De Povos Indígenas no Brasil

Mulheres yanomami e a nova invasão garimpeira

por Marília Garcia Senlle, antropóloga; Ana Maria Machado, antropóloga e pedagoga, ISA; Lídia Montanha Castro, antropóloga e pedagoga, ISA

Texto publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2017-2022

"Nós jamais desistiremos do que é nosso".

"Onde iremos buscar alimentos para nossos filhos?"

"Estamos todos perto de morrer abandonados nesta floresta vazia de assistência".

Nos últimos anos, as mulheres yanomami vêm conquistando novos espaços de representação para promover ações voltadas a seus interesses.

No atual contexto de agravamento das condições sanitárias e de intensa invasão garimpeira na Terra Indígena Yanomami (TIY), algumas mulheres yanomami têm sido vítimas, por um lado, de violência sexual causada pelos invasores e, por outro, vêm se destacando como porta-vozes do drama coletivo de seu povo, por meio de denúncias contundentes que relatam as terríveis condições de vida em suas comunidades. “Queremos que venham pessoas para queimar as canoas e maquinários [dos garimpeiros]. Quero ainda poder voltar a correr em minha terra limpa. Não quero ter estas minhas águas sempre poluídas! O lugar onde moramos, o lugar onde pesco peixes, foi transformado em prostíbulo e onde os garimpeiros se matam e jogam seus mortos. Eu não quero essas pessoas sujando minha terra!". Essa fala de uma mulher yanomami moradora da região Palimiu, ocorreu logo após um dos episódios recentes mais emblemáticos do agravamento da invasão garimpeira na TI Yanomami. Desde fevereiro de 2021, houve uma escalada de tensão nas relações entre garimpeiros e os Yanomami do Palimiu, envolvendo episódios de ameaças a lideranças indígenas, trocas de tiros e a morte de um garimpeiro. A situação se agravou ainda mais depois que jovens yanomami da região confiscaram grande quantidade de combustível dos garimpeiros em resposta ao afogamento de uma criança, levada pela correnteza do rio depois de ser derrubada pelas ondas de um barco de garimpeiros que passava em alta velocidade em frente a uma comunidade.

Noemia Yanomami durante comemoração dos 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, na aldeia Xihopi, em maio de 2022. Foto: Christian Braga / ISA
Noemia Yanomami durante comemoração dos 30 anos da homologação da Terra Indígena Yanomami, na aldeia Xihopi, em maio de 2022. Foto: Christian Braga / ISA

O ápice da tensão ocorreu no dia 10 de maio de 2021, quando a comunidade Yakepraopë foi surpreendida por sete embarcações de garimpeiros que atacaram os moradores a tiros, dando início a um conflito aberto que imediatamente feriu um indígena de raspão, e motivou a dispersão de todos pela mata, restando cinco crianças perdidas. Após dois dias de buscas, duas delas foram encontradas mortas na beira do rio Uraricoera, com sinais de afogamento. A este episódio sucederam-se diversos ataques dos garimpeiros; isto perdurou por cerca de dois meses, sendo que em um deles a própria Polícia Federal foi recebida a tiros pelos invasores que transitavam pelo rio. O ataque escancarou para os Yanomami a presença de um grupo novo e particularmente perigoso, fortemente armado e encapuzado, que transita pela região frequentemente; investigações da Polícia Federal confirmaram tratar-se de membros de uma facção criminosa. Diante desses ataques dos invasores, a equipe responsável pela saúde dos indígenas retornou a Boa Vista e os Yanomami viram-se à própria sorte, valendo-se de estratégias de proteção, realizando vigílias e se juntando em uma única grande casa coletiva para evitar ataques noturnos às casas pequenas. Após um ano da escalada de ameaças aos Yanomami de Palimiu, a tensão diminuiu, mas o conflito ainda está longe de acabar. Atualmente, ainda que a presença da Força Nacional seja maior, os garimpeiros seguem transitando impunes pelo rio Uraricoera e pela floresta, nos locais tradicionalmente usados pelos Yanomami dessa região para caçar, pescar e plantar suas roças.

Vozes femininas nas denúncias contra o garimpo

Em meio aos diversos ataques que aconteceram em Palimiu, as mulheres da região se destacaram nas oportunidades de diálogo e denúncia em contextos de representatividade política, fazendo falas fortes na língua Yanomami e ocupando novos contextos políticos de interlocução com não indígenas. Logo após o primeiro ataque, em maio de 2021, um grupo de três lideranças femininas participou de uma reunião com o Ministério Público Federal de Boa Vista. Além disso, durante o 2º Fórum de Lideranças Yanomami e Ye’kwana, a comitiva dos representantes de Palimiu constituiu-se de duas mulheres e um homem. Durante algumas visitas de equipes de jornalistas à região, mais uma vez as mulheres tomaram a frente das denúncias, chamando a atenção com falas muito expressivas. Suas denúncias e reivindicações se apoiaram em temas como: a preocupação com a preservação da floresta da qual dependem para se alimentar e viver; o temor com a qualidade da água que usam para beber, tomar banho e pescar; o medo de terem que fugir e abandonarem suas casas; a preocupação com a partida da equipe de saúde em meio aos ataques e a mais um surto de malária; o pedido para que seja feita uma barreira física que impeça a passagem de garimpeiros na região e para que o Estado garanta a efetiva proteção de todo o território. Na fala de todas as mulheres é notável a preocupação com as crianças e, embora a mesma preocupação apareça nos discursos políticos de alguns homens do Palimiu, em diversas situações a menção às crianças atravessa a maioria das falas femininas:

“Bolsonaro, eu não estou aqui para falar para você à toa! Por que motivo você permite a entrada dessas pessoas em nossas terras? Essa aqui não é a terra de vocês! [...] Por que vocês estão sempre perturbando o sono das nossas crianças?”

“Estamos sem apoio. Meu discurso não é em vão. Eu não quero falar à toa, eu não quero viver insegura dentro da minha floresta, fazendo meus filhos sofrerem! [...] Sinto que estamos todos perto de morrer abandonados nesta floresta vazia de assistência.”

“Hoje a equipe de saúde que trabalha aqui fugiu com medo dos garimpeiros, nossos filhos estão morrendo. Nós estamos morrendo de malária e diarreia! Por que é que vivíamos tranquilos tendo o apoio da equipe de saúde aqui, mas agora sofremos com o posto de saúde vazio e abandonado? Quem irá nos fazer viver em paz? Quem irá recuperar essa floresta?”

“Meus filhos estão sofrendo! Isso é muito triste para nós. Eu tive que fugir com meus filhos da minha própria casa! Isso é terrível! Eu estou muito revoltada com tudo isto! Muito mesmo!”

“Eles tomam e destroem as nossas terras, afugentam as caças. Onde iremos buscar alimento para nossos filhos?”

As mulheres yanomami, como cuidadoras principais de bebês e crianças, costumam realizar todas suas atividades sociais nos arredores da comunidade, pelas matas, roças ou rios, quase sempre acompanhadas de crianças, sejam filhos, netos, sobrinhos ou irmãos mais novos. Entende-se, portanto, porque as crianças estão tão presentes nos apelos das mulheres do Palimiu contra o garimpo. A mesma preocupação dessas mulheres se traduz no discurso de preservação da floresta, já que é nela e nas roças que conseguem o alimento diário, essencial para o bem viver das crianças e de todos da comunidade. A presença garimpeira é sempre acompanhada de impactos socioambientais e desestruturação social: assoreamento dos rios; diminuição da caça ocasionada pelo desmatamento e pela pressão dos garimpeiros sobre a caça e a pesca para seu próprio consumo; contaminação das águas e dos peixes por mercúrio; aliciamento de jovens como mão de obra no garimpo; oferta de bebidas alcoólicas e cocaína; violência sexual contra mulheres e crianças; introdução de armas de fogo; aumento de diversas doenças infectocontagiosas, em especial a malária, o que afeta diretamente a capacidade das pessoas saírem para caçar, pescar ou trabalhar nas roças.

O caso do Palimiu ilustra parte do caos e desestruturação consequentes da atual invasão garimpeira na TIY, que vive o pior momento desde sua homologação (1992). A calha do rio Uraricoera, onde se situa o Palimiu, umas das regiões mais impactadas pelo garimpo, concentra mais de 45% do total do desmatamento acumulado no território no último ano. Todavia, diversas outras regiões têm sofrido com os garimpos ilegais que seguem avançando para novas áreas. Estima-se que 273 comunidades estejam afetadas diretamente, abrangendo mais de 16.000 pessoas, isto é, 56% da população da TIY.

Violência sexual e aliciamento de jovens

Destacamos duas questões que afetam de forma mais específica as mulheres yanomami: a violência sexual contra meninas e mulheres e o medo das mães de terem seus filhos aliciados pelo garimpo. Embora no Palimiu pouco se saiba sobre a ocorrência de violência sexual ou do aliciamento de mulheres para prostituição, alguns depoimentos de mulheres de outras regiões da TIY evidenciam uma situação ainda mais dramática. É o caso de comunidades situadas na calha do rio Mucajaí, como Kayanau, onde se concentra cerca de 20% da área degradada pelo garimpo. Relatam algumas Yanomami: "Os garimpeiros fazem perguntas para os jovens que levam juntos suas irmãs: 'Aquela moça que você levou consigo, é sua irmã?'. Então os Yanomami respondem: 'É minha irmã!'. Depois dos Yanomami dizerem assim, deixam os garimpeiros informados. Por isso [continuam pedindo]: 'O que você pensa da sua irmã? Se você fizer deitar sua irmã comigo, sendo que você é o irmão dela, eu vou pagar para você 5 gramas [de ouro]. Faça o que eu digo! Se você quiser cachaça, eu vou dar também cachaça. Você vai ficar bêbado na sua casa!'. Falam assim para os Yanomami, por isso, têm relações com as mulheres. Induzem os Yanomami a fazer isso."

A presença dos garimpeiros, inicialmente entendida como aproximação amigável pelo oferecimento de bens industrializados, vai paulatinamente pressionando todo o grupo Yanomami, e sua mobilidade pelo território se reduz, aumentam as doenças e a consequente diminuição da capacidade produtiva de alimentos, encurralando as famílias num sistema de dependência e extrema vulnerabilidade. "Anteriormente, as mulheres Yanomami não tinham a doença do abdômen, não sofriam de sangramentos. De fato, os homens tampouco ficavam doentes, por isso as pessoas estavam com saúde. Portanto, nós Yanomami não conhecíamos essas doenças warasi que deixam lesões na pele. Agora, depois que os garimpeiros catadores de ouro, por causa do veneno da cachaça, começaram a ter relações com as mulheres, aprendemos o nome desta doença. De fato, as pessoas agora pensam: 'Depois que os garimpeiros que cobiçam o ouro estragaram as vaginas das mulheres, fizeram elas adoecer. Por isso, agora, as mulheres estão acabando, por causa da letalidade dessa doença. Estão transando muito com as mulheres'. É tanto assim que, em 2020, três moças, que tinham apenas por volta de 13 anos, morreram. Os garimpeiros estupraram muito essas moças, embriagadas de cachaça. Elas eram novas, tendo tido apenas a primeira menstruação."

Como se vê, as estratégias usadas pelos garimpeiros são complexas, e uma delas é atrair os jovens yanomami como aliados no garimpo, dando-lhes celulares, espingardas, bebidas alcoólicas, acesso a internet e outros bens. Tudo isso os empodera localmente, passam a questionar e enfrentar as lideranças tradicionais, o que acarreta graves conflitos internos e alteração de dinâmicas familiares e do fluxo comum das vidas na aldeia. As mães yanomami temem perder seus filhos para o aliciamento de garimpeiros, da mesma forma como mães de periferias das cidades temem perder seus filhos para o tráfico de drogas.

Relata uma liderança feminina da região de Maturacá: "No fundo dos ranchos, eles levam também drogas. Quando os meus jovens começaram a fumar, começou a estragar também. Então o que eu vejo lá, eu estou contando para vocês. Eu penso no futuro. Se os jovens não pensam no futuro, como é que vai ficar? Eu me preocupo completamente. Então, antes a fiscalização da Funai existia, mas também parou. Eu quero que continue a fiscalização da Funai para poder acalmar de novo os garimpeiros." Dessa forma é que mulheres e meninas Yanomami têm sido vítimas da violência sexual por parte dos garimpeiros, tendo suas vidas impactadas pela fome e perdendo o controle sobre seus filhos, aliciados pelo garimpo.

Imersas em um cenário apocalíptico, as mulheres yanomami abriram espaço para serem importantes protagonistas na defesa de seu território e para ocuparem um espaço político de fala e de relação com os não indígenas, mostrando força, sabedoria e coragem na luta por seus direitos. “Este é o meu desejo, eu, falando como mulher. Quero que venham [proteção do Estado] para que possamos ter tranquilidade! Para que a minha terra volte a ser limpa, para que o rio volte a ter vida.”, expressa uma mulher do Palimiu. (maio, 2022)

 Protagonismo das mulheres yanomami


Desde a intensificação do contato com os não indígenas, a partir da década de 1970, as imagens do povo yanomami correm o mundo, exibidas em jornais, revistas, livros e seguem sendo multiplicadas de maneira vertiginosa em mídias digitais. Grande parte são belos retratos do povo da floresta, quase sempre com as mulheres exotizadas e objetificadas, sem que seus pensamentos e histórias estejam presentes. Em 2008, um grupo de mulheres yanomami da Missão Catrimani, a partir de intercâmbios com mulheres indígenas de Roraima, sentiu a necessidade de discutirem questões específicas que lhes eram próprias. Assim, realizaram o primeiro Encontro das Mulheres Yanomami, um espaço onde puderam compartilhar experiências e se fortalecer.

A partir de 2014, os encontros passaram a ter o apoio da Hutukara Associação Yanomami e do Instituto Socioambiental, incluindo a participação de mulheres yanomami de diversas regiões. Desde então, doze encontros se realizaram, acolhendo temas como o das doenças sexualmente transmissíveis; os problemas enfrentados no atendimento à saúde em Boa Vista; a proteção territorial em face ao garimpo; as dificuldades em controlar os jovens que vão para a cidade; o controle de natalidade e a adoção de recém-nascidos yanomami em Boa Vista; a transmissão de conhecimentos para as crianças; as migrações; o conhecimento das mulheres sobre plantas medicinais; a diversidade e a vitalidade linguística; e a comercialização da cestaria Yanomami.

Em 2015, um grupo de mulheres da região de Maturacá fundou a Associação das Mulheres Yanomami Kumirayoma (AMYK), a primeira organização de mulheres do povo yanomami. Consta entre suas reivindicações fortalecer o conhecimento do artesanato como possibilidade de geração de renda, além de maior protagonismo nos espaços políticos. Em 2016, durante o 9º Encontro, elas redigiram uma carta de recomendação com suas propostas para serem incluídas no Plano de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA) da TI Yanomami. Mulheres das diferentes regiões do território também participaram ativamente da elaboração deste PGTA, com importantes propostas para o documento final. Como consequência do fortalecimento político das mulheres yanomami, hoje elas compõem o Fórum de Lideranças da TI Yanomami, a principal instância deliberativa na TIY.

Os caminhos que essas mulheres vêm abrindo na última década vão além da participação política em reuniões. Elas se destacaram na produção de pesquisas que vêm sendo publicadas, abordando temáticas como a das plantas medicinais; a menstruação e as mudanças geracionais; o fungo Marasmius yanomami utilizado por elas em sua cestaria, e sobre entidades femininas que compõem o universo mítico yanomami. (maio de 2022)