A educação escolar indígena e a mudança de governo
por Luís Donisete Benzi Grupioni, Maio de 2006. Adaptação do texto originalmente publicado no livro Povos Indígenas no Brasil 2001/2005 - ISA.
A lógica da atuação do governo federal nas gestões Itamar e FHC foi a de estabelecer um regime de colaboração com os Estados, a partir dessa divisão de responsabilidades. Tal lógica se estendia aos programas de apoio e fortalecimento das escolas indígenas: concebidos na esfera federal, eram disponibilizados para execução em nível estadual, instância que deveria arcar com os custos financeiros para sua efetivação. Foi assim que após lançar as Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, em 1993, e o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, em 1998, o MEC lançou, em 2001, o programa Parâmetros Curriculares em Ação: Educação Escolar Indígena, com um conjunto de materiais que visavam impulsionar programas de formação de professores indígenas nos estados.
Paralelamente a esse programa e encerrando o ciclo de documentos de caráter formativo e normativo propostos pelo MEC aos sistemas de ensino foi lançado, em 2001, o Referencial para Formação de Professores Indígenas. Com esse documento pretendeu-se impulsionar programas de formação no âmbito dos sistemas estaduais de educação, respondendo tanto à demanda dos índios por formação, quanto à exigência legal de titulação desses professores. Todos esses documentos foram produzidos na perspectiva de dar especificidade ao tema indígena dentro da implementação de ações e políticas mais gerais propostas pelo MEC para o ensino fundamental de todo o país.
Até 2002, duas linhas principais de financiamento foram executadas pelo MEC: uma para formação de professores indígenas e outra para publicação de materiais didáticos. Para as secretarias estaduais de educação disponibilizou-se cerca de 400 mil reais anuais via financiamento do FNDE. Os parcos recursos colocados à disposição dos sistemas de ensino integravam uma estratégia do MEC no sentido de empurrar a conta da educação indígena para a instância estadual, com o uso dos recursos garantidos pelo Fundef. E, talvez, ela seja responsável pela morosidade com que a temática tenha sido absorvida nessas instâncias. Já as organizações indígenas e de apoio aos índios contavam com uma linha de financiamento exclusiva, via recursos internacionais, PNUD e Unesco, com dois editais por ano, que permitiam iniciar e consolidar programas de formação de professores indígenas, bem como a publicação de materiais didáticos específicos.
Além de contarem com uma linha própria de financiamento para seus projetos, as [[ | ONGs]] que conduziam programas de formação de professores indígenas influenciaram ativamente a construção da política de educação indígena implementada pelo MEC, seja porque seus projetos foram considerados referências para a estruturação dessa nova modalidade de educação, seja porque representantes dessas organizações estiveram à frente na coordenação e elaboração de todos os documentos orientadores dessa política bem como tiveram papel marcante no desenho e implementação dos principais programas desenvolvidos nesse período.
No final de 2001, o Comitê de Educação Escolar Indígena do MEC, que reunia representantes indígenas e não-indígenas de vários setores que atuavam na educação indígena, foi extinto e em seu lugar foi constituída a Comissão Nacional de Professores Indígenas, composta unicamente por professores indígenas. Empossada no âmbito da SEF, a Comissão tinha função assessora e propositiva em relação à política de educação escolar indígena. Sua instalação foi saudada como uma conquista pelo movimento indígena, por ser a única instância totalmente indígena a executar o controle social de uma política implementada pelo Estado brasileiro, e recebida com certa reserva por parte de outros setores que compunham o antigo Comitê, que deixavam de contar com um canal direto e institucionalizado de representação junto ao MEC.
Educação indígena na SECAD
A nova gestão da educação indígena no MEC, iniciada em 2003, ocorreu a partir de um novo enquadramento institucional da temática. Lotada na Secretaria de Ensino Fundamental desde sua criação, primeiro como assessoria e depois como coordenação, a gestão da educação indígena foi transferida para a então recém criada Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), onde também se reuniram as coordenações de educação de jovens e adultos, afro-descendentes, do campo e das minorias sexuais.
Essa transferência foi recebida com ceticismo por parte dos atores desse campo, que, de um lado, temiam a perda do espaço já conquistado dentro da estrutura da antiga SEF, e, de outro, frustravam-se pelo não atendimento de uma reivindicação que também fora apresentada ao governo anterior: a da criação de uma Secretaria Nacional de Educação Indígena no MEC. Contra-argumentando, os novos gestores afirmavam que tal mudança representaria a possibilidade de colocar a educação indígena num novo patamar, ampliando as ações para além do ensino fundamental, com a inclusão do ensino médio, e aproximando essa modalidade de outras a partir de incorporação da temática da diversidade na agenda política e institucional do MEC. Nessa mudança, o Programa Diversidade na Universidade, então abrigado na Secretaria de Ensino Médio, também é transferido para a Secad, e tem alguns de seus eixos reorientados para atender à demanda por ações no ensino médio e nas licenciaturas interculturais.
Além dessa nova posição dentro do organograma ministerial, ocorreu uma nova situação em termos da composição da equipe de gestão da educação indígena dentro do MEC. Esta deixou de ser exercida por gestores da burocracia do quadro do ministério, e em 2003 passou a ser assumida por profissionais que vinham, há muitos anos, atuando no campo da educação indígena. Seminários e encontros nacionais que haviam marcado as gestões anteriores, envolvendo diferentes atores do campo da educação indígena, entre os quais secretarias de educação, especialistas universitários e representantes de organizações não-governamentais deixaram de ser realizados. No seu lugar, encontros regionais, centrados na problemática do ensino médio, foram realizados em 9 regiões do país ao longo de 2004, alguns deles resultando em cartas de compromissos entre as diferentes esferas de governo.
A instância consultiva e assessora da política do MEC foi reorganizada, em 2004, passando a denominar-se Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, composta a partir de então por dez representantes de professores indígenas e cinco representantes de organizações indígenas. Com essa nova configuração, a Comissão passou a ser a principal interlocutora do MEC para discussão da política de educação indígena.
Ainda em 2004, foi criada a Comissão Nacional de Apoio à Produção de Material Didático Indígena (Capema), reunindo professores indígenas e especialistas com a função de, entre outras, avaliar propostas de publicação apresentadas por secretarias estaduais e municipais de educação, ONGs e organizações indígenas. Um edital de convocação de projetos foi realizado no período. Outro interlocutor que passou a estar mais presente na arena de atuação do MEC foram os sistemas estaduais de ensino, que passaram a ser objeto de investimentos institucionais com aumento expressivo de aporte de recursos financeiros. Esses recursos foram disponibilizados para a realização de formação inicial e continuada de professores indígenas, publicação de materiais didáticos e construção de escolas.
Se em anos anteriores, as ONGs foram priorizadas no financiamento de projetos, nesses últimos anos o foco deslocou-se para os sistemas de ensino estaduais e municipais. Os valores apresentados na tabela evidenciam um aumento expressivo de recursos repassados pelo governo federal aos estados. Além de investimentos em programas de formação de professores indígenas, em nível médio e superior, e publicação de materiais didáticos, percebe-se um investimento importante na reestruturação da rede física das escolas indígenas, com recursos para construção, reforma e ampliação desses estabelecimentos.
Nesse novo contexto, as ONGs perderam não só recursos, como também espaço de influência, articulação e destaque dentro da política implementada pelo MEC. Este tomou como parceiro principal os sistemas de ensino estaduais e procurou enraizar a temática junto ao Consed, o Conselho dos Secretários Estaduais de Educação, que criou uma sub-comissão de educação indígena para dar agilidade e encaminhamento às propostas construídas conjuntamente. Logo em 2003, as ONGs, já percebendo a falta de canais institucionalizados de interlocução com o governo, tentariam propor uma agenda de trabalho, que não encontrou receptividade. Entre as propostas apresentadas estava a criação de um sistema nacional de educação indígena, a criação de uma secretaria nacional no MEC para cuidar dessa temática e a instituição de um fundo permanente para projetos de formação de professores indígenas.
Descaminhos e desafios
A trajetória de programas e investimentos financeiros direcionados à educação indígena no governo federal nos últimos anos revela a baixa institucionalidade dessa política pública. Esta apresenta características próprias de uma política de governo, sujeita às mudanças de orientação política a cada troca de dirigentes. E vários desafios permanecem para sua consolidação.
O principal deles diz respeito a construir mecanismos adequados por meio dos quais a escola indígena, inserida nos sistemas de ensino, consiga sobreviver com identidade própria. Nesse sentido, é digno de nota o esforço que o MEC vem desenvolvendo nos últimos anos em termos de reconhecer e identificar as escolas indígenas nos censos escolares, incentivando as secretarias de educação a darem visibilidade a essas escolas, o que implica reconhecerem-na como uma categoria própria e distinta das demais escolas do sistema, tal como preconiza a legislação. Esse reconhecimento não pode se restringir ao aspecto técnico e legalista, mas deve implicar no esforço de tratá-la em sua especificidade.
Um outro desafio remete à criação da categoria professor indígena dentro dos sistemas de ensino. Trata-se não só de encontrar um lugar funcional para esses professores, como de ter que enfrentar questões extremamente complexas como concursos públicos diferenciados, planos de cargos e salários específicos, continuidade da formação etc. Aí é que se cria um impasse ainda não equacionado, pois os sistemas, de modo geral, encontram-se extremamente despreparados para enfrentar a gestão dessa modalidade de ensino, com pessoal pouco qualificado, parcos recursos financeiros e falta de compreensão e vontade política dos atuais dirigentes.
De maneira geral, os professores indígenas não têm encontrado formação adequada para enfrentar a empreitada de repensar a instituição escolar, com vistas a dar efetividade à proposta de uma escola “verdadeiramente” indígena. Inseridos no sistema, assumem cada vez mais o papel de funcionários dos governos estaduais do que propriamente o de agentes em suas comunidades. A proliferação dos cursos de formação de professores indígenas sob responsabilidade exclusiva dos sistemas de ensino tem ensejado a necessidade de uma avaliação criteriosa a respeito da natureza da formação que vem sendo oferecida aos professores indígenas por meio de cursos de formação em nível médio e agora também em nível superior. Inspirados nos programas de ONGs, que estavam alicerçados em práticas que se desenvolviam ao longo de muitos anos, alguns com duração de mais de dez anos, os novos cursos estruturam-se em tempos curtos, de quatro a cinco anos. Contudo, os momentos presenciais dessa formação, quase toda ela em serviço e em contextos pluriétnicos, se desenvolvem com uma empobrecida grade curricular, inspirada cada vez menos na história, na cultura e na especificidade dos grupos envolvidos. Contando com número crescente de formadores oriundos das equipes pedagógicas das Secretarias de Educação, esses programas vão perdendo densidade antropológica e lingüística em prol do repasse de conteúdos e competências exclusivas à função docente. Tem havido pouco engajamento na tarefa de propiciar aos professores indígenas a oportunidade de pensar coletivamente um projeto específico e próprio de escola, que permita sair de uma genérica escola indígena, que tem se pautado antes de tudo pela baixa qualidade do ensino oferecido, para uma escola que se paute pelas demandas e projetos de futuro das respectivas comunidades indígenas.
Diante desse quadro, cada vez mais burocratizado de práticas de formação de professores indígenas e de engessamento da instituição escolar, talvez a proposição de retomada da discussão sobre um sistema próprio para a educação indígena, ainda que hoje pautado por interesses não tão nobres, possa representar uma oportunidade para retomar velhas indagações a respeito do sentido da escola em terras indígenas, aprofundando a discussão sobre os rumos da política nacional de educação escolar indígena no país. Nesse contexto, seria de se esperar que as ONGs, que tiveram papel marcante na estruturação da política de educação indígena, assumam uma postura mais propositiva, impulsionando as discussões com vistas à consolidação de um quadro de reconhecimento da diferença cultural e de respeito às experiências inovadoras de processos escolares em terras indígenas. Para isso, elas precisam romper com a frustração de não terem sido chamadas para a mesa de negociações com o atual governo e recuperar seu protagonismo político enquanto movimento social organizado frente ao Estado brasileiro.