From Indigenous Peoples in Brazil

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Limonada inovadora

23/02/2017

Autor: VEIGA, José Eli da

Fonte: Valor Econômico, Opinião, p. A15



Limonada inovadora

É um escárnio que o saneamento básico não seja assumido como um dos mais elementares direitos humanos

José Eli da Veiga

As desigualdades são melhor combatidas por sociedades que dão máxima prioridade à primeira infância, fase que começa na concepção e vai até ao menos os três anos de idade. Por isso, é assustador que no Brasil quase ninguém dê bola para a série de pesquisas "Advancing Early Childhood Development: from Science to Scale", disponibilizada pelo renomado periódico científico The Lancet: http://www.thelancet.com/series/ECD2Qi6
Não surpreende que a direita brasileira ignore o assunto. Afinal, é justamente a indiferença às desigualdades sociais o que melhor define essa corrente política há mais de dois séculos. Mas é muito estranho que aqui o mesmo ocorra com esquerda e centro.
Tamanha anomalia é, com certeza, bom começo de explicação para a pior calamidade nacional: mais da metade das crianças deste país chafurda diariamente em dejetos e excreções. Pode haver mais revoltante injustiça social do que impedir que elas acessem um bem público tão essencial para sua saúde e o bem- estar quanto o esgoto? É um escárnio que o saneamento básico - do qual o esgoto é uma das dimensões essenciais, junto com água potável, coleta de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais - não seja aqui assumido como um dos mais elementares direitos humanos.
Nunca será demais reiterar que recorrentes infecções parasitárias na primeira infância comprometem a inteligência dos que a elas conseguem sobreviver. O cérebro é o órgão do corpo humano que mais consome energia: 87% no recém-nascido, 44% aos cinco anos, 34% aos dez. Infecções desviam energia para ativar o sistema imunológico. Por isso, freqüentes diarréias na primeira infância roubam do cérebro as calorias necessárias ao seu desenvolvimento.
Triste confirmação está em cálculos sobre os prejuízos escolares de jovens sem acesso ao esgotamento sanitário. Eles são até maiores que os causados pela própria falta de água encanada, como demonstraram Javier Santiago Ortiz-Correa e Moises Resende Filho, da UnB, em artigo com Ariel Dinar publicado na Water Resources and Economics (14, 2016)
É imprescindível que se pergunte, então, por que a sociedade brasileira continua a dar de ombros à necessidade de universalizar o acesso ao esgoto, aceitando passivamente sua lanterninha dos rankings internacionais sobre redes de coleta e tratamento.
Uma efetiva resposta a tal pergunta provavelmente ainda vai demandar décadas de estudos de cientistas políticos e historiadores, pois é um desafio tão ou mais ambicioso que o de explicar por que demorou tanto o fim da escravidão.
Não há segredo, porém, sobre o que precisa ser feito para turbinar o processo a partir de agora: imitar a mudança regulatória pela qual passou a telefonia nos anos 1990, como bem destacou o sócio do BTG Pactuai, Antonio Junqueira, no Valor de 15/02. Nada poderia ser mais auspicioso do que multiplicar as PPPs de saneamento que começam a despontar, o que depende de reviravolta institucional. A superação das atuais incertezas exige um regulador federal único, que crie incentivos atraentes para empresas com know how.
Entretanto, para realmente poder tirar desse limão uma inovadora limonada, será preciso encarar a tragédia higiênica do país como oportunidade, ou até como um trunfo. Porque futuras estações de tratamento de esgotos poderão ser projetadas com um tripé de novas funções: obtenção de fertilizantes (com destaque para o fósforo); geração de bioenergias (biodiesel, biogás, bioeletricidade), e, claro, reuso da água tratada.
A obtenção de materiais fosfatados já é exemplar na Holanda, tanto mediante a coleta prévia de urina para reciclagem, como por remoção no tratamento terciário de esgoto. Isso porque por lá existe clareza sobre o caráter crucial do fósforo para a agricultura, e do conseqüente perigo de se depender dos raros países exportadores de rocha fosfática.
Já na geração de bioenergias via tratamento de esgoto, ainda não há país que possa ser apontado como benchmark. Mas a pesquisa tecnológica brasileira está bem menos atrasada no uso de algas para fins energéticos do que na obtenção de fertilizantes. Só que a viabilidade econômico-financeira desse cultivo exige, por enquanto, exploração integrada e sinérgica das produções de biocombustíveis, de fertilizantes e de coprodutos de maior valor agregado, como os da linha "nutracêutica": carotenos, espirulina e astaxantina, por exemplo. Enquanto perdurar a desleal concorrência provocada por criminosos subsídios às energias fósseis, só com polivalentes biorefinarias poderá ser rentável a exploração de microalgas.
Por fim, há outra auspiciosa opção, ainda no âmbito energético: o aprimoramento já em curso das sensacionais "CCMs" (células de combustível microbianas), que permitem a produção direta de eletricidade, pois lidam com microrganismos capazes de oxidar matéria orgânica e transferir elétrons para um ânodo. Experimentos realizados com apoios do CNPq e da Fapesp indicam que essa inovação pode estar bem próxima de sua fase comercial.

José Eli da Veiga tornou-se professor sênior do IEE/USP (Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo) após trinta anos de docência no Departamento de Economia da FEA/USP (1983-2012). Mantém dois sites: www.zeeli.pro.br e www.sustentaculos.pro.br

Valor Econômico, 23/02/2017, Opinião, p. A15

http://www.valor.com.br/opiniao/4878740/limonada-inovadora
 

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