From Indigenous Peoples in Brazil
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Céu de árvores misteriosas
13/06/2015
Fonte: O Globo, Sociedade, p. 25
Céu de árvores misteriosas
Floresta do Amapá, quase intocada pelo homem, é um universo à parte no Brasil
Ana Lucia Azevedo*
A Lua cheia iluminou as noites de junho. Mas o luar foi incapaz de ultrapassar a barreira verde da copa da floresta amazônica. Esta permaneceu escura como o breu que dá nome a uma das suas milhares de espécies de árvores, alheia à luz que prateava os rios e a noite. Nesse canto do Brasil cortado pela linha do equador e situado no Hemisfério Norte, o calor reina eterno e o inverno que se despede é apenas a estação mais chuvosa. A floresta domina homens, bichos e plantas como há milhares de anos, muito antes da chegada dos colonizadores europeus.
Às margens do pedregoso Araguari, um gigante que serpenteia pela mata com corredeiras e pororocas por cerca de 300 quilômetros, se espalha a Floresta Nacional do Amapá (Flona). Com 4.120 quilômetros quadrados - mais de cem vezes maior do que a Floresta da Tijuca -, ela é riquíssima em biodiversidade em padrões planetários. Uma área de 0,02 km abriga 143 espécies de árvores de grande porte. Porém, é modesta para o Amapá, um dos estados mais pobres do Brasil e o único onde o desmatamento não avança, com 74% do território em unidades de conservação e terras indígenas. Menos de 10% da biodiversidade são conhecidos, mas estima-se que as espécies cheguem a 777 mil.
O coração da Flona do Amapá guarda matas densas e sem registro de passagem de seres humanos, salvo alguns poucos índios e caçadores. Pessoas, poucas, só nas bordas. Nas profundezas da mata, onde não há gente e vive uma multidão de animais e plantas, a Amazônia ainda se exibe em toda a sua glória. Visto do interior da Amazônia virgem, o céu é verde, numa profusão de tonalidades. Um céu sem estrelas, forrado pelas folhas das grandes árvores, que ultrapassam 20, 30 metros. Em vez de constelações, copas de angelins, samaúmas, castanheiras, acapus e maçarandubas, entre muitas outras.
Quando a noite cai, fungos bioluminescentes emitem um brilho fugaz. São os únicos pontos luminosos em meio à escuridão. O feixe de luz das lanternas percorre o alto da floresta e quase não encontra brechas. O céu verdadeiro aparece só nas clareiras abertas pela queda de alguma árvore. Para surpresa de quem está acostumado ao emaranhado de raízes, cipós e arbustos que domina o solo da Mata Atlântica, o chão da floresta amazônica de terra firme é aberto. O chefe da Flona, Érico Kauano, explica que a pouca luz que chega ao solo dificulta a fotossíntese e o crescimento de vegetação rasteira.
As grandes árvores formam uma estufa. A umidade do ar perto da saturação impede que o suor evapore e refresque o corpo, o que torna o calor intolerável. A respiração pesa. Pessoas não aclimatadas sentem a pressão despencar e ficam tontas.
A floresta fabrica chuva. Não apenas se sente o ciclo da água. Ele é visível. Nuvens emergem da mata. A umidade sufoca, afoga. A sensação é a de respirar água.
- Não há nada parecido no mundo. A floresta dá as cartas e controla o próprio clima, com impacto em todo o Brasil. Ela processa o vapor d'água do Atlântico, que, com as mudanças climáticas, esquentou. Chove ainda mais, a descarga do Amazonas aumentou. E não sabemos ainda as consequências disso - diz Paulo Artaxo, da USP, um dos maiores especialistas em clima da Amazônia.
Esse mundo selvagem e úmido se enche de sons à noite. Ouvem-se vozes, nada se vê. Vozes de milhares de insetos e sapos. Gritos estridentes de bandos de macacos guaribas. Piados de dar calafrios de aves noturnas, como o urutau. E não faltam relatos daqueles que vez por outra escutam o mais temido de seus sons, o esturrar da onça pintada, o maior felino das Américas.
- Mas, se ela quiser te pegar, vai dar o bote sem fazer ruído - garante o mateiro e barqueiro Davi Souza de Pinho, que conhece bem a Flona do Amapá e encara a floresta com desenvoltura à noite.
O dia traz uma névoa quente, que se dissipa à medida que o sol sobe. Amanhecer e anoitecer são abruptos. O calor do sol a pino junto à linha do equador preso na estufa da floresta é onipresente.
Delicadeza e hostilidade
A floresta densa é ao mesmo tempo hostil e delicada. Tocar numa árvore pode custar ser queimado por lagartas ou picado por formigas. Mosquitos transmitem mais de 200 tipos de arbovírus, além de malária e outras doenças. Troncos caídos escondem tocas de porcos do mato. Um olhar atento revela pegadas de anta. Nascentes brotam no meio de folhas mortas e abrigam larvas de anfíbios. O chão abriga milhares de outras formas de vida (vermes, moluscos, insetos, aranhas, fungos). Cada árvore é um microcosmo da floresta, uma comunidade.
- Uma única árvore pode abrigar 40 espécies de orquídeas, mais de cem de outras plantas, milhares de insetos, sapos, cobras, macacos, aves e outros animais - destaca Patrick Cantuária, botânico do Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do Amapá (Iepa). Cantuária fez um levantamento das orquídeas do Amapá, cujo número saltou de 133 para 250 e pode chegar a 500, já que apenas 20% das florestas foram estudadas.
Esse mundo rude vive em equilíbrio sutil. Dentro da mata as doenças estão sob controle. A Amazônia regula o clima de parte do continente. A biodiversidade tem potencial de fornecer ativos capazes de tirar da pobreza os povos da floresta. Mas o colapso pode chegar antes mesmo do desmatamento. Muitas das árvores-comunidade dependem das abelhas das savanas das bordas da floresta para dispersarem suas sementes e se reproduzirem. Morre o cerrado e a gigante definhará.
*A repórter viajou a convite da Conservação Internacional
'A gente vive dentro da riqueza e não usa direito'
Novo fundo prevê capacitar comunidades agrícolas e extrativistas na região
Sentado na margem do Araguari, Raimundo Coelho Marques, o seu Raimundão, de 57 anos, aponta a floresta. Ali estão açaizeiros, copaíbas, andirobas, bacabás, pequiás, uxis e pracaxis dos quais tira o sustento da família. Raimundão é o presidente da Associação Agroextrativista do Rio Araguari, que reúne as 66 famílias que vivem nas bordas da Flona.
- A gente vive dentro da floresta, dentro da riqueza. E não sabe como usar direito. Queremos aprender a explorar a floresta e a trazer turistas para cá - diz ele, que com a mulher Vitalina de Oliveira, a dona Vita, deixou o município de Porto Grande e foi para a mata.
Já perderam sete dos 11 cachorros para a boca das onças. Mesmo assim, dona Vita se sente mais segura e à vontade na Flona.
- A onça está no território dela. Temos que respeitar. Ela é parte da floresta, como o açaí do qual vivemos - conta.
O chefe da Flona, Érico Kauano, também vê no manejo e beneficiamento dos produtos florestais e no ecoturismo oportunidades de desenvolvimento. Esperam que iniciativas como o recém-criado Fundo Amapá ajudem a capacitar comunidades e melhorar a infraestrutura. O fundo lançado este mês com recursos iniciais de R$ 5 milhões concedidos pela ONG Conservação Internacional (CI-Brasil) conta com a parceria do Funbio e do governo do estado. Vai beneficiar projetos sustentáveis de extrativistas, quilombolas, índios, pescadores e pequenos agricultores.
- Só haverá preservação se não houver miséria. E a carência é tão grande que há muito o que melhorar. O Amapá tem uma pesca rica. O peixe filhote, de carne nobre, não chega ao restante do país. O açaí e a castanha entram em pouca quantidade e o produtor fica com uma ínfima parcela. Um pote de 200 gramas de castanha do Brasil custa cerca de R$ 15 no Rio, mas o extrativista amapaense lucra R$ 0,10 - frisa Rodrigo Medeiros, vice-presidente da CI-Brasil. Ele observa que a agrobiodiversidade representa 1% do PIB agrícola brasileiro por falta de investimento.
- O Amapá pode ser um laboratório de conservação ambiental - acredita.
O Globo, 13/06/2015, Sociedade, p. 25
http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/ceu-de-arvores-misteriosas-16431516
Floresta do Amapá, quase intocada pelo homem, é um universo à parte no Brasil
Ana Lucia Azevedo*
A Lua cheia iluminou as noites de junho. Mas o luar foi incapaz de ultrapassar a barreira verde da copa da floresta amazônica. Esta permaneceu escura como o breu que dá nome a uma das suas milhares de espécies de árvores, alheia à luz que prateava os rios e a noite. Nesse canto do Brasil cortado pela linha do equador e situado no Hemisfério Norte, o calor reina eterno e o inverno que se despede é apenas a estação mais chuvosa. A floresta domina homens, bichos e plantas como há milhares de anos, muito antes da chegada dos colonizadores europeus.
Às margens do pedregoso Araguari, um gigante que serpenteia pela mata com corredeiras e pororocas por cerca de 300 quilômetros, se espalha a Floresta Nacional do Amapá (Flona). Com 4.120 quilômetros quadrados - mais de cem vezes maior do que a Floresta da Tijuca -, ela é riquíssima em biodiversidade em padrões planetários. Uma área de 0,02 km abriga 143 espécies de árvores de grande porte. Porém, é modesta para o Amapá, um dos estados mais pobres do Brasil e o único onde o desmatamento não avança, com 74% do território em unidades de conservação e terras indígenas. Menos de 10% da biodiversidade são conhecidos, mas estima-se que as espécies cheguem a 777 mil.
O coração da Flona do Amapá guarda matas densas e sem registro de passagem de seres humanos, salvo alguns poucos índios e caçadores. Pessoas, poucas, só nas bordas. Nas profundezas da mata, onde não há gente e vive uma multidão de animais e plantas, a Amazônia ainda se exibe em toda a sua glória. Visto do interior da Amazônia virgem, o céu é verde, numa profusão de tonalidades. Um céu sem estrelas, forrado pelas folhas das grandes árvores, que ultrapassam 20, 30 metros. Em vez de constelações, copas de angelins, samaúmas, castanheiras, acapus e maçarandubas, entre muitas outras.
Quando a noite cai, fungos bioluminescentes emitem um brilho fugaz. São os únicos pontos luminosos em meio à escuridão. O feixe de luz das lanternas percorre o alto da floresta e quase não encontra brechas. O céu verdadeiro aparece só nas clareiras abertas pela queda de alguma árvore. Para surpresa de quem está acostumado ao emaranhado de raízes, cipós e arbustos que domina o solo da Mata Atlântica, o chão da floresta amazônica de terra firme é aberto. O chefe da Flona, Érico Kauano, explica que a pouca luz que chega ao solo dificulta a fotossíntese e o crescimento de vegetação rasteira.
As grandes árvores formam uma estufa. A umidade do ar perto da saturação impede que o suor evapore e refresque o corpo, o que torna o calor intolerável. A respiração pesa. Pessoas não aclimatadas sentem a pressão despencar e ficam tontas.
A floresta fabrica chuva. Não apenas se sente o ciclo da água. Ele é visível. Nuvens emergem da mata. A umidade sufoca, afoga. A sensação é a de respirar água.
- Não há nada parecido no mundo. A floresta dá as cartas e controla o próprio clima, com impacto em todo o Brasil. Ela processa o vapor d'água do Atlântico, que, com as mudanças climáticas, esquentou. Chove ainda mais, a descarga do Amazonas aumentou. E não sabemos ainda as consequências disso - diz Paulo Artaxo, da USP, um dos maiores especialistas em clima da Amazônia.
Esse mundo selvagem e úmido se enche de sons à noite. Ouvem-se vozes, nada se vê. Vozes de milhares de insetos e sapos. Gritos estridentes de bandos de macacos guaribas. Piados de dar calafrios de aves noturnas, como o urutau. E não faltam relatos daqueles que vez por outra escutam o mais temido de seus sons, o esturrar da onça pintada, o maior felino das Américas.
- Mas, se ela quiser te pegar, vai dar o bote sem fazer ruído - garante o mateiro e barqueiro Davi Souza de Pinho, que conhece bem a Flona do Amapá e encara a floresta com desenvoltura à noite.
O dia traz uma névoa quente, que se dissipa à medida que o sol sobe. Amanhecer e anoitecer são abruptos. O calor do sol a pino junto à linha do equador preso na estufa da floresta é onipresente.
Delicadeza e hostilidade
A floresta densa é ao mesmo tempo hostil e delicada. Tocar numa árvore pode custar ser queimado por lagartas ou picado por formigas. Mosquitos transmitem mais de 200 tipos de arbovírus, além de malária e outras doenças. Troncos caídos escondem tocas de porcos do mato. Um olhar atento revela pegadas de anta. Nascentes brotam no meio de folhas mortas e abrigam larvas de anfíbios. O chão abriga milhares de outras formas de vida (vermes, moluscos, insetos, aranhas, fungos). Cada árvore é um microcosmo da floresta, uma comunidade.
- Uma única árvore pode abrigar 40 espécies de orquídeas, mais de cem de outras plantas, milhares de insetos, sapos, cobras, macacos, aves e outros animais - destaca Patrick Cantuária, botânico do Instituto de Pesquisa Científica e Tecnológica do Estado do Amapá (Iepa). Cantuária fez um levantamento das orquídeas do Amapá, cujo número saltou de 133 para 250 e pode chegar a 500, já que apenas 20% das florestas foram estudadas.
Esse mundo rude vive em equilíbrio sutil. Dentro da mata as doenças estão sob controle. A Amazônia regula o clima de parte do continente. A biodiversidade tem potencial de fornecer ativos capazes de tirar da pobreza os povos da floresta. Mas o colapso pode chegar antes mesmo do desmatamento. Muitas das árvores-comunidade dependem das abelhas das savanas das bordas da floresta para dispersarem suas sementes e se reproduzirem. Morre o cerrado e a gigante definhará.
*A repórter viajou a convite da Conservação Internacional
'A gente vive dentro da riqueza e não usa direito'
Novo fundo prevê capacitar comunidades agrícolas e extrativistas na região
Sentado na margem do Araguari, Raimundo Coelho Marques, o seu Raimundão, de 57 anos, aponta a floresta. Ali estão açaizeiros, copaíbas, andirobas, bacabás, pequiás, uxis e pracaxis dos quais tira o sustento da família. Raimundão é o presidente da Associação Agroextrativista do Rio Araguari, que reúne as 66 famílias que vivem nas bordas da Flona.
- A gente vive dentro da floresta, dentro da riqueza. E não sabe como usar direito. Queremos aprender a explorar a floresta e a trazer turistas para cá - diz ele, que com a mulher Vitalina de Oliveira, a dona Vita, deixou o município de Porto Grande e foi para a mata.
Já perderam sete dos 11 cachorros para a boca das onças. Mesmo assim, dona Vita se sente mais segura e à vontade na Flona.
- A onça está no território dela. Temos que respeitar. Ela é parte da floresta, como o açaí do qual vivemos - conta.
O chefe da Flona, Érico Kauano, também vê no manejo e beneficiamento dos produtos florestais e no ecoturismo oportunidades de desenvolvimento. Esperam que iniciativas como o recém-criado Fundo Amapá ajudem a capacitar comunidades e melhorar a infraestrutura. O fundo lançado este mês com recursos iniciais de R$ 5 milhões concedidos pela ONG Conservação Internacional (CI-Brasil) conta com a parceria do Funbio e do governo do estado. Vai beneficiar projetos sustentáveis de extrativistas, quilombolas, índios, pescadores e pequenos agricultores.
- Só haverá preservação se não houver miséria. E a carência é tão grande que há muito o que melhorar. O Amapá tem uma pesca rica. O peixe filhote, de carne nobre, não chega ao restante do país. O açaí e a castanha entram em pouca quantidade e o produtor fica com uma ínfima parcela. Um pote de 200 gramas de castanha do Brasil custa cerca de R$ 15 no Rio, mas o extrativista amapaense lucra R$ 0,10 - frisa Rodrigo Medeiros, vice-presidente da CI-Brasil. Ele observa que a agrobiodiversidade representa 1% do PIB agrícola brasileiro por falta de investimento.
- O Amapá pode ser um laboratório de conservação ambiental - acredita.
O Globo, 13/06/2015, Sociedade, p. 25
http://oglobo.globo.com/sociedade/sustentabilidade/ceu-de-arvores-misteriosas-16431516
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