De Povos Indígenas no Brasil
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“A palavra genocídio é muito fraca para o que a gente realmente vive nos territórios”

por Angela Kaxuyana

Não há separação entre saúde e território. A primeira coisa que a gente precisa pensar é que, para manter a saúde do povo, de uma comunidade, ela depende muito dessa garantia de ter território seguro. E o território seguro é garantir que as pessoas tenham uma qualidade de vida, mantendo uma alimentação de qualidade, o acesso aos recursos que sempre tivemos, às medicinas tradicionais.

E o bem-estar! A gente fala muito da necessidade da existência dos materiais, das questões físicas, mas não fala desse sentimento espiritual em relação ao território. Então, se você não tem um território garantido, você está sob ameaça. Não tendo uma Terra Indígena demarcada, espiritualmente você também fica enfraquecido, psicologicamente isso atinge sua família e a desestabiliza; se você não está bem espiritualmente, fisicamente você também não estará.

Então não há como separar o território da nossa existência enquanto povo. Eles estão interligados. Se você não garante o território, você não está garantido a vida das pessoas. Porque a gente fala de “povos indígenas” como se fosse uma questão ou uma coisa. A gente não está falando de uma coisa, a gente está falando de pessoas, da vida humana! Eu não sei como se dá o nome em português, porque, nós, indígenas, temos várias línguas. E o ato de você negar a existência de uma pessoa, de um grupo, de um povo, para a gente é o genocídio. Para a gente, isso significa negar a vida, a existência das pessoas. Não conseguimos entender que outro nome se daria se não genocídio.

Não garantir a demarcação do Território Indígena e ter planos de atacar a vidas das pessoas não pode ter outro nome que não seja genocídio. E essa tentativa de nos apagar enquanto povo, essa tentativa de nos fazer desaparecer enquanto povo, qual seria a definição se não é o genocídio? Se não é essa tentativa de dizimar a existência das pessoas? A palavra genocídio é até muito fraca para o que a gente realmente vive nos territórios, de ser assassinado, de perseguição, de invasão dos nossos territórios, de contaminação dos nossos rios.

A atuação da Coiab

A atuação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) foi mudando de estratégia, de uma linha foi passando para outra e a gente acabou chegando em outra. A primeira era, enquanto Coiab, levar essa resposta aos povos indígenas, pois a primeira pergunta é: o que é essa pandemia? O que acontece com essa pandemia?

Então, a primeira missão era buscar informações e saber a verdade sobre o que era essa doença para levar aos territórios indígenas. Então, o primeiro trabalho da Coiab foi intensificar a comunicação. A comunicação foi o ponto estratégico da Coiab, talvez muito mais do que enviar material, alimentação, por exemplo, porque, com as informações, você tinha os territórios munidos, preparados para fazer o enfrentamento lá na ponta.

Não adiantava a gente buscar o enfrentamento aqui, enquanto organização a nível regional, se você não tivesse nos territórios as comunidades preparadas para fazer de fato o enfrentamento. E qual era esse enfrentamento? Acho que era essa busca por respostas que a gente conseguiu ter de partida com nossa atuação enquanto Coiab. Com isso, a gente foi vendo a necessidade de manter as famílias e os territórios isolados, e a primeira informação que a gente passou a circular a partir dessa estratégia da comunicação era: vamos manter o isolamento.

Mas outra questão veio em seguida: como manter os territórios isolados, as comunidades isoladas, principalmente aqueles territórios que não conseguem viver ou que não têm condições de viver com a comida, com os rios garantidos, para que elas se mantenham isoladas de fato. Então, você tinha um cenário de pessoas passando fome, querendo fazer o isolamento, para se manter isoladas em relação à doença, mas você tinha o desafio de como fazer chegar alguns materiais essenciais. Uma das primeiras orientações era: lavem as mãos e se mantenham isolados. Mas lavar a mão com o quê, se você não tinha acesso a um material de higiene mínimo?

Assim, a atuação da Coiab, para além de fornecer cestas básicas, material de higiene, material de informação, foi muito no sentido de que a gente intensificasse, buscasse alternativas no próprio território. Mas, para buscar alternativas, você precisa conhecer, você precisa ter informações sobre aquilo que está te atacando. Como você vai se proteger de algo que você não conhece?

Então, o cenário da primeira atuação da Coiab foi esse. Mas, a partir disso, a gente trouxe uma grande mobilização das comunidades, dos territórios das organizações de base da Coiab para o enfrentamento, que era apresentar o plano emergencial: qual é a estratégia de enfrentamento da covid-19?

A Coiab elaborou um plano emergencial estruturado, foi a primeira organização indígena a ter um plano emergencial de combate à covid-19. Com isso, nós não só apresentamos aos nossos parceiros, mas também ao próprio Estado, que nós tínhamos uma alternativa, tínhamos o caminho de como enfrentar a covid-19 nos territórios indígenas, para além de termos atuado enviando materiais essenciais, que a gente chamou de ações humanitárias emergenciais – que era isso, mandar comida, materiais de higiene.

Isolados

Inclusive, a gente discorda muito sobre essa palavra isolamento. A gente costuma dizer que quem está isolado são os que vivem nos grandes centros urbanos, que precisam conviver, se adequar para aquilo a que foram limitados. Mas enfim, se hoje é esse o termo que se usa, a gente vai usar, mas, meus parentes sempre falam, tem um processo de desconstrução, de que eles não são isolados.

Mas a gente reflete muito sobre essa motivação de isolar. Em muitos dos casos, ela é ocasionada justamente por essa pressão, por essa violência, que não é de hoje, pois tem aí um rastro na história de violência contra os povos indígenas. E, em alguns territórios, você vai ter esse cenário, de que essa recuada desses povos é uma forma de proteção, de se manter distantes daquilo que representa ameaça ou não necessariamente, é o modo de vida que garante que eles tenham a liberdade, que eles não sejam limitados para praticar aquilo que eles sempre praticaram.

Se a gente fosse resumir o “isolar de quê?” e o “isolar de quem?”, muitas vezes o “isolar de quê” é desse avanço, dessa violência; e o “de quem” é de quem causa esse impacto, não necessariamente de outro povo, de outro grupo indígena. Então há vários contextos aí das perspectivas de cada região sobre a motivação desse isolamento, mas eu defendo que é pela autonomia, pela escolha e pelo direito de viver como querem viver. Para mim esse é o princípio do entendimento do isolamento.

Eu tenho convicção de que o alerta dos povos indígenas, de que o modo de vida dos povos indígenas e a cura, como a gente sempre fala, são a única saída para salvar essa humanidade. Os conhecimentos trazidos por povos indígenas, que há muito tempo a gente tem externado e usado em muitos espaços, são a única forma de o mundo ter essa chance de mudar. Não é amanhã, é agora.

Depoimento registrado por Tainá Aragão em abril de 2022, durante o 18º Acampamento Terra Livre

Para que os isolados, seus parentes, continuem vivos

por Tainá Aragão (jornalista do ISA)

Angela Kaxuyana é do povo Kahuyana, da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, que fica no estado do Pará. Foi membra da coordenação-executiva da Coiab entre 2017 a 2022, e uma de suas principais pautas era os povos indígenas isolados, sendo porta-voz da campanha Isolados ou Dizimados, onde procurava pressionar a Funai e sensibilizar a sociedade sobre os povos isolados. Hoje ela é vice-coordenadora da Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coiab).

Ela faz parte da primeira geração de indígenas Kahyana nascidos no Parque Indígena do Tumucumaque, após um deslocamento forçado, e sempre lutou para garantir a existência cultural e territorial do seu povo.

Angela sempre se posicionou em relação ao que acreditava e participou da vida política do povo. Foi ganhando protagonismo, com apoio de um importante aliado: seu professor, Juventino Kaxuyana.

Mais velha, mudou-se para Belém para estudar, mais ou menos na mesma época em que sua família decidia, por conta própria, retornar para seu território tradicional. Em 2003, os Kahyana, Katxuyana e Tunayana pediram oficialmente à Funai o reconhecimento da Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana.

Em Belém, ajudou a fundar a Federação dos Povos Indígenas do Pará (Fepipa) e sua atuação no movimento local lhe rendeu um convite para compor a coordenação executiva da Coiab.