From Indigenous Peoples in Brazil
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Água corrente
23/11/2014
Autor: DÁVILA, Marcos
Fonte: FSP, Revista da Folha, p. 18-27
Documentos anexos
Água corrente
Não potável, recurso de lençol freático que jorra em edifícios pode ser usado para limpeza
MARCOS DÁVILA
Faz dias que não chove. O sol castiga o asfalto no bairro da Liberdade e eis que surge um riacho veloz na sarjeta da rua Dr. Tomaz de Lima (região central). O nível do reservatório Cantareira registra apenas 10% de sua capacidade, contando o volume morto. Então, de onde vem tanta água em plena crise hídrica?
A corredeira chega a fazer barulho, arrastando as folhas secas e bitucas de cigarro à beira do meio-fio. Será algum desavisado limpando a calçada com o esguicho? Ninguém à vista naquele trecho da via.
O mistério é resolvido ao dobrar a esquina na rua Conde de Sarzeda, no alto da ladeira. O aguaçal vem de um cano na calçada em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, no Edifício 9 de Julho, número 100.
"Com essa água dava para lavar a nossa frota de carros", diz um motorista que trabalha no tribunal. Segundo ele, a água jorra de meia em meia hora. Todos os dias são despejados milhares de litros na sarjeta, que já ganhou uma camada de limo.
Devido à profundidade da fundação do prédio, a água do lençol freático é desviada para um reservatório para não causar alagamento nas garagens dos subsolos. De quando em quando, a bomba é acionada, lançando o excesso de líquido para a rede pluvial na rua.
De acordo com o Tribunal de Justiça, "foram feitas diversas tentativas de reutilização da água, mas o forte cheiro de esgoto inviabiliza o uso".
Esse tipo de situação se repete em centenas de prédios na cidade, porém, não existe um levantamento oficial que contabilize todos os casos de edificações que fazem brotar água do lençol freático por conta da profundidade da fundação.
Dependendo da região da cidade, esses reservatórios superficiais subterrâneos, abastecidos pelas chuvas e vazamentos da rede pública, podem ser atingidos a menos de cinco metros de profundidade.
Armazenamento
Na rua Estevão Barbosa, nos fundos do edifício residencial Spazio di Vivere, na Vila Anglo (região oeste), um cano lança água na rua. Segundo o zelador Miguel Ramos da Costa, 55, a construção atingiu o lençol freático e precisa bombear a água para não inundar o segundo subsolo.
Parte da água drenada é armazenada em um poço em um reservatório de 5.000 litros e é usada para lavar o pátio e regar as plantas.
"Não é água potável, mas fizemos uma análise no Instituto Adolfo Lutz e ela foi considerada satisfatória para esse uso", diz o zelador.
Logo em frente fica um depósito de material reciclável. Indignado com o desperdício, o proprietário Roberto Barriento, 46, criou um sistema de captação com um pedaço de cano e uma mangueira.
São necessários apenas três minutos para encher um tonel de 200 litros, tamanha a pressão. Ele trabalha há 28 anos no mesmo local e aproveita a água para lavar os carros e o pátio.
"Liguei para a Sabesp várias vezes, mandei e-mail, mas ninguém vem", diz Barriento. A empresa não é responsável pelos casos de rebaixamento do lençol freático Ðapenas se a água for direcionada para a rede de esgoto, cuidada pela estatal, é preciso pagar taxa mensal.
As águas subterrâneas são assunto do Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica). Por meio de sua assessoria de comunicação, o Daee afirma que "o processo de lançamento dessa água [dos lençóis freáticos] na sarjeta é uma prática regular, pois, dessa maneira, ela cumpre o seu ciclo hídrico. O não descarte desse recurso pode ser prejudicial à estrutura do imóvel".
Segundo o Daee, para o descarte em via pública, não é necessária nenhuma formalização.
O pedido de outorga ou cadastramento só é necessário quando se faz a utilização da água. Em setembro, o órgão publicou uma portaria que permite o uso de recursos hídricos decorrentes de rebaixamento de lençol freático. Quando a captação atinge uma quantidade igual ou superior a 5.000 litros por dia, está sujeita ao cadastramento e à outorga. Se for inferior, é necessário apenas o cadastramento.
De acordo com a Cetesb (companhia ambiental de SP), a água proveniente do rebaixamento do lençol não pode ser ingerida e deve ser armazenada separadamente da água potável da rede pública.
"Estamos jogando fora uma coisa que agora tem valor, mas antes não se dava bola", afirma Reginaldo Bertolo, diretor do Cepas (Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas), da USP, sobre os recursos do lençol freático. Ele explica que essas águas tendem a ter uma qualidade ruim.
"Toda sorte de atividades que acontecem na superfície geram poluentes que migram solo adentro até alcançar o aquífero freático."
Os vazamentos da rede pública de esgoto, de postos de gasolina e de fossas são apontados como os principais causadores de contaminação. Os resíduos industriais podem gerar uma poluição ainda mais tóxica.
Mesmo sem potabilidade, esse recurso hídrico poderia ser utilizado para lavagem de calçadas, pátios e carros, rega de jardins e até como descarga sanitária. "Prédios que drenam continuamente a água do freático devem investir num reservatório para que a água seja usada para fins não nobres", diz Bertolo.
O professor de engenharia hídrica Ivanildo Hespanhol, diretor do Centro Internacional de Referência em Reuso de Água, cita o exemplo do Sesc Pinheiros, na zona oeste.
Durante a construção, brotou água com alta concentração de ferro em dois pontos da garagem. Depois de tratada, a água pode ser usada nas bacias sanitárias e na limpeza do piso. Mensalmente, são captados e utilizados 600 mil litros.
Águas profundas
Um estudo do Cepas mostra que há hoje uma oferta de 16 mil litros de água por segundo nos aquíferos da região metropolitana. É uma vazão compatível com uma Guarapiranga inteira, que abastece 4,9 milhões de pessoas. Dez mil litros de água por segundo já são utilizados por poços privados, inclusive os clandestinos.
De acordo com o diretor do Cepas, é preciso diferenciar a água encontrada no aquífero superficial Ðque pode aparecer nas garagens dos prédiosÐ daquela dos poços profundos, chamados de artesianos.
Esses poços chegam a ter entre 150 e 200 metros de profundidade e captam uma água de boa qualidade. A vazão é alta e permite atender demandas de hospitais, creches, escolas, indústrias e condomínios.
A maior parte deles, no entanto, é ilegal. O mesmo estudo do Cepas mostra que, dos 12 mil poços 60% são clandestinos. Além disso, existem áreas superexploradas. "Algumas zonas estão secando", alerta.
O diretor do Cepas explica que a quantidade de poços profundos utilizada para o abastecimento público é irrisória. Esse recurso deveria ser considerado nas épocas de seca.
"É uma água privatizada. Talvez chegue o momento em que alguma autoridade pública decrete estado de calamidade ou emergência e esses poços particulares sejam requeridos. A água subterrânea pode desempenhar um papel muito importante para a segurança hídrica da população, principalmente em momentos de escassez", afirma Bertolo.
Aqui passa um rio
Debaixo das principais avenidas de São Paulo, passam rios. Sob a 23 de Maio, corre o Itororó. Na 9 de Julho,flui o Saracura. Na avenida dos Bandeirantes, esconde-seo córrego da Traição. E, na avenida Pacaembu, claro,o Pacaembu.
Na capital paulista, existem mais de 300 cursos de água encobertos. Pouco a pouco, alguns moradores da cidade depositam um olhar mais atento para esses leitos ocultos. Grupos de ativistas, artistas, geógrafos e arquitetos têm colocado os rios na mira de suas atividades. Vale escrever uma frase no asfalto com o dizer "aqui passa um rio", criar um bloco de Carnaval que percorra o curso de um córrego, encenar uma peça de teatro a partir das memórias de uma enchente ou inventar um site com o mapa hídrico da cidade e suas histórias.
"Água não falta, o que falta é a percepção dela", afirma o urbanista José Bueno, que criou a iniciativa Rios e Ruas ao lado do geógrafo Luiz Campos Jr.. Eles organizam expedições pela cidade atrás de nascentes e de córregos escondidos.
Bueno estava interessado em criar experiências vivas de aprendizagem na capital paulista. "Fui apresentado ao Luiz e perguntei: Você diz que São Paulo tem um monte de rios, a gente pode experimentar isso?'. Aí ele disse uma frase que me fisgou: Não existe nenhum lugar da cidade em que você esteja a mais de 200 metros de um curso d'água'. Isso é brutal", recorda o urbanista.
Os dois fizeram a primeira exploração de bicicleta ao redor da casa de Bueno (na Vila Indiana, próxima ao Butantã) e, a cem metros, acharam a nascente do rio Iquiririm.
"Passava ali todo dia. Era um brejo, uma área de despejo de entulho. Voltamos lá, abrimos a nascente e fizemos dois lagos", afirma Bueno.
Para a dupla, os rios devem ser limpos e abertos primeiramente na cabeça das pessoas. "Quando fizeram a retificação do rio Pinheiros, a palavra mais usada nos relatórios da Light era recuperação'. Hoje a gente usa a mesma palavra com o significado de abrir o rio, replantar as margens, fazer um parque linear. É a cultura que está mudando", afirma o geógrafo Campos Jr..
Também interessadas em recuperar a história dos cursos d'água que a cidade sufocou, as jornalistas Stephanie Kim Abe e Iana Chan e a designer Pamela Bassi criaram o projeto Rios (In)visíveis, mapeamento colaborativo dos rios da cidade.
No mapa estão marcados locais onde o grupo garimpou histórias, como as de moradores antigos que têm memórias de quando os rios ainda não estavam soterrados. "A gente vive em uma cidade que tem milhares de quilômetros de rios e córregos enterrados vivos. A ideia é trazer tudo isso à tona", diz Iana Chan.
A maior dificuldade foi encontrar dados -como a relação entre a rede fluvial e a rede de esgoto, ou informações sobre quando os rios foram enterrados. O grupo usou principalmente informações do Plano Diretor de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais no Município de São Paulo, disponibilizadas pela prefeitura.
O mapeamento começou a ser feito em maio deste ano, durante o EcoHack World, um evento realizado ao mesmo tempo em São Paulo, Nova York, São Francisco e Madri para construir bancos de dados relacionados ao tema ambiental. O mapa e as histórias podem ser encontrados em www.riosdesaopaulo.org.
Ilhas de frescor
Os arquitetos Tânia Regina Parma e Newton Massafumi Yamato têm um projeto para abrir a nascente do rio Saracura e revelar seu curso, no Bexiga. A ideia foi selecionada em um concurso promovido pelo IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) de São Paulo em conjunto com a prefeitura, no início de 2014.
O Bexiga foi escolhido por ser um dos pontos críticos da ilha de calor na cidade. Nesses locais, a umidade relativa do ar diminui bruscamente.
"A ideia é destampar o Saracura com a proposição de um parque linear curativo, que transforme o lugar num elemento de reversão desse processo climático", diz Yamato.
A arquiteta Tânia explica que o projeto faz parte de um plano maior, que prevê a criação de microáreas de proteção ambiental espalhadas pelo espigão central da cidade, onde ficam as "avenidas de topo", como a Paulista e a Heitor Penteado. "Esse espigão abriga várias nascentes. Mapeamos algumas. O estudo do Saracura pode ser aplicado em vários outros lugares", diz a arquiteta.
A dupla defende que a Lei de Zoneamento preveja essas microáreas de proteção em torno das nascentes urbanas, já que muitas delas estão dentro de áreas de adensamento previstas pelo Plano Diretor -que permite levantar prédios mais altos a 200 metros de grandes avenidas.
Caçador de nascentes
Há cerca de três meses, o corretor de seguros Adriano Sampaio, 43, revelou-se um indômito "caçador de nascentes". Sobrepondo um mapa da cidade de 1930 com um atual, ele já encontrou dezenas delas: algumas em propriedades privadas, outras em lugares ermos da periferia.
Ele registra suas descobertas em fotos e vídeos no Facebook, na página "Existe Água em SP".
O interesse do corretor pelos rios foi intensificado quando ele participou da revitalização da praça Homero Silva, na Pompeia (zona oeste).
O lugar estava abandonado e tinha um histórico de violência. Há cerca de um ano e meio, o grupo Ocupe e Abrace, formado por moradores do bairro, começou a limpar a praça e descobriu ali duas nascentes do rio Água Preta. "Tiramos o lixo e fizemos um lago", diz Sampaio. O local foi rebatizado de praça da Nascente, que hoje recebe festivais de arte e cultura.
Mesmo enterrado sob as ruas da Pompeia, o rio que nasce na praça inspirou outras iniciativas culturais. O casal de artistas Anahí Santos, 36, e Lincoln Antonio, 44, engajado nas questões ambientais e sociais do bairro, criou o Bloco do Água Preta, que segue o percurso do rio depois do Carnaval. "É uma forma alegre e convidativa de tocar numa questão séria e angustiante", diz Anahí.
Alguns integrantes do bloco formaram mais um grupo, que, com o mesmo espírito performático, faz grafites indicando os córregos soterrados com uma mensagem clara e contundente: "Aqui passa um rio".
No Carnaval deste ano, outro cortejo chamou a atenção para um rio oculto: o Bloco Fluvial do Peixe Seco fluiu pela avenida 9 de Julho, no Bexiga, onde passa o rio Saracura.
A ideia surgiu a partir de intervenções do coletivo Mapa Xilográfico, que já havia trabalhado com a temática dos rios no Jardim Pantanal (na zona leste) e no próprio Bexiga.
O nome do bloco é uma homenagem ao rio Piratininga (atual Tamanduateí), que na língua tupi quer dizer rio do peixe seco. Em 2015, o bloco vai passar pelo vale do Anhangabaú.
Há mais de dez anos, Cesar Pegoraro está envolvido no movimento dos moradores do Butantã (região oeste) pela criação de um parque linear no córrego Água Podre. O projeto está longe de ser concluído, mas pode vir a ser um exemplo pela forma que está envolvendo a comunidade e diversos órgãos públicos.
Em 2006, a Subprefeitura do Butantã apresentou um projeto para criar um parque linear em um trecho do Água Podre. A comunidade protestou e conseguiu incluir toda a extensão do córrego no planejamento.
Mas como fazer um parque linear com o rio cheio de lixo e ratos? A Sabesp foi acionada e incluiu o curso d'água no programa Córrego Limpo.
As obras passariam por uma comunidade que vivia em palafitas sobre o córrego. A Secretaria de Habitação entrou em campo para criar na região um conjunto habitacional. Por fim, o risco de desabamento das margens colocou em ação a Secretaria de Infraestrutura Urbana.
Em 2008, os moradores, junto à Secretaria do Verde, conseguiram impedir a construção de prédios e, em 2011, a área foi desapropriada e fará parte do parque. "Será o primeiro parque linear com intervenções da nascente até a foz e esse monte de secretarias trabalhando ao lado da comunidade", diz Pegoraro, biólogo e especialista em gestão ambiental da Fundação SOS Mata Atlântica.
A luta dos moradores do Morro do Querosene pela criação de um parque na Chácara da Fonte também soma mais de dez anos. Em terreno particular de 39 mil metros quadrados, perto da avenida Corifeu de Azevedo Marques, fica uma fonte com duas bicas, cercada por árvores. É a nascente do rio Pirajussara-Mirim.
Protegendo a fonte, dois arcos feitos de pedras soltas remontam o tempo dos tropeiros. O lugar era um ponto de parada de um antigo caminho indígena ("peabiru").
Em 2011, a área ganhou um Decreto de Utilidade Pública para a criação do parque e, no ano seguinte, a fonte foi tombada pelo Conpresp (conselho municipal de preservação). O processo agora está na fase de desapropriação do terreno.
"Não dá para ficar calado. Esse lugar deveria ser transformado numa área de proteção ambiental", diz o músico e ativista cultural Dinho Nascimento, 63, que mora há mais de 30 anos no bairro. Ele lembra da época em que as pessoas podiam acessar livremente a bica pela rua da Fonte. Hoje, um muro impede a passagem dos moradores, mas a água continua escorrendo ininterruptamente até atingir a boca de lobo.
Aleijados de suas curvas, alguns rios retomam suas várzeas em época de cheia. É o caso do Três Pontes, um afluente do Tietê. No verão de 2009/2010, ele deixou as casas do bairro Jardim Romano, no extremo leste, debaixo d'água.
Na peça "A Cidade dos Rios Invisíveis", da companhia Estopô Balaio, a memória dessa enchente é evocada pelos atores e pelos próprios moradores. O espetáculo começa na estação Brás da CPTM. O público acompanha a trupe dentro do trem até chegar ao Jardim Romano.
"O rio não é mais o mesmo, então eu sou outro homem", diz um personagem do espetáculo. A fala da peça faz coro com o pensamento do geógrafo Campos Jr., do Rios e Ruas.
"A gente quer achar um culpado, o planejador filho da mãe, o prefeito, mas, na verdade, o que aconteceu com os nossos rios foi algo que nós fizemos, nós desejamos. Fazia sentido num dado momento. Agora não faz mais." (COLABOROU LETÍCIA MORI)
FSP, 23-29/11/2014, Revista da Folha, p. 18-27
http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/2014/11/23/1551290-agua-potavel.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/2014/11/23/1551264-aqui-passa-um-rio.shtml
Não potável, recurso de lençol freático que jorra em edifícios pode ser usado para limpeza
MARCOS DÁVILA
Faz dias que não chove. O sol castiga o asfalto no bairro da Liberdade e eis que surge um riacho veloz na sarjeta da rua Dr. Tomaz de Lima (região central). O nível do reservatório Cantareira registra apenas 10% de sua capacidade, contando o volume morto. Então, de onde vem tanta água em plena crise hídrica?
A corredeira chega a fazer barulho, arrastando as folhas secas e bitucas de cigarro à beira do meio-fio. Será algum desavisado limpando a calçada com o esguicho? Ninguém à vista naquele trecho da via.
O mistério é resolvido ao dobrar a esquina na rua Conde de Sarzeda, no alto da ladeira. O aguaçal vem de um cano na calçada em frente ao Tribunal de Justiça de São Paulo, no Edifício 9 de Julho, número 100.
"Com essa água dava para lavar a nossa frota de carros", diz um motorista que trabalha no tribunal. Segundo ele, a água jorra de meia em meia hora. Todos os dias são despejados milhares de litros na sarjeta, que já ganhou uma camada de limo.
Devido à profundidade da fundação do prédio, a água do lençol freático é desviada para um reservatório para não causar alagamento nas garagens dos subsolos. De quando em quando, a bomba é acionada, lançando o excesso de líquido para a rede pluvial na rua.
De acordo com o Tribunal de Justiça, "foram feitas diversas tentativas de reutilização da água, mas o forte cheiro de esgoto inviabiliza o uso".
Esse tipo de situação se repete em centenas de prédios na cidade, porém, não existe um levantamento oficial que contabilize todos os casos de edificações que fazem brotar água do lençol freático por conta da profundidade da fundação.
Dependendo da região da cidade, esses reservatórios superficiais subterrâneos, abastecidos pelas chuvas e vazamentos da rede pública, podem ser atingidos a menos de cinco metros de profundidade.
Armazenamento
Na rua Estevão Barbosa, nos fundos do edifício residencial Spazio di Vivere, na Vila Anglo (região oeste), um cano lança água na rua. Segundo o zelador Miguel Ramos da Costa, 55, a construção atingiu o lençol freático e precisa bombear a água para não inundar o segundo subsolo.
Parte da água drenada é armazenada em um poço em um reservatório de 5.000 litros e é usada para lavar o pátio e regar as plantas.
"Não é água potável, mas fizemos uma análise no Instituto Adolfo Lutz e ela foi considerada satisfatória para esse uso", diz o zelador.
Logo em frente fica um depósito de material reciclável. Indignado com o desperdício, o proprietário Roberto Barriento, 46, criou um sistema de captação com um pedaço de cano e uma mangueira.
São necessários apenas três minutos para encher um tonel de 200 litros, tamanha a pressão. Ele trabalha há 28 anos no mesmo local e aproveita a água para lavar os carros e o pátio.
"Liguei para a Sabesp várias vezes, mandei e-mail, mas ninguém vem", diz Barriento. A empresa não é responsável pelos casos de rebaixamento do lençol freático Ðapenas se a água for direcionada para a rede de esgoto, cuidada pela estatal, é preciso pagar taxa mensal.
As águas subterrâneas são assunto do Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica). Por meio de sua assessoria de comunicação, o Daee afirma que "o processo de lançamento dessa água [dos lençóis freáticos] na sarjeta é uma prática regular, pois, dessa maneira, ela cumpre o seu ciclo hídrico. O não descarte desse recurso pode ser prejudicial à estrutura do imóvel".
Segundo o Daee, para o descarte em via pública, não é necessária nenhuma formalização.
O pedido de outorga ou cadastramento só é necessário quando se faz a utilização da água. Em setembro, o órgão publicou uma portaria que permite o uso de recursos hídricos decorrentes de rebaixamento de lençol freático. Quando a captação atinge uma quantidade igual ou superior a 5.000 litros por dia, está sujeita ao cadastramento e à outorga. Se for inferior, é necessário apenas o cadastramento.
De acordo com a Cetesb (companhia ambiental de SP), a água proveniente do rebaixamento do lençol não pode ser ingerida e deve ser armazenada separadamente da água potável da rede pública.
"Estamos jogando fora uma coisa que agora tem valor, mas antes não se dava bola", afirma Reginaldo Bertolo, diretor do Cepas (Centro de Pesquisa de Águas Subterrâneas), da USP, sobre os recursos do lençol freático. Ele explica que essas águas tendem a ter uma qualidade ruim.
"Toda sorte de atividades que acontecem na superfície geram poluentes que migram solo adentro até alcançar o aquífero freático."
Os vazamentos da rede pública de esgoto, de postos de gasolina e de fossas são apontados como os principais causadores de contaminação. Os resíduos industriais podem gerar uma poluição ainda mais tóxica.
Mesmo sem potabilidade, esse recurso hídrico poderia ser utilizado para lavagem de calçadas, pátios e carros, rega de jardins e até como descarga sanitária. "Prédios que drenam continuamente a água do freático devem investir num reservatório para que a água seja usada para fins não nobres", diz Bertolo.
O professor de engenharia hídrica Ivanildo Hespanhol, diretor do Centro Internacional de Referência em Reuso de Água, cita o exemplo do Sesc Pinheiros, na zona oeste.
Durante a construção, brotou água com alta concentração de ferro em dois pontos da garagem. Depois de tratada, a água pode ser usada nas bacias sanitárias e na limpeza do piso. Mensalmente, são captados e utilizados 600 mil litros.
Águas profundas
Um estudo do Cepas mostra que há hoje uma oferta de 16 mil litros de água por segundo nos aquíferos da região metropolitana. É uma vazão compatível com uma Guarapiranga inteira, que abastece 4,9 milhões de pessoas. Dez mil litros de água por segundo já são utilizados por poços privados, inclusive os clandestinos.
De acordo com o diretor do Cepas, é preciso diferenciar a água encontrada no aquífero superficial Ðque pode aparecer nas garagens dos prédiosÐ daquela dos poços profundos, chamados de artesianos.
Esses poços chegam a ter entre 150 e 200 metros de profundidade e captam uma água de boa qualidade. A vazão é alta e permite atender demandas de hospitais, creches, escolas, indústrias e condomínios.
A maior parte deles, no entanto, é ilegal. O mesmo estudo do Cepas mostra que, dos 12 mil poços 60% são clandestinos. Além disso, existem áreas superexploradas. "Algumas zonas estão secando", alerta.
O diretor do Cepas explica que a quantidade de poços profundos utilizada para o abastecimento público é irrisória. Esse recurso deveria ser considerado nas épocas de seca.
"É uma água privatizada. Talvez chegue o momento em que alguma autoridade pública decrete estado de calamidade ou emergência e esses poços particulares sejam requeridos. A água subterrânea pode desempenhar um papel muito importante para a segurança hídrica da população, principalmente em momentos de escassez", afirma Bertolo.
Aqui passa um rio
Debaixo das principais avenidas de São Paulo, passam rios. Sob a 23 de Maio, corre o Itororó. Na 9 de Julho,flui o Saracura. Na avenida dos Bandeirantes, esconde-seo córrego da Traição. E, na avenida Pacaembu, claro,o Pacaembu.
Na capital paulista, existem mais de 300 cursos de água encobertos. Pouco a pouco, alguns moradores da cidade depositam um olhar mais atento para esses leitos ocultos. Grupos de ativistas, artistas, geógrafos e arquitetos têm colocado os rios na mira de suas atividades. Vale escrever uma frase no asfalto com o dizer "aqui passa um rio", criar um bloco de Carnaval que percorra o curso de um córrego, encenar uma peça de teatro a partir das memórias de uma enchente ou inventar um site com o mapa hídrico da cidade e suas histórias.
"Água não falta, o que falta é a percepção dela", afirma o urbanista José Bueno, que criou a iniciativa Rios e Ruas ao lado do geógrafo Luiz Campos Jr.. Eles organizam expedições pela cidade atrás de nascentes e de córregos escondidos.
Bueno estava interessado em criar experiências vivas de aprendizagem na capital paulista. "Fui apresentado ao Luiz e perguntei: Você diz que São Paulo tem um monte de rios, a gente pode experimentar isso?'. Aí ele disse uma frase que me fisgou: Não existe nenhum lugar da cidade em que você esteja a mais de 200 metros de um curso d'água'. Isso é brutal", recorda o urbanista.
Os dois fizeram a primeira exploração de bicicleta ao redor da casa de Bueno (na Vila Indiana, próxima ao Butantã) e, a cem metros, acharam a nascente do rio Iquiririm.
"Passava ali todo dia. Era um brejo, uma área de despejo de entulho. Voltamos lá, abrimos a nascente e fizemos dois lagos", afirma Bueno.
Para a dupla, os rios devem ser limpos e abertos primeiramente na cabeça das pessoas. "Quando fizeram a retificação do rio Pinheiros, a palavra mais usada nos relatórios da Light era recuperação'. Hoje a gente usa a mesma palavra com o significado de abrir o rio, replantar as margens, fazer um parque linear. É a cultura que está mudando", afirma o geógrafo Campos Jr..
Também interessadas em recuperar a história dos cursos d'água que a cidade sufocou, as jornalistas Stephanie Kim Abe e Iana Chan e a designer Pamela Bassi criaram o projeto Rios (In)visíveis, mapeamento colaborativo dos rios da cidade.
No mapa estão marcados locais onde o grupo garimpou histórias, como as de moradores antigos que têm memórias de quando os rios ainda não estavam soterrados. "A gente vive em uma cidade que tem milhares de quilômetros de rios e córregos enterrados vivos. A ideia é trazer tudo isso à tona", diz Iana Chan.
A maior dificuldade foi encontrar dados -como a relação entre a rede fluvial e a rede de esgoto, ou informações sobre quando os rios foram enterrados. O grupo usou principalmente informações do Plano Diretor de Drenagem e Manejo de Águas Pluviais no Município de São Paulo, disponibilizadas pela prefeitura.
O mapeamento começou a ser feito em maio deste ano, durante o EcoHack World, um evento realizado ao mesmo tempo em São Paulo, Nova York, São Francisco e Madri para construir bancos de dados relacionados ao tema ambiental. O mapa e as histórias podem ser encontrados em www.riosdesaopaulo.org.
Ilhas de frescor
Os arquitetos Tânia Regina Parma e Newton Massafumi Yamato têm um projeto para abrir a nascente do rio Saracura e revelar seu curso, no Bexiga. A ideia foi selecionada em um concurso promovido pelo IAB (Instituto dos Arquitetos do Brasil) de São Paulo em conjunto com a prefeitura, no início de 2014.
O Bexiga foi escolhido por ser um dos pontos críticos da ilha de calor na cidade. Nesses locais, a umidade relativa do ar diminui bruscamente.
"A ideia é destampar o Saracura com a proposição de um parque linear curativo, que transforme o lugar num elemento de reversão desse processo climático", diz Yamato.
A arquiteta Tânia explica que o projeto faz parte de um plano maior, que prevê a criação de microáreas de proteção ambiental espalhadas pelo espigão central da cidade, onde ficam as "avenidas de topo", como a Paulista e a Heitor Penteado. "Esse espigão abriga várias nascentes. Mapeamos algumas. O estudo do Saracura pode ser aplicado em vários outros lugares", diz a arquiteta.
A dupla defende que a Lei de Zoneamento preveja essas microáreas de proteção em torno das nascentes urbanas, já que muitas delas estão dentro de áreas de adensamento previstas pelo Plano Diretor -que permite levantar prédios mais altos a 200 metros de grandes avenidas.
Caçador de nascentes
Há cerca de três meses, o corretor de seguros Adriano Sampaio, 43, revelou-se um indômito "caçador de nascentes". Sobrepondo um mapa da cidade de 1930 com um atual, ele já encontrou dezenas delas: algumas em propriedades privadas, outras em lugares ermos da periferia.
Ele registra suas descobertas em fotos e vídeos no Facebook, na página "Existe Água em SP".
O interesse do corretor pelos rios foi intensificado quando ele participou da revitalização da praça Homero Silva, na Pompeia (zona oeste).
O lugar estava abandonado e tinha um histórico de violência. Há cerca de um ano e meio, o grupo Ocupe e Abrace, formado por moradores do bairro, começou a limpar a praça e descobriu ali duas nascentes do rio Água Preta. "Tiramos o lixo e fizemos um lago", diz Sampaio. O local foi rebatizado de praça da Nascente, que hoje recebe festivais de arte e cultura.
Mesmo enterrado sob as ruas da Pompeia, o rio que nasce na praça inspirou outras iniciativas culturais. O casal de artistas Anahí Santos, 36, e Lincoln Antonio, 44, engajado nas questões ambientais e sociais do bairro, criou o Bloco do Água Preta, que segue o percurso do rio depois do Carnaval. "É uma forma alegre e convidativa de tocar numa questão séria e angustiante", diz Anahí.
Alguns integrantes do bloco formaram mais um grupo, que, com o mesmo espírito performático, faz grafites indicando os córregos soterrados com uma mensagem clara e contundente: "Aqui passa um rio".
No Carnaval deste ano, outro cortejo chamou a atenção para um rio oculto: o Bloco Fluvial do Peixe Seco fluiu pela avenida 9 de Julho, no Bexiga, onde passa o rio Saracura.
A ideia surgiu a partir de intervenções do coletivo Mapa Xilográfico, que já havia trabalhado com a temática dos rios no Jardim Pantanal (na zona leste) e no próprio Bexiga.
O nome do bloco é uma homenagem ao rio Piratininga (atual Tamanduateí), que na língua tupi quer dizer rio do peixe seco. Em 2015, o bloco vai passar pelo vale do Anhangabaú.
Há mais de dez anos, Cesar Pegoraro está envolvido no movimento dos moradores do Butantã (região oeste) pela criação de um parque linear no córrego Água Podre. O projeto está longe de ser concluído, mas pode vir a ser um exemplo pela forma que está envolvendo a comunidade e diversos órgãos públicos.
Em 2006, a Subprefeitura do Butantã apresentou um projeto para criar um parque linear em um trecho do Água Podre. A comunidade protestou e conseguiu incluir toda a extensão do córrego no planejamento.
Mas como fazer um parque linear com o rio cheio de lixo e ratos? A Sabesp foi acionada e incluiu o curso d'água no programa Córrego Limpo.
As obras passariam por uma comunidade que vivia em palafitas sobre o córrego. A Secretaria de Habitação entrou em campo para criar na região um conjunto habitacional. Por fim, o risco de desabamento das margens colocou em ação a Secretaria de Infraestrutura Urbana.
Em 2008, os moradores, junto à Secretaria do Verde, conseguiram impedir a construção de prédios e, em 2011, a área foi desapropriada e fará parte do parque. "Será o primeiro parque linear com intervenções da nascente até a foz e esse monte de secretarias trabalhando ao lado da comunidade", diz Pegoraro, biólogo e especialista em gestão ambiental da Fundação SOS Mata Atlântica.
A luta dos moradores do Morro do Querosene pela criação de um parque na Chácara da Fonte também soma mais de dez anos. Em terreno particular de 39 mil metros quadrados, perto da avenida Corifeu de Azevedo Marques, fica uma fonte com duas bicas, cercada por árvores. É a nascente do rio Pirajussara-Mirim.
Protegendo a fonte, dois arcos feitos de pedras soltas remontam o tempo dos tropeiros. O lugar era um ponto de parada de um antigo caminho indígena ("peabiru").
Em 2011, a área ganhou um Decreto de Utilidade Pública para a criação do parque e, no ano seguinte, a fonte foi tombada pelo Conpresp (conselho municipal de preservação). O processo agora está na fase de desapropriação do terreno.
"Não dá para ficar calado. Esse lugar deveria ser transformado numa área de proteção ambiental", diz o músico e ativista cultural Dinho Nascimento, 63, que mora há mais de 30 anos no bairro. Ele lembra da época em que as pessoas podiam acessar livremente a bica pela rua da Fonte. Hoje, um muro impede a passagem dos moradores, mas a água continua escorrendo ininterruptamente até atingir a boca de lobo.
Aleijados de suas curvas, alguns rios retomam suas várzeas em época de cheia. É o caso do Três Pontes, um afluente do Tietê. No verão de 2009/2010, ele deixou as casas do bairro Jardim Romano, no extremo leste, debaixo d'água.
Na peça "A Cidade dos Rios Invisíveis", da companhia Estopô Balaio, a memória dessa enchente é evocada pelos atores e pelos próprios moradores. O espetáculo começa na estação Brás da CPTM. O público acompanha a trupe dentro do trem até chegar ao Jardim Romano.
"O rio não é mais o mesmo, então eu sou outro homem", diz um personagem do espetáculo. A fala da peça faz coro com o pensamento do geógrafo Campos Jr., do Rios e Ruas.
"A gente quer achar um culpado, o planejador filho da mãe, o prefeito, mas, na verdade, o que aconteceu com os nossos rios foi algo que nós fizemos, nós desejamos. Fazia sentido num dado momento. Agora não faz mais." (COLABOROU LETÍCIA MORI)
FSP, 23-29/11/2014, Revista da Folha, p. 18-27
http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/2014/11/23/1551290-agua-potavel.shtml
http://www1.folha.uol.com.br/revista/saopaulo/2014/11/23/1551264-aqui-passa-um-rio.shtml
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