De Povos Indígenas no Brasil

Onde estão as organizações de mulheres indígenas no Brasil?

Por Beatriz Moraes Murer e Silvia de Melo Futada

Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022

Em todo o país, mulheres indígenas se organizam e criam suas próprias associações; mapa do ISA mostrou, pela primeira vez, quais são e onde estão elas

Este texto traz um retrato do trabalho realizado para mapear onde estariam as organizações das mulheres indígenas no Brasil, a partir de uma pesquisa sistemática e permanente, realizada pelo ISA e publicada no Mapa das Organizações de Mulheres Indígenas no Brasil em 2020.

Nos últimos anos, fase mais desafiadora da história para as conquistas socioambientais após a Constituinte, o movimento indígena, na luta por seus direitos, com a beleza, complexidade e força de suas (r)existências, intensificou sua repercussão no contexto nacional e internacional. E as mulheres indígenas, com sua sensibilidade, força, organização, perspectivas e entendimento prático da coletividade, foram imprescindíveis para esse reconhecimento.

No Acampamento Terra Livre 2022, enquanto mulheres de todas as regiões do país compartilharam vivências e conhecimentos na plenária “Retomando o Brasil: Vozes Diversas das Primeiras Brasileiras”, Sônia Guajajara, coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), defendia: “Já passou o tempo de as mulheres indígenas ainda estarem em papéis secundários. Hoje, nós mulheres, estamos presentes em muitos espaços, de participação, de controle social, nas universidades, mulheres profissionais, mulheres cacicas e mulheres parlamentares. Hoje podemos, sim, participar e construir um Brasil em que caiba todas nós. Somos muitas e diversas. Estamos aqui em nome das que nos antecederam e daquelas que ainda virão”. Tamanha força e poder já havia sido visto na 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, realizada em 2019, com o lema “Território: Nosso Corpo, Nosso Espírito”, um marco histórico que agregou mais de 2.500 mulheres indígenas de mais de 130 povos para debater, compartilhar experiências e reivindicar seus direitos.

No Brasil, organizações articuladas e dirigidas por povos indígenas emergem numa conjuntura marcada por transformações políticas ligadas à Constituinte que impactaram a sociedade brasileira e que influenciaram a forma como muitos indígenas passaram a perceber sua relação com o Estado. Tais formas de organização e representação política simbolizam a incorporação de formas de lidar com o mundo institucional da sociedade não indígena nacional e internacional adotadas por alguns povos indígenas. Essas organizações passaram a ser protagonistas nos processos de luta pela conquista e garantia de direitos dos povos indígenas e na execução de projetos comunitários diversos.

Conhecidas como as décadas da resistência, surgimento e fortalecimento das organizações indígenas, 1980 e 1990 foram marcadas pelo amplo protagonismo masculino, e foi também nesse período que esse movimento associativo das mulheres indígenas inspirou-se¹,pois caminhavam juntos para apoiar a luta de seus povos e assim começaram a reivindicar mais espaço e protagonismo nas discussões políticas, pautando necessidades específicas. Temas como violência, geração de renda, saúde reprodutiva, soberania alimentar e participação das mulheres nas decisões políticas passaram a ser inseridos pelas mulheres indígenas no movimento indígena e nos espaços de debate e decisão de políticas públicas. É importante destacar que essa perspectiva se refere ao movimento associativo ocidentalizado, pois as mulheres sempre tiveram formas próprias – expressadas de maneira específica nos diversos povos – de exercer sua influência, ainda que nem sempre ocupassem os espaços decisórios oficiais.

Assim, cada vez mais as mulheres indígenas passam de um contexto em que não tinham espaço para apresentar suas demandas e reivindicar seus interesses publicamente[1] para um contexto de participação cada vez mais marcante.[2] Nas últimas décadas, as lutas e reivindicações das mulheres indígenas no Brasil têm conquistado visibilidade dentro de movimentos sociais, da política e da mídia, além de elas cada vez mais protagonizarem liderança nesses espaços.[3]

Dessa forma, a participação de mulheres indígenas tem sido cada vez maior em encontros, oficinas e conferências nacionais e internacionais promovidos por organizações indígenas, instâncias estatais e não governamentais. Nesses novos espaços de discussão, mulheres de diferentes povos se articulam, viabilizando o fortalecimento de suas organizações e a troca de experiências, assim como a gradativa capacitação para o exercício na esfera pública. Isso impulsionou que mulheres indígenas em todo o país criassem suas próprias organizações ou departamentos em entidades históricas do movimento indígena[4], o que também abriu espaço para o processo de ressignificação de sua posição nas relações familiares, matrimoniais, comunitárias e no espaço público, rompendo com estruturas patriarcais existentes na sociedade.[5]

Atualmente, existem mais de mil organizações indígenas, das quais cerca de 10% são organizações de mulheres. O pioneirismo de organizações indígenas femininas se deu ainda na década de 1980, com as Associações de Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (Amarn) e do Distrito de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié (Amitrut) na região Amazônica[6]. Mas a ampliação de organizações ou departamentos de mulheres dentro de organizações indígenas já estabelecidas se deu especialmente a partir da década de 1990. As organizações apresentam características variadas – congregando desde mulheres de diversos povos de uma mesma região (caso do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – Foirn); de um mesmo estado (situação da Organização das Mulheres Indígenas de Roraima – Omir), de caráter pluriétnico; de diversos estados (caso do Departamento de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – Coiab), de residentes no espaço urbano de um mesmo povo (Associação das Mulheres Indígenas Sateré Mawé – Amism), até diferentes povos (Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro – Amarn) –, o que influi tanto no tipo de abrangência de suas ações e nos objetivos propostos, quanto na detecção de dificuldades diversas na concretização de seus projetos[7].

Processo de mapeamento de Organizações de Mulheres Indígenas

O levantamento de tais organizações, publicado em 2020 lançou mão de dados do Sistema de Informações de Áreas Protegidas (SisArp), do Programa Monitoramento de Áreas Protegidas do Instituto Socioambiental (ISA), que contempla informações sobre Terras Indígenas e Unidades de Conservação federais e estaduais no Brasil. Essas informações sobre organizações de mulheres indígenas ou organizações indígenas com departamentos ou subsetores de mulheres foram sistematizadas e analisadas, validadas e complementadas por uma equipe de campo[8] junto às mulheres indígenas presentes no Acampamento Terra Livre, em abril de 2019, e na 1ª Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, em agosto do mesmo ano, ambos em Brasília.

O levantamento de organizações foi finalizado em novembro de 2019 e o mapa foi consolidado e publicado no primeiro semestre de 2020. Vale ressaltar que as informações aqui apresentadas estão temporalizadas, mas defendemos que o processo de levantamento dessas informações deva ser contínuo – de modo a manter o mapeamento atualizado, visto que a cada ano são criadas novas organizações.

Em janeiro de 2020, o SisArp/ISA registrava 1.029 organizações indígenas no Brasil, das quais 85 eram organizações de mulheres e sete organizações indígenas com departamentos de mulheres, totalizando 92 (8,94%) organizações de mulheres.

As organizações de mulheres indígenas estão presentes em todas as regiões do país, em 21 unidades federativas (UFs). As seis UFs onde não foi possível mapear organizações indígenas de mulheres foram: Espírito Santo, Rio Grande do Sul, Goiás, Piauí, Rio Grande do Norte e Distrito Federal – o que não significa que elas não existam em tais estados, mas apenas que seu mapeamento não foi concretizado.

A maioria das organizações está localizada na Amazônia. O Amazonas é o estado com o maior número, com 32 organizações (35% do total); seguido por Mato Grosso, com 7; Pará e Mato Grosso do Sul, com 6; Ceará, com 5; e Acre, com 4. Nos demais estados, o número de organizações varia entre 3 e 1.

A maioria das organizações de mulheres indígenas apresenta-se como sendo de abrangência local; são 66 organizações nessa categoria, das quais 16 são regionais e 10 são estaduais. Entre as organizações de abrangência regional, está a União das Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira (Umiab), fundada em 2009, 20 anos após a criação da Coiab. A Umiab foi criada durante o III Encontro de Mulheres Indígenas da Amazônia, no Maranhão, realizado pelo Departamento de Mulheres da Coiab.

Excluídos os departamentos de mulheres indígenas, o período de fundação das organizações de mulheres varia de 1987 a 2019, e o período de 2000 a 2009 foi o que teve o maior número, com 33 organizações de mulheres criadas. Das 92 organizações de mulheres indígenas levantadas, pouco mais da metade estava associada ao Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). (novembro, 2022)

Referências

[1] SILVA, M. G. S. N. et al. Organizações de mulheres indígenas da Amazônia. Ciência Geográfica, v. 25, n. 3, p. 928-940, jan./dez. 2021.

[2] FONSECA, L. G. D. Despatriarcalizar e decolonizar o Estado brasileiro: um olhar pelas políticas públicas para mulheres indígenas. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

[3] SILVA, J. R. Protagonismo feminino nos movimentos indígenas no Brasil. Espirales, ed. Especial, p. 97-114, jan. 2021.

[4] GOMES, S. Organizações de mulheres indígenas no Brasil: resistência e protagonismo. São Paulo: ISA, 5 ago. 2020. Disponível em: https://bit.ly/3maM1uR. Acesso em: 19 nov. 2022.

[5] SACCHI, Ângela. União, luta, liberdade e resistência: as organizações de mulheres indígenas na Amazônia Brasileira. Tese (Doutorado em Antropologia) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2006.

[6] VERDUM, R. Mulheres indígenas, direitos e políticas públicas. Brasília, DF: Instituto de Estudos Socioeconômicos, 2008.

[7] SACCHI, A. Mulheres indígenas e participação política: A discussão de gênero nas organizações de mulheres indígenas. Revista Anthropológicas, v. 14, n. 1-2, p. 95-110, 2003.

[8] Composta por Selma Gomes, Beatriz Murer, Silvia Futada, Mariana Furtado e Daniele Araújo, pesquisadoras do ISA.