mas elas podem voltar para beber água que foi deixada acima do túmulo onde se encontra seu corpo.
Nessa subida para o céu, há uma versão em que as almas chegam, são recebidas com festas, casam logo e passam a viver felizmente. O destino é diferente apenas para aqueles que foram mordidos por cobra, que vão atravessar esse patamar e entrar no Ipina. Lá vão também as almas dos matadores de gente e suas vítimas, as quais chegam primeiro para vingar a sua morte. Uma vez flechado, o matador cai de novo na terra e se transforma em cogumelos em árvores podres. Somente uma parte da alma volta para o Ipina, de tamanho menor.
Mas há também uma versão em que as almas não se vingam e passam a ser responsabilidade de Topana, o que ocorre fora do Ipina. Quando as almas chegam no céu, depois de terem evitado uma onça predatória, elas são recebidas por Topana, que vai furar-lhes os olhos. Quando escorregar, o líquido do olho vai se transformar em chuva (trovoadas e chuva são tidas como sinal que a alma chegou bem no céu, que teve olhos furados e dança). No caso dos matadores, Topana se recusa a furar os olhos e os manda de volta sob forma de cogumelo. Topana aparece então como um deus controlador do céu, julgando as almas dos recém mortos. Todavia, apesar de ser colocada numa posição importante no céu, a figura de Topana não se encontra presente na principal ligação que une os vivos com o mundo celeste: os rituais.
Rituais
Os rituais katukina são momentos privilegiados de comunicação com o patamar superior, através da chegada dos espíritos celestes para supervisionar os cantos e as danças realizadas pelos Katukina.
Existem seis rituais ligados ao mundo superior, envolvendo espíritos celestes:
- ritual Kiok dyuku: o espírito celeste se chama yokdai;
- ritual Barakohana: Marin, muito poderoso e temido;
- ritual Kohana: Kodomari, grande xamã, é o dono do obadin, rapé de tabaco insuflado no nariz, e ele se alegra quando tem rapé e fica com raiva se faltar. É descrito como branco de cabelo comprido, preto e liso. O outro owei dessa festa é Baide, que fica no céu, descendo somente se tem coisas erradas, para castigar.
- ritual Pïda (Pïdakidak): pïda-wara.
- ritual Adyaba (Adyabakidak): Adyaba(kidak)-wara.
- ritual Arao: Arao-wala e Daho. Dizem que Daho não existe mais, pois foi devorado por Pïdawara, restando somente sua alma.
Existia mais um ritual, o pïda nyanin, mas os Katukina perderam seus cantos. Esses rituais acontecem sempre à noite e são constituídos de um repertório fixo de cantos ordenados. A preparação começa pela busca da comida e dos produtos para a preparação das bebidas não fermentadas. A fabricação dos mingaus é uma tarefa feminina, sendo preparados com produtos do roçado que as mulheres vão buscar. Se for do mato, são os homens, o organizador “dono-corpo” e parentes próximos.Em seguida os homens vão comer juntos, na praça de dança. Depois passa a ser no hokanin ("espaço limpo"), praça situada fora da aldeia, um pouco escondida em caminhos alternativos do roçado ou de caça. Então os homens vão comer, contar mitos e histórias e se vestir para as festas, passando as saias dos diferentes rituais. As saias são feitas no dia das danças no mato, sempre no mesmo lugar. Nessa praça se encontra o oman ton kiorikidak (oman = árvore, pau; ton= sobre; Kiori= saias dos ritual; Kidak=velho), tipo de mesa feita de um tronco abatido, a um metro do chão, onde são depositadas as saias depois das festas. Elas são deixadas até apodrecer. É também nessa praça que acontece boa parte da iniciação do pajé, em que o aprendiz toma muito rapé e o xamã coloca dyohko nele. Ainda, é debaixo dessa “mesa” que os espíritos celestes dormem quando estão na terra.
As máscaras dessas festas, mesmo diferentes para cada uma, obedecem um padrão geral, somente as “saias” (como eles chamam as roupas de festa) do Kohana variam um pouco mais. Feita de uma peça, elas cobrem o corpo inteiro, da cabeça aos pés, e são compostas de folíolos de buriti. No Barakohana e no Adyabahkidak, a saia é uma simples coroa de folíolo de buriti que cobre o corpo da mesma maneira que o kiori. No Kohana, a saia é composta de três partes diferentes, feitas da casca de uma árvore, matyiridak, e de penas de garça. Mas o princípio é o mesmo: a casca da árvore é cortada em lâminas que são penduradas na frente e atrás, cobrindo o corpo; já as penas servem para cobrir o rosto. No fim do Kohana, as penas são retiradas e as duas partes feitas de casca são juntadas e colocadas na cabeça. O resultado é muito semelhante a um kiori.
Os cantos e as danças começam logo no pôr do sol. Os homens que comeram no hokanin vestem as saias e chegam na praça de danças, mas nem todos vão cantar os primeiros cantos. O "dono-corpo" da festa vai liderar todos os cantos, e os parentes próximos, genro e cunhado, começam cantando primeiro. Depois, perto de meia-noite, todos vão poder cantar. Na “praça de dança” (espaço limpo entre as casas ou atrás delas), os homens se dispõem alinhados e mascarados, tendo geralmente numa ponta o cantor, "dono-corpo" da festa, que é quem vai primeiramente cantar, e os outros só repetem.
Quando começa a cantar, a mulher dele se posiciona na sua frente e responde. Isso dura alguns minutos e depois o cantor transmite o canto ao homem que vem imediatamente ao seu lado, que passa a liderar o canto. Nesse momento sua mulher se posiciona na frente dele, ao lado da mulher do cantor, e começa a cantar, assim até que todos os homens presentes na praça tivessem liderado o canto, pelo menos aqueles que sabem. Durante o canto as linhas de mulheres e homens giram em torno de um centro que corresponde ao cantor/dono. Podem acontecer também alguns movimentos de frente para trás e de trás para frente, bem como um passo das mulheres que batem o chão e fazem soar as moedas que elas têm nas pernas ou no pescoço.
Cada canto pode durar de um a vinte minutos, conforme o momento e o número de homens que vão cantar. Cada ritual pode ter de 45 até 80 cantos, cada um deles falando de um animal ou de uma planta/árvore. São curtos e algumas palavras são repetidas de tal maneira a dar a impressão de um diálogo entre o homem e a mulher. Cada canto não é repetido em outros rituais e cada ritual tem uma ordem a ser seguida.
Quando o dia está para chegar, os cantos param e pode haver várias “brincadeiras”, por exemplo a que os homens chegam nas aldeias com galhos que têm frutas em lugar de folhas, e cada mulher deve procurar os frutos do marido.
Esse é o padrão geral dos rituais katukina, a despeito de cada um ter algumas particularidades. O "dono-corpo" da festa é sempre o mesmo, e cada aldeia tem um dono para cada ritual (à exceção do kohana, por ser a mais importante e necessitar da reunião de várias aldeias). Sua transmissão é de suma importância política, e geralmente cada facção política dentro de uma aldeia tem um cantor de ritual.
Se o dono-corpo "político" de um ritual é um homem, o dono-corpo do ritual nos fatos é um casal, formado pelo cantor e sua mulher. Um homem sozinho ou uma mulher sozinha não pode participar do ritual e ainda menos organizá-lo. A origem desses rituais é diversa, mas os dois primeiros que são os mais importantes e servem de modelo aos outros são o kohana e o arao, que foram dados aos Katukina respectivamente por Tamakori e Kirak. Os outros são de origem dita alheia, como o Kiok dyuku (que seria dos om dyapa, sub grupo kanamari), ou feito de um herói chamado Kamo. Os cantos dos rituais falam de assuntos variados, sendo que boa parte canta um animal ou uma árvore, nesses casos o animal ou a árvore é dito dono-corpo do canto.
Durante a execução dos cantos e das danças os espíritos do ritual não participam diretamente, a não ser comendo e bebendo, mas eles assistem ao ritual e o fiscalizam. Por isso os homens mascarados não são personificações desses espíritos.
Organização social
Na literatura indigenista e etnológica, os Katukina geralmente são conhecidos como os pïda dyapa, denominação dada pelos Kanamari. Os Katukina não reconhecem essa denominação, porém o termo de dyapa é conhecido. Como entre os Kanamari, ele é acoplado a um nome de animal (com exceção de um caso de nome de árvore), no modelo X-dyapa. Os Katukina podem também usar a expressão X-pönhiki. Hoje em dia os dyapa não têm mais incidência na vida social dos Katukina, os mais velhos falam que esses segmentos eram endógamos e localizados, mas a história Katukina tornou-os totalmente inoperantes tanto nas escolhas dos parceiros quanto da moradia.
Os Katukina, porém, podem ser divididos em três grupos politicamente diferenciados: as aldeias do baixo Biá (aldeias Gato e Boca do Biá, que somam pouco mais de 200 pessoas), as aldeias do médio Biá (Sororoca, Boca do Ipixuna e Bacuri, somando um pouco menos de 200 pessoas) e a aldeia do Alto Biá, extremamente isolada do convívio com os brancos. Essas divisões políticas são reconhecidas pelos Katukina, principalmente através de seus respectivos líderes. Tal separação em três blocos tem uma repercussão ritual importante notadamente no caso do Kohana, que demanda a presença de outra aldeia. O kohana é então realizado pelo bloco, tendo um cantor por bloco e não por aldeia.
Cada aldeia tem um chefe, chamado tuxaua regionalmente e nohman na língua katukina. A chefia não é hereditária, advindo de uma escolha que leva em conta a capacidade de liderança e os conhecimentos ritual, mitológico e do mundo do branco.
Os casamentos acontecem preferencialmente dentro da aldeia ou do bloco, sendo os casos entre blocos são mais raros e geralmente devido a uma falta de possibilidade interna. Os jovens Katukina se casam relativamente cedo, existindo casamento pré-puber, mas essa prática não é bem vista por todos. O parentesco Katukina é globalmente dravidiano, com uma preferência por casamento com os primos cruzados, porém esses não são nomeados, e portando plenamente do lado da afinidade. Por isso se fala que casar com a filha da tia paterna o do tio materno (que em sistema dravidiano com preferência para troca de irmã, que é o caso katukina, são mulher e marido) e não com a "prima".
Após o casamento, a residência é normalmente na casa do pai da mulher até o primeiro filho e a construção da própria casa (nas aldeias com casa de estilo regional). O primeiro filho marca também um passo importante no sentido que não existem possibilidades de divórcio depois do primeiro filho. De fato o casal é a unidade fundamental na vida social e ritual dos Katukina. A divisão das tarefas entre sexos é muito importante e isso implica uma dupla liderança, uma para os homens e o grupo em geral e uma para os assuntos femininos, exercida pelo casal chefe da aldeia. Nos rituais, o casal que o organiza pode ser considerado o casal dono/corpo (wara), e todos os participantes devem ser casais, pois não é possível cantar sem o cônjuge.
Notas sobre as fontes
Especificamente sobre os Katukina do Biá não existe informação etnológica publicada. As únicas informações provêm de um relatório etnobotânico da Funai feito por Vitor PY-Daniel e Deborah Lima em 2000, durante uma viagem entre os Kanamari do Juruá e os Katukina do Biá. Nesse relatório há muitas informações de ordem etnobotânica e etnológica, só que nem sempre é possível distinguir as informações relativas aos Kanamari, aos Katukina ou a ambos. O tempo curto da pesquisa entre os Katukina (três semanas) limita também as possibilidades.
Existem ainda informações indiretas em trabalhos realizados entre os Kanamari e trabalhos específicos sobre a lingua Katukina na variedade do Biá.
Por fim, o autor deste texto está desenvolvendo uma pesquisa de doutoramento sobre o grupo, ainda não concluída.
Fontes de informação
- LIMA, D. & PY-DANIEL, V. Levantamento etnoecológico de áreas Kanamari do Rio Juruá e Katukina do Rio Bia. Brasília : PPTAL/Funai, 2000.
- QUEIXALÓS, F. “Transitividade em Katukina : uma primeira aproximação”. In: Anais do encontro Nacional da Anpoll- lingüística vol 2, pp 1063-1071.