De Povos Indígenas no Brasil
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“Os anciãos pataxó sempre tiveram a sabedoria das ervas”

por Japira Pataxó

Os anciãos pataxó sempre tiveram a sabedoria das ervas. Tinham os matos para cuidar da catapora, sarampo, caxumba, coqueluche, tuberculose e outras doenças, mas foi somente quando chegaram as vacinas que conseguimos frear de vez as mortes das crianças. O velho Tururim, cacique de Barra Velha [Porto Seguro/BA], e meu pai, Alfredo Braz, vice-cacique, juntamente com outras lideranças, como os finados Palmiro e Luís Ferreira e as velhas Jenerana e Josefa, lutaram para que nós, Pataxó, tivéssemos atenção médica. Lutaram por muito tempo, mas foi só na década de 1980 que conseguimos que viesse uma equipe de saúde com médico e enfermeira uma vez por mês. Foi a época em que abrimos um campo na Aldeia Pataxó de Barra Velha para o teco-teco pousar. Essa chegada dos médicos é uma conquista nossa, mas também veio com seus desafios. Quando chegaram, os médicos pensavam que nós não sabíamos de nada, como se fôssemos bicho. Chegavam colocando só o remédio deles, não se sentavam para conversar com os nossos velhos.

Quando essa covid-19 chegou, nossas lideranças entenderam que era uma doença perigosa, silenciosa e que passava facilmente de uma pessoa para outra. Os caciques reuniram com as comunidades e fecharam as aldeias. Na nossa aldeia mãe, Barra Velha, no início só entrava quem era da comunidade, e a aldeia se abria só na quinta-feira. Nosso cacique Roberto fez a mesma coisa aqui na Aldeia Novos Guerreiros, que ficou fechada para quem não era da comunidade. Uma doença braba, eu não tinha as ervas para ela e nem os brancos as vacinas.

Aos poucos, comecei a buscar as ervas. Como nesse início não sabia como tratar, usava os banhos de proteção para afastar a doença; banho de raiz e cipó, fortes, que nós temos muito respeito. Ao longo do primeiro ano, essa doença foi aos poucos chegando na comunidade. Minha filha, que veio de Salvador, teve covid, assim como outros parentes da aldeia. Quando fui vendo as pessoas e tendo que cuidar delas, minha visão foi se abrindo para saber as ervas. O pajé tem essa força. Passa uma coisa em mim que sopra os saberes das ervas. Essa força quem passa são os espíritos dos velhos, que me mostram os matos. Os nossos conhecimentos também estão crescendo, nós pajés temos essa força para buscar a proteção nos matos. Fui vendo como cuidar da covid. Queria cuidar para que a pessoa melhorasse e não tivesse que chegar a ir para o hospital. Comecei a colher as ervas, fazia banho, chá e xarope com folhas, cascas e galhos. Na covid, tem que cuidar da febre, da dor de cabeça e do corpo. Cada pessoa recebe um cuidado diferente a depender de como está; o mais importante era usar as ervas que limpavam o catarro quando ele aumentava, para não deixar a doença ir para o pulmão. O povo vinha me pedindo para cuidar, eu via a situação e ensinava o que fazer.

No fim do ano, tivemos notícia das vacinas, que demorou muito para nos alcançar. Bolsonaro não queria a vacina e deixou o povo à sorte da morte. Quando a vacina chegou, muita mentira foi espalhada. Tinha gente dizendo que iríamos virar cobra, jacaré, todo tipo de bicho. Nós indígenas somos cismados com os brancos, já passamos por muita tragédia. Os pastores passavam áudios para nós dizendo que a vacina era coisa da besta-fera, a médica dizia que a vacina ainda estava sendo experimentada. Vendo essa situação, nossas lideranças começaram a se mover, entenderam que o povo estava sem vacinar e com medo. Lembrei da luta dos velhos no passado para conseguir as vacinas e como elas foram importantes para o nosso povo. Essa mesma força dos velhos, que me ajudava a colher as ervas, me ajudava a entender nossa situação. Com isso perdi o medo da vacina. Assim como outras lideranças, falei para o povo vacinar.

Minhas ervas são fortes e conseguem cuidar da covid, mas isso não significa que eu ache que a medicina branca não serve, que as vacinas não servem. Hoje mesmo já consigo ver como a covid tem vindo fraca em quem já tomou a vacina e acabou pegando, minhas ervas nesses casos são mais para ajudar a dar bem-estar para o corpo. Essas medicinas podem trabalhar juntas, mas isso não quer dizer que não haja conflitos entre elas. A medicina branca pensa que a nossa não é verdadeira. Eu penso que, na medicina branca, falta amor. Eu não duvido da verdade e força da medicina branca, mas os médicos, muitos deles, não cuidam com amor, principalmente de nós, que somos índios, eles não gostam. Quando eu cuido de alguém, eu sempre tenho que ter amor nisso que eu faço, isso faz parte do cuidado e também é importante para a força das ervas.

A força dos antepassados e dos espíritos da mata nos ajuda a sair dessas situações. Colher um mato, lutar pela nossa terra, tudo isso vai nos aproximando desses espíritos. Para sair desse momento difícil, é preciso ter essa sabedoria: olhar para trás e sentir nossos velhos, só assim podemos ter o conhecimento do que fazer

Editado a partir do artigo “O Sopro dos Velhos: o Mato Pataxó e as Vacinas”, originalmente publicado na Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, (vol. 1, n. 8, set. 2021), este depoimento surge a partir de conversas com Mestra Japira, que foram transcritas e novamente oralizadas, retornando várias vezes aos escrutínios da mestra

Saberes medicinais pataxó

por Victor André Martins de Miranda (especialista em saúde coletiva pela UFSB)

Antônia Braz Santana, conhecida como Dona Japira, Dona Antonia e também como Tonia, é uma liderança pataxó, zeladora dos saberes tradicionais e importante educadora. Japira é pajé da Aldeia Novos Guerreiros, localizada entre Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália, na Bahia, e exerce uma função singular para sua comunidade e seu povo: é conhecedora e educadora das histórias, tradições e tecnologias do povo Pataxó, dos rituais, da cura, das rezas e dos cuidados. Participou como professora convidada duas vezes na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Em 2014, na primeira realização do Projeto Encontro de Saberes nessa instituição, ministrou o curso “A medicina social e ecológica dos povos Pataxó do Sul da Bahia”, voltado para discentes das licenciaturas interdisciplinares. De 2017 a 2018, foi professora convidada a ministrar aulas aos alunos da Escola Indígena Pataxó de Coroa Vermelha, onde desempenhou importante papel, transmitindo suas sabedorias aos jovens pataxó. Em 2018, retorna à UFSB para ministrar o “Ateliê em Encontro de Saberes”, direcionado aos alunos dos cursos de artes. Japira iniciou em 2017 a escrita de seu livro sobre os saberes medicinais pataxó, intitulado Saberes dos Matos Pataxó. O livro transmite seus conhecimentos medicinais imersos em sua biografia de vida, nos saberes cosmológicos e poéticos pataxó.