De Povos Indígenas no Brasil

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A primeira onça-pintada de Marina

15/05/2010

Autor: Marcos Sá Correa

Fonte: Marcos Sá Correa - http://marcossacorrea.com.br




"Foi tudo perfeito", diz a bióloga Marina Xavier da Silva. E acrescenta,no mesmo fôlego: "Tirando..." Dias depois de fazer sua primeira captura de onça-pintada no Parque Nacional do Iguaçu, sua voz ainda não voltara à suavidade de sempre, pelo menos quando fala do assunto. Talvez porque o detalhe que teria preferido excluir com esse "tirando" fosse seu encontro inesperado com o bicho, cara a cara, "a uns dois metros e meio de distância, se tanto".

Marina estava na ocasião seguindo o rastro de um bezerro levadoo por onça de um sítio vizinho ao parque. Os sinais deixados no chão pela carcaça se enfiavam numa capoeira baixa e entrelaçada, pouco além da cerca do sítio onde fora roubada, quase fronteira do parque com terrenos particulares. No caso, bem atrás do hangar onde ficam os helicopteros da Helisul, de onde veio o alarme de que havia onças rondando o gado.

No charrascal, ao encontrar a presa, ela esbarrou no predador. O imprevisto obrigou-a a invocar na prática na prática a tudo o que nos últimos anos veio aprendendo na teoria, como coordenadora do Projeto Carnívoros. Os preparativos para esse encontro surpreendente mas longamente esperado a levaram inclusive a treinar, semanas atrás, no Cerrado, a captura de onças com laços.

Marina fez tudo como manda a cartilha. Evitou que dois voluntários da equipe fugissem correndo, o que é meio caminho andado para se transformar em presas. Lembrou-se de falar alto, para o bicho saber que estava lidando com gente. E, tendo que decidir depressa se era ou não o caso de disputar a carcaça com o novo dono, tomou posse do bezerro batendo a lâmina do facão numa pedra, para fazer o maior barulho possível. Precisava dos despojos para usar como isca de armadilha.

A onça fugiu. Mas dali para a frente era praticamente certa a sua volta. No dia seguinte, sábado, 8 de maio, ela amanheceu atrás das grades. Foi anestesiada com dardo de zarabatana. Submeteu-se, desacordada, aos exames de praxe. Transformou-se numa versão atual de animal selvagem, que é aquele que vive em liberdade, mas tem ficha médica e passos controlados à distância, como convém às existências preciosas de exemplares que encarnam as chances de sobrevivência de uma espécie inteira.

Aquela onça-pintada estava estava vendendo saúde. Pesava 41 quilos. Tinha a barriga tão cheia da carne farta e fácil do pasto que lhe valeu, na hora, o nome de Pança. "É um dos gêmeos", concluiu o biólogo Apolônio Rodrigues, diretor de Conservação e Manejo do Iguaçu. Tratava-se, portanto, de um dos filhotes que há dois meses Apolônio fotografou à luz do dia, numa tarde emoliente de verão, a oito metros do alojamento que hospedava, naquele momento, mais de vinte alunos de uma universidade alemã.

Desde esta estréia ruidosa, os filhores assombravam funcionários e visitantes com aparições nos lugares mais implausíveis. Cruzavam a BR-469 a qualquer hora do dia ou da noite. Tangengiavam a piscina do hotel das Cataratas. E chegaram a por as patas nas escadas do centro administrativo. Era um macho ainda imaturo, mas já com maus hábitos. Pegando gosto por predar bezerros e outros animais domésticos, estava no rumo certo dos conflitos de grandes carbívoros com sitiantes e pecuaristas dos arredores. O vício de pular cerca sempre serviu de pretexto para levar as onças do Iguaçu à beira do extermínio definitivo.

Pança voltou rapidamente ao mato. Foi devolvido no mesmo sábado frio e chuvoso à trilha do Poço Preto, nem tão perto dos portões que estimulasse recaídas no assalto a animais domésticos, nem tão longe do território original que o pusesse inadvertidamente em área já dominada por um macho adulto, capaz de escorraçá-lo com os argumentos ferozes. Pança leva agora um rádio-transmissor, que dança em seu pescoço como um colarinho de aço. Não foi feito para felinos de seu porte. Mas, graças ao colar, Pança terá seu cotidiano monitorado daqui para a frente por satélites e mapas geo-referenciados. Tornou-se uma fera identificada - e supostamente protegida.

Ela tem ainda um longo caminho a percorrer, antes de prestar serviços naturais à perpetuação da espécie no parque. Tomara que vingue, porque no ano passado o Iguaçu perdeu por atropelamento um macho jovem, em plena forma física para a procriação. Mas, se sua adolescência ainda vai longe, com ele amadureceu este mes defnitivamente o Projeto Carnívoros do Iguaçu, depois de uma gestação que se estendeu por mais de seis anos e custou a Marina Xavier da Silva uma década inteira de teimosia. Ela é paulistana. Cresceu na metrópole pensando, desde criança, em trabalhar no mato. "Nunca tive dúvidas sobre o que iria fazer quando crescesse", ela conta. Era arredia, "sem muita habilidade para lidar com gente". Gostava de bicho.

Aos 13, 14 anos, já seguia o irmão mais velho, que abriu a dinastia dos biólogos na família, em pesquisas de campo, no litoral de São Paulo. Quando chegou sua hora de fazer vestibular, cravou Biologia - "sem opção". Cursando a USP, pegava à unha estágios em zoológicos, como candidata permanente "ao trabalho braçal" que implica botar a mão nos problemas concretos da sobrevivência da fauna silvestre. No Zoo de Campinas, limpou jaulas, preparou rações e encontrou o atalho daconservação através da ONG Mata Ciliar, que recolhe animais silvestres em Jundiai.

Aos 21 anos estava morando no parque do Iguaçu, por conta da ONG pobre mas ambiciosa, que lhe enviava para isso 600 reais, "mes sim, mes não". Cabia-lhe gerenciar estágios na Escola Parque, que funciona no Iguaçu. "Era burocracia mesmo", ela admite. No fim do expediente, pegava o último ônibus gratuito da Cataratas, a concessionária dos serviços turísticos na unidade de conservação, cuja frota circula no parque durente o horário de visitação, e ia para casa.

Ou seja, recolhia-se a seu beliche num dormitório coletivo, mas quase sempre vazio, instalado num barracão da extinta Vila Satake, que anos atrás foi demolida, por decrépita. Passava a maior parte do tempo caminhando pelas trilhas ou mergulhada nos arquivos do parque, para desvendá-lo. E assim foi desde cedo percebendo que a maior parte do que via nas picadas não constava das prateleiras. E que a universidade não lhe "tinha ensinado nada".

Para ela, tudo, no Iguaçu, estava por descobrir. Em sua primeira caminhada, viu um bando de macacos-pregos. Um dia, na trilha da Represa, cruzou com uma suçarana com dois filhotes. Naufragou numa corredeira do Iguaçu. E pegou vários bernes. No hospital de Foz do Iguaçu os médicos não sabiam o que fazer com aquilo. "Foram os mateiros do parque, os guis do Macuco Safari, que me trataram", ela recorda.

Mas a solidão do alojamento era relativa. Ocasionalmente, arranchavam por lá guardas-parques e pesquisadores. Marina grudava em seus calcanhares, disposta a aprender o que a universidade não lhe ensinara. Foi por esse desvio que acabou casada com o biólogo Alexandre Vogliotti, que chegou ao Iguaçu com pós-graduação em Cervídeos e hoje é seu assistente no Projeto Carnívoros.

Ou seja, Marina foi muito mais longe do que esparava. "Quando cheguei aqui, todos os técnicos gostavam mesmo era de onça, principalmente onça-pintada. Achei que nunca iria sobrar onça para mim e fui cuidar de anfíbios. Mamíferos me pareciam fora de meu alcance". Interessou-se inclusive por Botânica, "que não era meu forte". Estudou sementes, sapos, insetos, tudo o que não achava nos anais do parque. Chegou aonde está por pura persistência. Mudou-se para o parque com o projeto de ficar dois anos. Lá se foram quase seis anos e ela está começando agora o que ficaria feliz em fazer pelo resto da vida.

A teimosia valeu-lhe um contrato de funcionária no setor de manejo. O passo seguinte foi pegar, em 2004, as rédeas do Projeto Carnívoros. "Eu não queria mexer com onça só por mexer com onça", ela explica. Está lá para "fazer conservação". De tanto vê-la ruminando os arquivos, o diretor Jorge Pegoraro ofereceu-lhe uma vaga no setor de Manejo. E com isso, embora funcionária do setor de pesquisa, Marina se aproximou de uma mesa de alta voltagem, que é do biólogo Apolônio Rodrigues, o infatigável gerador de novidades na administração do Iguaçu.

"Apolônio e eu começamos imadiatamente a sonhar com o Projeto Carnívoros", diz Marina. Durante muito tempo, ela presumiu que estava simplesmente "peruando" o projeto. Mas, no momento em que as discussões enveredaram pelo caminho das iniciativas concretas, o diretor de Conservação e Manejo entregou-lhe a coordenação de uma idéia que ainda não tinha dotação, sala ou equipe - mas estava destinada a virar, a partir de 2009, a maior aposta já feita nesses 71 anos de existência do parque para transformá-lo efetivamente numa unidade de conversação - coisa que, na década de 1940, o zoólogo Cândido de Mello Leitão duvidava que um dia pudesse acontecer ali, tal a obsessão dos primeiros diretores pelo "turismo paisagista".

Não pode ser só coincidência que, em 2009, quando o Projeto Carnívoros saiu de uma vez por todas do papel e entrou no mato, o Iguaçu figurou pela primeira vez entre os parques nacionais recordistas em propostas de pesquisa científica no país. Mas isso, para Marina, já não basta. "Eu não quero mexer com onça só por mexer com onça. Estou aqui fazer conservação".

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