De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003

Karitiana

Autodenominação
Yjxa
Onde estão Quantos são
RO 333 (Siasi/Sesai, 2014)
Família linguística
Arikén
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Os Karitiana constituem um dos muitos grupos do estado de Rondônia ainda pouco estudados pela Antropologia. Tradicionalmente localizados nos vales dos rios Candeias, Jamari e Jaci-Paraná, grandes afluentes da margem direita do rio Madeira, nos últimos anos suas principais batalhas em favor de sua reprodução física e sociocultural têm sido a revisão dos limites da Terra Indígena Karitiana e o investimento na educação escolar, como forma de conservar várias de suas práticas socioculturais e reforçar o ensino de sua língua, a única remanescente da família linguística Arikém. O crescimento sustentado da população e a complexificação de disputas políticas locais têm conduzido à multiplicação das aldeias, que passaram de duas em 2005 para sete em 2021. Além disso, a recuperação e valorização de muitas de suas práticas culturais, incluindo as histórias, a pintura corporal, os cantos, o artesanato e formas tradicionais de ensino e aprendizado, têm fortalecido a presença dos Karitiana como um povo singular na rica paisagem etnolinguística do sudoeste da Amazônia brasileira.

Denominação e população

Rapaz karitiana trançando uma peça de cestaria a ser comercializada. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Rapaz karitiana trançando uma peça de cestaria a ser comercializada. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

Não se conhece a origem ou a etimologia da palavra Karitiana, que os próprios índios afirmam ter-lhes sido atribuída por seringueiros que penetraram seu território no final do século XIX e início do século XX. Alguns indivíduos mencionam que o nome Karitiana traduz-se por “cara preta”, mas não podem explicar a razão desta tradução nem de onde possa ter surgido. Mais recentemente surgiu uma explicação que remete aos primeiros contatos e a um mal-entendido linguístico, tendo o etnônimo derivado da expressão ytakatari yn, “estou indo, vou embora”, proferida pelos indígenas e transcrita como Karitiana pelos não índios. Os Karitiana denominam-se simplesmente Yjxa pronome da primeira pessoa do plural inclusivo – “nós”, também traduzido como “gente” –, em oposição aos opok, os “não índios” em geral, e aos opok pita, os “outros índios”, também chamados de “os outros mesmo” ou “os verdadeiramente outros”.

A população Karitiana atual (2021) é de cerca de 450 pessoas, segundo a Associação do Povo Indígena Karitiana (Apok Pytim Adnipa), distribuídas por sete aldeias. Cerca de 230 pessoas vivem nas cinco aldeias situadas no interior da Terra Indígena Karitiana: Kyõwã, a maior e mais antiga aldeia, com 153 moradores, Bom Samaritano (17 moradores), Caracol (29), Pyrojigngã ou Beijarana (22) e São Francisco (11 moradores). Outras 68 pessoas habitam as duas aldeias localizadas fora dos limites demarcados: Byjyty Osop Aky, ou aldeia do Rio Candeias, com 37 habitantes, e aldeia Juari, ou Igarapé Preto (E’se emo, na língua indígena) com 31 moradores. Em Porto Velho vivem 27 famílias, além de 15 estudantes do ensino superior. Alguns indivíduos Karitiana também vivem na cidade de Cacoal, em Rondônia.

A severa depressão demográfica do passado (saiba mais em #Esboço de história dos karitiana )foi revertida com sucesso e, nos últimos cinquenta anos a população Karitiana cresceu de forma espetacular. Os dados censitários coletados desde 1970 comprovam este aumento expressivo:

População Ano Fonte
64  1970 Monteiro 1984
65 1973 D.Landin & R.Landin 1973
78 1976 D.Landin 1988
109 1983 Leonel & Junqueira 1983
168 1994 Lúcio 1996
185 1997 Storto 1997
220 1999 ISA 2000
270 2003 Vander Velden 2004
320 2005 Nelson Karitiana (com. pessoal)
339 2011 Censo GT FUNAI
415 2013 Sarde Neto
450 2021 APIK (com. pessoal)

Ou seja, no último meio século a população Karitiana aumentou em 600%! Uma rápida visita às aldeias surpreende pelo elevado número de bebês e crianças. Os Karitiana observam com alegria e contentamento a superação das antigas perspectivas de extermínio, apontando para um posicionamento ativo do grupo que, mesmo conhecendo técnicas anti-concepcionais, as teriam abolido (por um certo período) como forma de fazer crescer novamente sua população de modo a oportunizar a luta pela retomada de áreas de suas terras tradicionalmente ocupadas que foram arbitrariamente excluídas da demarcação da Terra Indígena Karitiana nos anos de 1980, como se verá na sequência.


Esboço de história dos karitiana

Antecedentes

A fotografia mais antiga de que se tem notícia de um Karitiana. Foto: membro da Expedição de Carlos Chagas à Amazônia, 1912.
A fotografia mais antiga de que se tem notícia de um Karitiana. Foto: membro da Expedição de Carlos Chagas à Amazônia, 1912.

Muito pouco se sabe da história dos Karitiana antes do despontar do século XX. A presença de falantes do Tupi-Arikém ao sul do território tradicionalmente ocupado pelos Karitiana – altos e médios vales dos rios Candeias, Jamari e Jaci-Paraná – pode ser, de fato, muito antiga, como sugere a hipótese de uma “tradição cerâmica Protoarikém”, na região do médio e alto rio Jamari, datada de cerca de 5.000 anos atrás, e que teria sido resultado do primeiro deslocamento – para o oeste – dos povos Proto-Tupi originados, crê-se, no vale do Ji-Paraná (sabe-se, outrossim, da sugestão de que Rondônia seja a zona de origem e expansão dos povos falantes das línguas do tronco Tupí). Relatos orais coletados entre os Karitiana mais velhos hoje (todos nascidos por volta de 1930-1940), aliados aos conhecimentos do grupo a respeito dos povos indígenas seus inimigos (opok pita) que vivem nas regiões adjacentes a seu território (como os Karipuna, os Tenharim e os Uru-eu-wau-wau), parecem sugerir um movimento Karitiana de sudeste para noroeste a partir da penetração, nos vales dos rios Machado e alto Jamari, de grupos de língua Tupi-Kagwahiva, com quem guerreavam, em deslocamento para o sul por volta de meados do século XIX.

Dados coletados junto aos índios mais velhos autorizam a supor que, na verdade, até a primeira metade do século XX não estamos falando ainda, propriamente, dos Karitiana como um único grupo, tal como se reconhecem hoje; muito provavelmente tratava-se de um conjunto de aldeias ou grupos locais dispersos pelas florestas que cobriam os vales banhados pelos cursos médios dos rios Jaci-Paraná, Candeias, Jamari e seus afluentes. O reconhecimento, ainda hoje vigente, de uma distinção entre aqueles que se reconhecem como Karitiana(originários ou descendentes dos indivíduos originários da margem direita do rio Candeias), e aqueles que se identificam como Juari ou Joari (descendentes daqueles nascidos na margem esquerda do mesmo rio antes da migração forçada para esta zona e da reunião de todos na aldeia Kyõwã, mas que atualmente ocupam a aldeia do Igarapé Preto, também chamada de aldeia Juari) parece sustentar a hipótese de que havia vários grupos locais Karitiana – pois a unidade do grupo, dada pela língua, nunca é posta em questão, nem no passado, nem atualmente – movimentando-se entre o Jaci-Paraná e o Jamari.

Há indícios, entretanto, de que os Karitiana podem ter se estabelecido na área em tela – gravitando em torno dos formadores de ambos os lados do rio Candeias – na segunda metade do século XIX, a partir de movimentos iniciados mais ao sul, já pressionados pela penetração dos não índios (sobretudo caucheiros de origem boliviana e peruana que cruzavam a fronteira no rio Guaporé) deslocando-se do sul para o norte/noroeste, e pela presença massiva de seus inimigos mais temidos, os Tupi-Kagwahiva. Com efeito, relatos orais falam dos Karitiana chocando-se com o povo que identificam como Uru-eu-wau-wau (os Piisomorã) – seguramente um grupo Kagwahiva ancestral dos atuais Uru-eu-wau-wau, cujo território está, hoje, muito ao sul dos Karitiana, nas serras onde nascem o rio Jamari e seus formadores – na região da atual cidade de Ariquemes, no médio-alto rio Jamari, também região das nascentes do rio Preto do Candeias, um afluente da margem direita do rio Candeias.

Os Karitiana mencionam que, “tempo antigamente” (pyryadn kerep yjki, a forma de marcar verbalmente, na língua portuguesa, o tempo anterior à experiência vivida ou recontada por aqueles com quem se conviveu e que vivenciaram certos episódios), ocupavam a região onde hoje está a cidade de Ariquemes, a sudeste de sua atual localização; Taty, avô do atual pajé Cizino Karitiana, vivia naquela região, a aproximadamente 150 km, em linha reta, da Terra Indígena Karitiana atual, e diz-se que ali havia 14 aldeias. A julgar pela idade atual de Cizino (81 anos), devemos situar este tempo no final do século XIX, por volta de 1870. Nesta época, segundo Epitácio Karitiana: “Não tinha branco ainda. Não tem machado [de metal], só pedra, flecha. Isso foi há muito tempo”. O avô de Cizino (João Capitão ou Taty – que teria sido fotografado em 1912 pela Expedição de Carlos Chagas à Amazônia) vivia no rio Jamari e, dizem, “guerreava lá”. Seu pai, ou seja, o pai do pai do pai do atual pajé (Kyoroja, ou Orowejo, o mesmo nome de Moraes, seu neto; neste tempo os Karitiana ainda não tinham nomes em português) também vivia na região de Ariquemes, onde, segundo relatos, os índios teriam encontrado os primeiros homens brancos, e teriam início as infindáveis agressões que o povo Karitiana sofreu pelas mãos dos invasores não indígenas.

Parece ter havido, portanto, um paulatino deslocamento dos Karitiana (ou grupos falantes do Tupi-Arikém) do sul/sudeste em direção ao norte, aos vales dos rios Candeias, Jamari e Jaci-Paraná, onde são registrados historicamente. É possível que, neste movimento, tenham ocupado os territórios de grupos conhecidos como Pama e Arara, registrados na margem direita do alto Madeira ao longo do século XVIII, e mesmo a zona habitada pelos Karipuna de língua Pano (que não são os atuais Karipuna do Jaci-Paraná, de língua Tupi) que se espalhavam pela alto Madeira e pela região da confluência dos rios Mamoré, Beni e Abunã, e que desapareceram das fontes no segundo decênio do século XX. A saída dessas Karipuna Pano – cujas últimas aldeias são documentadas pro Rondon na foz do rio Jaci-Paraná nos anos de 1910 – pode ter deixado espaço aberto para a posterior penetração Arikém na região.

É plausível supor que os Karitiana estavam a sudeste de seu atual território, localizados no médio rio Jamari e no alto rio Preto do Candeias, e isso provavelmente já na segunda metade do século XIX. Com efeito, se Nimuendajú, em seu Mapa Etno-histórico, localiza-os no rio Jaci-Paraná em 1909 (a partir da referência do Tenente Costa Pinheiro), o etnólogo Carlos Frederico Lúcio, a partir dos dados coletados anteriormente por Rachel Landin e por ele mesmo, situa os “povos da família Arikém” numa ampla região que vai do Jaci-Paraná (a oeste) quase até o rio Ji-Paraná (ou Machado, a leste), e do rio Madeira (ao norte, mas não nas margens do grande rio) até as cabeceiras do Jaci-Paraná, do Candeias e do Jamari (ao sul). Neste sentido, talvez seja plausível especular, alternativamente, que toda esta área tenha sido ocupada pelos Tupi-Arikém, com seu território, paulatinamente reduzido a partir da segunda metade do século XIX, chegando ao século XX restritos apenas ao vale do rio Candeias e seus afluentes. Nesta região, em que provavelmente perambulavam vários grupos de língua Tupi-Arikém, a presença dos Tupi-Kagwahiva e, posteriormente, dos brancos, alterou a paisagem étnica a partir de meados dos oitocentos, com a chegada dos não indígenas nesta zona da fronteira luso-espanhola ainda largamente inexplorada e pouco conhecida.

Histórico do contato

A partir de 1878-1880, caucheiros bolivianos iniciam a penetração dos vales dos rios Mutum-Paraná, Jaci-Paraná, Candeias e Jamari, vindos do oeste. Os primeiros vinte anos do século XX também viram intensa movimentação de pessoas recém-chegadas no alto Madeira, provocada pela penetração da Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (a Comissão Rondon) e pela desastrosa construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Rondon, ao chegar ao alto rio Madeira em 1909 faz referência aos exploradores de látex bolivianos que haviam “invadido as florestas” dos índios Ariqueme, empurrando-os para as cabeceiras do Jamari. Seringueiros de origem nordestina – fugitivos das secas que varreram o sertão do Nordeste em 1877-78 – começam a ocupar o vale do Madeira também no final do século XIX.

Rondon contata os Ariqueme – cuja língua, hoje considerada extinta, é classificada junto do Karitiana na família Tupi-Arikém – nas primeiras décadas do século XX, já trabalhando nos seringais instalados por imigrantes nordestinos no médio e baixo Jamari. Pelo que consta, estes teriam informado a Rondon sobre a existência de “um grupo denominado caritiana” realizando ataques (“razzias”) no alto Candeias (segundo Mauro Leonel). Embora alguns autores afirmem que os Karitiana estabeleceram seus primeiros contatos com não índios ainda no final do século XVIII, inexistem fontes comprobatórias, e é somente nos primeiros anos do século XX que aparece a primeira referência explícita aos Karitiana na literatura, em 1907, pelo Marechal Rondon que, ao chegar à localidade de Repartimento, no rio Jamari, relata que “ahi tivemos noticias dos índios Caritianas, que freqüentam as margens dos rios Candeias e Massangana [um afluente do rio Jamari].

Logo em seguida, em 1909, encontramos a segunda referência, feita pelo capitão Manoel Teophilo da Costa Pinheiro, um dos membros da Comissão Rondon, em expedição pelo rio Jaci-Paraná; o contato desta expedição com os “Caritianas” foi um ataque aos ocupantes das suas três canoas, que resultou na morte de um remador e em ferimentos em outros exploradores. Anos depois, Rondon (em 1910) observou que, naquela época, “os Caritiana est[avam] em convivio com os seringueiros do Jacy-Paraná, para os quaes trabalham na extracção da borracha”; a violência praticada contra os índios teria sido a causa do ataque, pois os Karitiana confundiram um dos membros da Comissão, o Dr. Paulo dos Santos, com o seringueiro Minervino, seu “antigo patrão”, de quem queriam vingança pelos maus tratos. Rondon afirmou, ainda, que os Karitiana eram, àquela altura, “ex-habitantes do rio Branco, affluente do Jacy-Paraná”. Em 1912 a expedição de carlos chagas pela amazônia fotografa – primeira imagem disponível deste grupo indígena – um “índio caratiana” de 16 anos no “rio jamary”; a foto serviu para ilustrar a modificação craniana antigamente praticada pelos karitiana (veja mais em #Organização social e cosmologia), mas também revela o trabalho indígena nos seringais da região. Todos esses dados coligidos a partir de 1907 são anotados por Curt Nimuendajú no Mapa Etno-histórico. Todavia, os Karitiana permaneceram arredios ao contato sistemático até por volta dos anos de 1950, e a presença dos brancos tornou-se permanente apenas a partir de meados desta década, com a intervenção do SPI e de missionários salesianos.

O grupo parece ter apresentado notável mobilidade ao longo da primeira metade do século XX, possivelmente pressionado pelas frentes de penetração da sociedade envolvente. Rachel Landin sugeriu a existência, neste época, de dois bandos separados, de umas 50 pessoas cada um, movimentando-se pela região entre o Jamari, o Candeias e o Jaci-Paraná; talvez mais grupos perambulassem por entre várias aldeias na região, pois diz-se que “tempo antigamente, os Karitiana se dividiram muitas vezes”. Os próprios Karitiana reconhecem sua dispersão no passado, atribuindo-a a uma onça pintada enorme, criada por um índio chamado Gyro, e que cresceu e matou muita gente, que fugiu para distintas localidades: “Por isso Karitiana espalharou para todo lado, e se perdeu. Juari foi o único que encontrou, era o mesmo que Karitiana, fugidos. Mas muitos parentes não encontraram mais. Depois Py’ep, caçador, guerreiro, homem que mata muita caça, matou a onça, mas Karitiana já estava espalhado, não encontra mais” (conforme o finado Antônio Paulo).

Se a referência do capitão Manoel da Costa Pinheiro indica a presença dos Karitiana no Jaci-Paraná em 1909, um mapa esboçado por J.Barboza em 1927 localiza o grupo espalhado pela margem esquerda do médio e baixo Candeias, entre este rio e o Jaci-Paraná; a área compreendida entre os rios Candeias e Jamari, importantes afluentes da margem direita do rio Madeira, é declarada território dos Arikém (Ariquême). Nesta mesma área, em 1948 os registros da 9a. Inspetoria Regional do SPI situam os Karitiana ligeiramente mais para o leste. Entre 1950 e 1953 eles são localizados no médio rio Candeias, no que parecia ser uma nova movimentação rumo ao ocidente; provavelmente nas proximidades deste local o grupo recebeu a visita de três padres salesianos em 1958. Ainda mais ao poente, em 1967-69 o Posto Indígena Karitiana foi instalado, no alto rio das Garças. Aparentemente, alguns anos depois o grupo dirigiu-se um pouco mais para o oeste, vindo a ocupar o sítio atual, às margens do igarapé Sapoti.

De acordo com suas narrativas históricas, os Karitiana experimentaram um brutal declínio demográfico após o contato com os brancos (veja mais em #Denominação e população); Darcy Ribeiro considerou-os extintos em 1957. Tal situação levou o grupo a medidas extremas para evitar sua completa extinção. Primeiro, um antigo líder, Antônio Morais, teria desposado várias mulheres Karitiana (7 ou 10, de acordo com diferentes versões), inclusive algumas em princípio interditas pelas regras matrimoniais. Este evento acabou por gerar uma população densamente relacionada do ponto de vista genealógico e também genético: um estudo da Universidade Federal do Pará, de 1991, demonstrou que o coeficiente de consanguinidade médio – que mede o grau de parentesco genético de uma população – dos Karitiana é de 0,142 (entre primos de primeiro grau este valor é de 0,125). Todos os Karitiana menores de 16 anos, ainda segundo a pesquisa, descendem do chefe Morais, muitas vezes por diferentes vias genealógicas.

O grupo liderado pelo chefe Morais mantinha-se no médio Candeias, próximo à cachoeira Nova Vida, trabalhando para um seringueiro em troca de bens industrializados. Em algum momento, possivelmente por volta dos anos 1930 ou 1940, este grupo deixou a região, repudiando o contato com os brancos. Dirigiram-se para o oeste, encontrando um outro grupo – chamado Capivari ou Joari/Juari, segundo versões diversas – dos quais provavelmente se separaram nos momentos iniciais do contato, no começo do século XX. Os Karitiana, ao narrarem o episódio do encontro, sublinham a possibilidade de comunicação, uma vez que os dois grupos falariam a mesma língua. Consta que os Juari, como se autodesignam hoje em dia, estavam no limiar da extinção, sendo o grupo composto por um reduzido número de homens (e mulheres velhas e/ou grandes cachorras); outros relatos falam em um grupo de caçadores Karitiana teria topado com os Juari. Os dois grupos se encontraram no rio das Garças, próximo da atual aldeia Kyõwã (Central), realizaram inter-casamentos, separaram-se novamente e, por fim, completaram sua fusão, passando a habitar a terra que é considerada, ainda hoje, território dos Juari, na margem esquerda do rio Candeias, ao passo que o território tradicionalmente ocupado pelos Karitiana é considerado a margem direita do mesmo rio, que permanece como um articulador espaço-temporal importante na história, cultura e política dos Karitiana.

Os anos de 1940 inauguram o período dos assim chamados “soldados da borracha”, em que o renovado interesse pelo látex brasileiro provoca uma nova onda de ocupação dos seringais nos afluentes da margem sul do alto rio Madeira, assim como de toda a região amazônica. Destarte, os Karitiana voltam a figurar nos registros históricos, o que os documentos atribuem à retomada dos contatos com os brancos; neste período de silêncio das fontes, entre 1912 e 1946, os Karitiana propriamente ditos estariam evitando o contato, embora seus relatos indiquem o contato ininterrupto com os seringueiros (seringalistas) que ocupavam os formadores do Candeias. Significativamente, as memórias dos Karitiana sobre o encontro com os brancos parecem divididas em dois momentos: as que referem aos “primeiros contatos”, e aquelas em que o contato parece ser retomado após um período de interrupção. O processo de introdução de alguns bens estrangeiros, como o sal, parecem confirmar esta periodicidade. Luís Lopes, um seringueiro, é considerado pelos Karitiana como o primeiro branco a estabelecer relações com eles: consta que Lopes veio remando uma canoa com mais seis homens, e nesta visita permaneceu entre eles por quatro dias. Antônio Paulo complementa a narrativa, dando claras indicações não só de que o encontro com Lopes aconteceu quando já estavam no rio das Garças – a referência a sua idade na época permite situar grosseiramente o evento lá pelos meados dos anos 60 –, mas que foi, antes, um reencontro com os brancos:


“Eu era pequeno no tempo do contato com brancos, com Lopes, como Valmir, filho do Delgado [cerca de 10 anos de idade]. Estava com meu pai no roçado, na colocação deles [indica o sudeste da aldeia atual]. João Piohin, pai da Joaquina, estava aqui, foi pescar e encontrou branco. O padre, lá do outro lado do Candeias, [ou] garimpeiro, botou nome dele de Antônio Sapateiro. Primeiro branco que chegou aqui deu remédio, saco de remédio, de presente. Todo mundo falava: ‘o branco encontrou a gente de novo’. O nome do branco era Luis Lopes. Diz que o pessoal ficou com medo. Um mês depois Lopes voltou, com mulher, Japão, filho dele, Seu Messias e José. Eles ficaram no barracão de palha que Karitiana construiu. Ele pediu para índio cortar palha para fazer parede do barracão para ele morar. Deu facão para os índios pegarem olho de palha no mato, fez casa. Aí Lopes foi buscar mulher; e diz que ia trazer cartucho, chumbo, espoleta e pólvora para o pessoal matar caça. Foi e voltou de novo com a mulher; veio num barco grande, trouxe cama, tudo. Voltou depois de duas semanas. Ele levou muito Karitiana para a cidade; levou eles lá na rodagem de trem [estrada de ferro Madeira-Mamoré?], levou Valdemar, Garcia, Pereira, finado Mané Vieira, finado João Piohin. Embarcou no trem para ir em Porto Velho, e chegou”.


Em entrevista a Liliam Moser, o padre italiano Ângelo Spadari afirmou que o seringalista Gumercindo comprava o caucho produzido pelo grupo, e teria avisado aos padres salesianos, ainda em 1957, que os Karitiana pediam um sacerdote que os batizassem, “pois queriam a salvação”. Naquele mesmo ano os padres Ângelo Spadari e Chiquinho passaram quinze dias entre os Karitiana – que dominavam “a extensa região do Alto Candeias” –, próximos do local chamado Limoeiro. A solicitação pela assistência dos religiosos só foi realmente atendida em janeiro de 1958, quando o padre Ângelo, acompanhado pelo padre Francisco Pucci e o irmão leigo Adhail Póvoas visitaram uma maloca Karitiana – a três horas de viagem a pé pela floresta a oeste do Candeias – onde batizaram 24 índios, “alguns vindos de uma maloca distante”, posto que “os Caritiana, semi-civilizados, ocupam quase tôda a extensão do Rio Candeias e seus afluentes”, conforme relataram ao historiador Vitor Hugo. A narrativa desta viagem – acrescido de algumas fotografias – é o primeiro testemunho direto da cultura Karitiana: por isso, embora curta, ela tem um valor incalculável (um extrato foi publicado pelo mesmo Vitor Hugo em 1959 e em 1961). Em julho do mesmo ano outros missionários estiveram na mesma aldeia.

Ângelo Spadari afirmou que os Karitiana estavam, no passado, no rio das Garças; em seguida, migraram para o vale do Candeias, onde haveria três aldeias (“malocas”), embora “os velhos ficaram no rio das Garças” (seriam os Juari?); tempos depois, retornaram ao rio das Garças; neste retorno teriam (re)encontrado os Juari. Spadari igualmente sugeriu que, em uma entrevista com Antônio Moraes, soube que o grupo dividiu-se porque o grande chefe desentendeu-se com seu irmão, pois aquele desejava maior aproximação com os brancos; depois disso, seu grupo deixou a Serra do Tracoá, instalando-se nas proximidades de Limoeiro, no rio Candeias; Moraes destacou, ainda, a atitude de beligerância e de recusa do contato com os brancos da parte de seu irmão. A informação de que havia três malocas pode, talvez, ser interpretada como confirmação da ocupação, pelos Karitiana, de um extenso território: um mapa de autoria do Padre A. Cerri (reproduzido por Vitor Hugo 1959), possivelmente contemporâneo das viagens dos salesianos em 1958, situa os “Caritianas” entre o rio Santa Cruz, afluente do Candeias, e o rio Jamari, bem próximos da estação telegráfica de Caritianas, fundada pela Comissão Rondon próximo da confluência deste último rio com o rio Preto em 1909.

Na região do encontro entre os dois grupos, os Karitiana retomaram o contato permanente com os brancos, no final da década de 50. Suas tradições históricas sublinham a vital importância do encontro entre os dois grupos: com as populações de ambos os grupos muito reduzidas, os casais formados após a união mostraram-se fundamentais para a posterior recuperação demográfica e cultural do povo. Desconhece-se a razão pela qual o grupo formado a partir da reunião de Karitiana e Juari preservou a denominação dos primeiros, mas é provável, a crer nas memórias atuais, que Antônio Morais tenha se tornado um doador pródigo de mulheres – pois os Karitiana contam que Morais buscara entre os Juari homens que desposassem suas muitas filhas – e seu prestígio tenha crescido enormemente em função dos muitos genros que trouxe para sua órbita; ao mesmo tempo, Morais já era um líder conhecido na região à época dos primeiros contatos permanentes com os brancos, peça-chave na mediação entre estes e os Karitiana: em 1957 foi levado a Porto Velho com seu filho José Pereira, e os dois teriam sido os primeiros Karitiana batizados, conforme o registro existente na Catedral da capital rondoniense, como conta o historiador Vitor Hugo em Desbravadores, obra magna da história rondoniense.

Durante a década de 1960, segundo depoimentos colhidos por Edilson de Medeiros, os Karitiana viviam no médio Candeias (arredores da cachoeira de São Sebastião), no alto rio das Garças e no igarapé João Ramos; ali mantinham relações pacíficas com os brancos, trocando borracha, caucho, óleo de copaíba e peles de animais com seringalistas locais. Relatórios do SPI até 1965 ainda mencionam os Karitiana localizados nos rios Jamari, Candeias e Branco (um afluente do Jaci-Paraná, correndo ao sul da atual Terra Indígena Karitiana), mas a referência a este último rio, além dos depoimentos citados anteriormente, talvez sugiram um processo de migração em curso, pois em 1967, outro relatório de atividades da Inspetoria de Rondônia já situa os Karitiana no alto rio das Garças, território que ocupam até hoje. Não necessariamente nos locais das mesmas aldeias atuais, pois há vestígios arqueológicos e narrativas orais que se referem a várias aldeias na mesma região, ocupadas anteriormente. Os missionários do SIL Rachel e David Landin sabidamente residiram na aldeia Kyõwã entre 1972 e 1977, onde desenvolveram estudos em linguística e antropologia e atividades de evangelização. Rachel Landin afirma que a aldeia era habitada pelo menos “desde os últimos 16 anos”: isso significa que o sítio da atual aldeia Kyõwã teria sido fundado por volta de 1973.

O missionário Willem Bontkes, do SIL (Sociedade Internacional de Linguísitca), esteve entre os Karitiana no rio das Garças em 1968, tendo encontrado os índios ainda morando em grandes casas comunais (as ambi atana, “casas redondas”), que o religioso fotografou, e que parecem ter sido abandonadas mais ou menos a esta altura dos acontecimentos. Em 1969 foi instalado o posto Karitiana, pela FUNAI, nas margens do igarapé Sapoti, um dos foradores do rio das Garças; segundo depoimentos, a esta altura os Karitiana estavam residindo um pouco a nordeste da aldeia Kyõwã atual. A Terra Indígena Karitiana teve sua demarcação administrativa concluída em 1978, tendo sido devidamente homologada em 1986. Durante mais de 30 anos o povo Karitiana este todo concentrado em uma única aldeia, Kyõwã, também conhecida como aldeia Central.

A multiplicação das aldeias e a luta pela terra

Casa karitiana na aldeia Kyõwã. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Casa karitiana na aldeia Kyõwã. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

A Terra Indígena Karitiana apresenta-se como um quadrilátero de 89.682,1380 hectares de superfície, localizado inteiramente no município de Porto Velho, capital do estado de Rondônia. O decreto 93.068 de 06 de Agosto de 1986 homologou a demarcação administrativa iniciada em 1976. Uma porção considerável do leste e sul do território homologado incide sobre a Floresta Nacional do Bom Futuro, infelizmente uma das áreas de proteção ambiental mais devastada de Rondônia.

A área apresenta cobertura vegetal do tipo floresta ombrófila aberta, com alguns trechos de floresta ombrófila fechada. Cortado por inúmeros igarapés afluentes da margem esquerda do rio Candeias (especialmente o rio das Garças), o terreno eleva-se na direção leste, onde está a Serra Morais, local de grande importância histórica e simbólica para os Karitiana. Esta área foi deixada de fora da terra demarcada, assim como todo o território que se estende dos limites da área indígena até o rio Candeias, e entre este e o rio Jamari, que os Karitiana apontam como território tradicionalmente ocupado pelo grupo e almejam, algum dia, recuperar.

No momento, a Terra Indígena Karitiana apresenta-se livre de invasões. Num passado recente, foi alvo da exploração madeireira e mineradora (cassiterita). Fazendas de gado cercam os limites setentrionais da área, mas o perímetro restante é integralmente ocupado pela mata. Ocorre eventualmente a penetração de caçadores e pequenos sitiantes na fronteira meridional da área, mas a expansão recente do número de aldeias, como veremos, tem garantido certa vigilância contra invasões.

Como vimos, após o contato definitivo com o órgão indigenista, em fins da década de 1960, até 2003, o povo Karitiana – com exceção de uma poucas famílias vivendo nas cidades de Porto Velho e Cacoal – esteve integralmente concentrado em uma única aldeia, Kyõwã (literalmente “boca [sorriso] de criança”, “pois a aldeia é bonitinha como sorriso de criança”), também conhecida como aldeia Central Karitiana; esta denominação em português sugere que Kyõwã foi, em algum momento, uma aldeia maior em torno da qual gravitavam aldeias menores nos territórios adjacentes; sabe-se que quando o missionário Bontkes esteve entre os Karitiana nesta parte do alto rio das Garças, eles ainda ocupavam uma casa redonda (ambi atana), tendo, ao que parece, abandonado suas moradias tradicionais logo na sequência. Distante aproximadamente 100 km de Porto Velho, o acesso à aldeia Kyõwã é feito pelo asfalto da BR-364. Na altura do quilômetro 50 da rodovia inicia-se uma estrada de terra de cerca de 45 km que leva, pelo meio da floresta, à aldeia. A aldeia é dividida ao meio pelo igarapé Sapoti, afluente do rio das Garças. Na margem esquerda do igarapé, onde desemboca a estrada de acesso à aldeia, localizam-se a sede administrativa e as estruturas instaladas pela Funai e por outros órgãos de assistência indigenista (escola, posto de saúde, residência dos professores), além das residências de parte das famílias. Na margem direita do igarapé, está situada a maior parte das residências familiares. Kyõwã não tinha luz elétrica até 2005.

As casas karitiana atuais seguem o modelo regional, de duas águas, mas a matéria de sua construção varia: há moradias de madeira, de taipa e mesmo algumas construções de alvenaria. As construções antigas, erguidas com troncos, cipó e palha de babaçu – as ambi atana, “casas redonda” – foram abandonadas há algumas décadas, mas os Karitiana orgulham-se de recordar sua construção, pois elas representam, aos olhos dos índios, modelo fiel das casas de antigamente, aquele ensinado aos índios por Botyj̃, a quem chamam de “Deus”, a poderosa divindade criadora. Construídas com esforço demorado de alguns mais velhos, essas imponentes construções funcionam, hoje, não mais como moradias, mas como “igrejas” (o termo é dos Karitiana) ou como amostras de sua “cultura tradicional”. No passado, dizem, abrigavam uma família extensa organizada em torno de um homem de prestígio – “chefe” ou mahipto – que, com sua família, ocupava a porção mais distante da porta; os homens casados situavam-se na parte central, e os jovens solteiros junto à entrada. As residências atuais abrigam, em sua maioria, uma família conjugal: marido, esposa e filhos e filhas.

O crescimento populacional de Kyõwã, com o progressivo esgotamento de seus recursos (afinal, a área esteve ocupada e vinha sendo explorada por cerca de 40 anos), aliado à disputas políticas cada vez mais graves e ao desejo por reaver as terras de seus ancestrais à leste do rio Candeias (nas bacias dos igarapés Três Casas, Tapagem, Taboca e Conceição) levaram a uma primeira cisão do grupo no ano de 2000. Nesta ocasião, o pajé Cizino, seguido por uma parte de seus aliados, ergueu, junto à cachoeira de São Sebastião, na margem direita do Candeias (na Linha 9, já no território do município de Candeias do Jamari/RO), uma nova aldeia (neste primeiro momento apenas uma ambi atana) que denominou Byyjyty Osop Aky (literalmente “os cabelos de Byyjyty”, expressão recolhida em um mito que explica como Byyjyty, neto de Deus Botyj̃, criou os Karitiana a partir de mechas de seus cabelos espalhados pela floresta), também conhecida como Aldeia do Rio Candeias ou Aldeia Nova (“nova” ao menos em 2003). Cizino tinha a intenção de reocupar as terras onde ele e todos os homens e as mulheres Karitiana mais velhos nasceram e de onde foram expulsos pelas frentes de penetração não indígenas na primeira metade do século XX. A área da nova aldeia, fora dos limites da Terra Indígena Karitiana oficialmente reconhecida, era bastante rica em caça e pesca, e muitos dos moradores de Kyõwã visitavam a maloca e faziam planos para morar lá. Não obstante, esta tentativa de reocupar a área a partir da instalação de uma aldeia às margens do Candeias foi violentamente frustrada por fazendeiros locais que atearam fogo à maloca, destruindo-a, em setembro de 2003. Esta violência, contudo, não deteve Cizino e seus aliados, que reconstruíram a aldeia, hoje (2021) com 36 moradores.

O reconhecimento estatal do desejo dos Karitiana reaverem parte das terras tradicionalmente ocupadas no vale do rio Candeias que perderam no passado, bem como do direito deste povo indígena a este território e a abundante comprovação histórica, arqueológica e sociocultural deste mesmo direito, veio na forma de um primeiro GT da FUNAI encarregado do reestudo da terra indígena e da possível delimitação oficial do território reivindicado pelos Karitiana no vale do Candeias. As ações empreendidas e propostas por este GT, assim como dos dois outros GTs posteriores (constituídos em 2008 e em 2011) lamentavelmente não deram em nada, fruto das dificuldades enfrentadas pela FUNAI nas últimas décadas e da enorme pressão de fazendeiros e políticos regionais contrários à demarcação da área.

Bastante e compreensivelmente insatisfeitos com os resultados nulos das políticas indigenistas da FUNAI, os Karitiana seguiram com seu processo de reocupação de áreas de seu território tradicional, o que se dá por meio de um processo de fissão de aldeias por linhas políticas, religiosas e de parentesco, muito provavelmente análogo às dinâmicas de formação de aldeias e grupos locais no passado. Assim foi que a parcela dos Karitiana que se identifica como Juari (cerca de 30 pessoas de 6 grupos familiares) desligou-se da aldeia Kyõwã e, conduzida por uma importante liderança, formou, em 2008, a denominada Aldeia do Igarapé Preto (E’se emo), às marges desse piscoso rio, também conhecida como Aldeia Juari ou, na língua indígena, j̃oj̃bit omirim. Esta aldeia, assim como a do rio Candeias, encontra-se fora dos limites da T.I. Karitiana, próximo a sua fronteira norte e dentro das terras de uma fazenda de gado. Sua fundação, deais, redesenha uma divisão que os Karitiana, como um único povo, teriam apagado com o reencontro entre os dois grupos por volta dos anos de 1960. Tudo leva a crer, então, que a divisão permaneceu algo latente até 2008, quando foi erguida como nova bandeira a conduzir o grupo na reocupação de antigas porções do território tradicional.

Logo na sequência, já em 2009, uma pequena parentela fundou a aldeia de Bom Samaritano, no Km 90 do Ramal Maria Conga (a estrada que leva da BR-364 à terra Karitiana), não muito longe de Kyõwã. Trata-se do local em que o finado Garcia, importante liderança, mantinha um roçado e um sítio, o local é conhecido como j̃oj̃ are. A aldeia tinha 14 moradores em 2009 e hoje são 17 residentes. Esta última aldeia abriu o caminho para um processo de espalhamento da população Karitiana por zonas até então desabitadas e pouco exploradas da terra indígena. Entre 2010 e 2020 foram, assim, fundadas as aldeias Caracol (com 29 moradores, no extremo sudoeste da T.I.), Pyrojigngã ou Beijarana (hoje com 22 habitantes) e São Francisco, esta última fundada em 2020 e atualmente com 25 moradores.

Assim distribuídos – e contando, também, com famílias e indivíduos residentes em Porto Velho e Cacoal – os Karitiana enfrentaram, recentemente, um duro golpe com a a pandemia de Covid-19. Quatro idosos faleceram, o que foi motivo de grande consternação para o grupo. O recurso aos seus remédios tradicionais (uma série de plantas chamadas genericamente de gopatoma), segundo os Karitiana, garantiu, felizmente, a recuperação de vários doentes.


Atividades econômicas

Mulher karitiana preparando a farinha de milho. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Mulher karitiana preparando a farinha de milho. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

Os Karitiana são, ainda hoje, horticultores, caçadores e pescadores. A agricultura de coivara – sobretudo macaxeira, milho, arroz, feijão e café – é realizada nas terras ao redor da aldeia, pelas unidades familiares, o que não exclui a troca de trabalho entre famílias. Nos roçados, algumas famílias mantêm casas – chamadas “sítios” – para onde se transferem por vários dias na ocasião da intensificação das atividades agrícolas. Da agricultura ocupam-se homens e mulheres, ainda que a derrubada e a queima dos terrenos caiba exclusivamente aos homens (um mito, recolhido por Rachel Landin, destaca o grande perigo associado a esta atividade, especialmente a queima, realizada com o auxílio de um ser sobrenatural chamado Isoasodna). Ao redor das residências cada família mantém o que denominam de “quintais”, onde são plantadas sobretudo fruteiras (limão, laranja, caju, manga), cuja diversidade é bastante grande.

A caça é uma atividade eminentemente masculina. Os homens em geral caçam sozinhos, ou em grupos de dois ou três; utilizam armas de fogo, ainda que alguns mais velhos afirmem ainda utilizar arco e flechas. Armadilhas diversas também são utilizadas. Os Karitiana dizem que a carne de macaco é a “carne primeira dos índios”, a mais apreciada. Macaco-preto, macaco-prego, queixada (“porcão”), caititu (“porquinho”), paca, cutia, veado (roxo e capoeira) e diversas aves (especialmente mutum, tucano, jacu e diferentes espécies de nambu) são os principais animais caçados. Antigamente certas espécies de anfíbios eram alimentos apreciados, e a mitologia conta que a carne do sapo maam foi o primeiro alimento dos Karitiana.

A pesca é, em geral, uma atividade coletiva, que envolve também crianças. É realizada com redes, anzol e arco e flechas. Nos meses de seca aguda – agosto e setembro –, em que o volume dos igarapés na região reduz-se drasticamente, organizam-se pescas com timbó. Nesta época a abundância de pescado possibilitava a realização de um dos principais rituais karitiana, a festa da jatuarana, um peixe muito apreciado. O rio Candeias é bastante piscoso, mas os cursos d’água menores têm sofrido com a degradação ambiental e o represamento de suas águas nas fazendas à jusante das áreas habitadas pelos Karitiana. No que tange à criação animal, a maior parte das residências possui galinhas, que circulam ao redor das casas e são recolhidas à noite em pequenos galinheiros de construção caseira. Não obstante, mesmo digam que comem estas aves, é muito raro que isto efetivamente aconteça. Umas poucas famílias também criam porcos e patos, mas com pequeno rendimento. Vários projetos de criação animal – de cabras, galinhas e coelhos, a chamada “criação de pequenos animais” – foram introduzidos entre os Karitiana, mas todos falharam completamente e foram descontinuados. Não obstante, discursos sobre o desejo de se introduzir a criação de gado bovino e a implantação de projetos de piscicultura em várias aldeias ainda se fazem ouvir, mas, até o momento, sem maiores repercussões. Os Karitiana sempre reclamaram da carência de instrução e apoio técnico em todos os projetos que foram desenhados e implantados, atribuindo a estas faltas os recorrentes fracassos.

É preciso destacar que a intenção dos Karitiana de recuperar ao menos parte de seu território tradicional, com a ampliação da Terra Indígena sobre o vale do Candeias, além da importância histórica e simbólica, remete também a uma preocupação de ordem prática. Todos nas aldeias são unânimes em destacar o esgotamento das reservas de caça e pesca no interior da área oficialmente reconhecida: as expedições têm chegado cada vez mais longe, muitas vezes extrapolando os limites demarcados (sobretudo ao sul); e os resultados têm sido mais e mais desapontadores. De todo modo, a ampliação do território garantiria aos Karitiana uma reserva inestimável de recursos, necessária ao bem-estar do grupo e à sua reprodução física e cultural.

A dependência de gêneros alimentícios e bens industrializados provenientes das cidades leva os Karitiana a comercializarem parte dos produtos de suas atividades na cidade. Milho, café e feijão – além de algumas frutas como a laranja e o açaí – são os principais gêneros que, em Porto Velho, encontram compradores. O artesanato – bastante diversificado e produzido por todas as famílias da aldeia – é comercializado nas dependências da Associação do Povo Karitiana (Akot Pytim Adnipa), com sede própria, ou em feiras permanentes e esporádicas de artesanato na capital de Rondônia e outras cidades da região. O volume de vendas, contudo, é pequeno, em função, principalmente, do reduzido fluxo de turistas que visitam Porto Velho. Por esta razão, os Karitiana vêm buscando alternativas para expandir as praças de comercialização de sua cultura material, inlcuindo a oferta por redes sociais (Facebook) e mesmo pelo Whatsapp. Cada vez mais o grupo enfrenta problemas com a venda de peças confeccionadas com partes de corpos de animais da fauna silvestre (sobretudo plumária) em função da fiscalização das autoridades ambientais, ainda que os cocares circulares karitiana sejam peças de certa forma reconhecidas como parte da identidade regional rondoniense, podendo ser encontrados decorando prédios públicos, hotéis e nas residências de muitos moradores.

O modelo de apropriação dos lucros obtidos na cidade espelha aquele das atividades produtivas: cabe a cada produtor e sua família o resultado monetário da venda dos gêneros agrícolas, e isso porque o artesanato é uma atividade da qual se ocupam homens, mulheres e crianças. O mesmo pode ser dito do comércio do produto – as etiquetas de identificação e preço das peças em exposição trazem sempre o nome do artesão –, ainda que uma pequena parcela do valor seja retido pela Associação, que assim mantém-se em funcionamento.

Esta prerrogativa da Associação aponta, ainda, para uma tentativa, entre os Karitiana, de administrarem coletivamente os problemas que se apresentam hoje. No entanto, se a iniciativa de assembléias gerais do povo – realizadas em um espaço próprio para reuniões na aldeia Kyõwã, com a presença de praticamente todos os adultos – cabe aos jovens dirigentes da Associação, durante as reuniões a estrutura política vigente na aldeia é desvelada na crucial importância dos discursos dos homens mais velhos e na participação ativa das mulheres no processo decisório.

Os Karitiana, assim como outros povos indígenas no Brasil, são cada vez mais dependentes de aportes de recursos provenientes do mundo dos não índios. Muitas famílias recebem benefícios sociais, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), além de aposentadorias rurais, e há vários indivíduos empregados ou buscando trabalho em Porto Velho. Esta situação, claro, foi bastante agravada pela pandemia iniciada em 2020, que colocou os Karitiana, principalmente aqueles moradores da cidade, em condições bastante difíceis.


Biopirataria e coleta irregular de material biomédico

Banho de rio na TI Karitiana. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Banho de rio na TI Karitiana. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

Os Karitiana, assim como os Suruí, foram arrebatados na corrida pela diversidade e riqueza genética que varreu a Amazônia desde o final dos anos 1980. Tiveram amostras de seus corpos coletadas em duas ocasiões, eventos que tiveram alguma repercussão para a história e a concepção karitiana dos seus relacionamentos com o mundo dos brancos. A notícia de que dez amostras de DNA e linhagens celulares karitiana (e também dos Paiter-Suruí) estavam sendo comercializadas na internet pela Coriell Cell Repositories (CCR) (sediada em Camdem, Nova Jersey, nos Estados Unidos) explodiu em 1996, após a denúncia feita por Ricardo Ventura Santos e Carlos Coimbra Jr., que visitaram o stand da instituição na feira paralela ao congresso da Associação Norte-Americana de Antropólogos Físicos ocorrido em abril daquele mesmo ano. Material genético de 15 populações procedentes de várias partes do globo encontrava-se disponível para venda na página da Coriell na internet, os preços variando (em 2011) entre US$ 85 (para cultura de células) e US$ 55 (para amostras de DNA). O material permaneceu estocado na sede da empresa sob a rubrica “Human Variation Collection” ou “Human Diversity Collection”, e procedia das amostras coletadas no âmbito do Projeto Diversidade do Genoma Humano (HGDP) que, no rastro do Projeto do Genoma Humano (HGP), propôs um grande banco de dados sobre a variedade das estruturas genéticas das mais diversas populações indígenas do planeta. A notícia logo ganhou destaque em numerosos jornais brasileiros, e foi seguida por um amplo debate que envolveu a FUNAI, o Congresso Nacional e diferentes entidades de defesa dos direitos indígenas, bem como os próprios índios. No entanto, muitas das informações veiculadas na imprensa eram desencontradas, e ainda hoje restam algumas dúvidas sobre a trajetória das amostras de sangue das aldeias amazônicas até seu processamento e comercialização na internet.

Ao que tudo indica, as cinco amostras de sangue karitiana e outras cinco de sangue suruí estocadas e vendidas pela CCR foram extraídas nos anos de 1980 (ao que parece, entre 1985 e 1987, não há clareza sobre o ano preciso) por uma equipe de pesquisadores brasileiros e estadunidenses liderada pelo geneticista canadense de origem taiwanesa Francis Lee Black (morto em 2007), um dos autores de um artigo de 1991, em que a coleta das amostras de sangue dos dois grupos é a ele creditada. Este material teria sido estocado em laboratórios das universidades de Stanford e Yale nos Estados Unidos, e estariam aos cuidados do Dr. Kenneth Kidd, de Yale (Folha de São Paulo, 01/06/97). Uma reportagem do Correio Braziliense de 15/05/1988 destaca as atividades desses pesquisadores entre povos indígenas amazônicos desde 1978, e informa que “[a] aldeia de Caritiana [sic], perto do rio Madeira (Rondônia) e os 360 índios Suruí, que são do tronco Tupi, também foram estudados” (a notícia também menciona estudos entre os Urubu-Kaapor, Asurini, Parakanã, Munduruku, Arara, Jamamadi, Kararaô, Xikrin, Cinta-Larga e Wajãpi).

Entre 03 e 13 de julho de 1996 ocorreu a segunda coleta de sangue. Nesta ocasião, uma equipe de televisão britânica, acompanhada por “três brasileiros”, solicitou autorização da FUNAI para ingresso na Terra Indígena Karitiana com o propósito de produzir um documentário sobre a “importância cultural” do mapinguari, lendária criatura monstruosa presente na cosmologia de muitos grupos indígenas na Amazônia, e que aparece entre os Karitiana como Pa ororojo ou, literalmente, “o ogro que ri”. Em 19 de setembro do mesmo ano, os Karitiana endereçaram carta ao Procurador da República no Estado de Rondônia denunciando que a equipe de brasileiros coletou amostras de sangue de todos os índios – tanto na aldeia Kyõwã (àquela altura a única aldeia do povo Karitiana) quanto na Casa do Índio (local de residência transitória dos indígenas em Porto Velho) – para, como foi dito, “exames de anemia, vermes e malária”.

O fato da coleta irregular de sangue por parte desta equipe ter ocorrido na mesma época da denúncia da comercialização das amostras genéticas pela internet levou a uma ampla confusão entre os dois casos. Levantou-se, imediatamente, a hipótese de que o sangue coletado pelos médicos brasileiros em 1996 fora vendido para a Coriell Cell Repositories. Logo após as denúncias pipocarem na imprensa, o Ministério das Relações Exteriores, através da Embaixada do Brasil nos EUA, solicitou à empresa norte-americana informações sobre o material comercializado. O Dr. Richard Mullivor, então diretor da CCR, informou que as amostras dos dois grupos indígenas brasileiros foram doadas pelo pesquisador Kenneth Kidd, então titular do Departamento de Genética da Universidade de Yale, e que teriam sido coletadas em campo há “vários anos por antropólogos” que teriam observado as regras do “consentimento informado” por parte dos “doadores” (os termos são assim citados no relatório da Comissão da Biopirataria na Amazônia (CPI instalada em 1997), em que a Câmara dos Deputados apresenta os resultados das investigações sobre casos de pirataria de recursos biológicos e genéticos amazônicos). Mullivor afirmou, ainda, que as amostras não eram comercializadas pela CCR, uma vez que esta seria instituição sem fins lucrativos: os valores cobrados pelo material na página virtual da Coriell fariam referência tão somente aos custos de sua embalagem e envio a pesquisadores do mundo todo. Em um comunicado à imprensa, datado de 11 de junho de 1997, o médico brasileiro que acompanhou os cinegrafistas britânicos defendeu-se das acusações denunciadas pelos jornais, afirmando que a coleta de sangue deveu-se a uma preocupação com o precário estado de saúde dos Karitiana e uma vontade de trazer melhorias para o grupo, a partir de exames sobre o material biológico recolhido.

O médico informou, ainda na mesma carta, que todo o material que coletou permanecia depositado em laboratório na Universidade Federal do Pará, não tendo qualquer conexão com as amostras comercializadas pela Coriell; estas teriam sido coletadas, diz o médico, “na década de 70 [sic] por pesquisadores Norte-Americanos [sic], com o consentimento da Funai”. E, mais ainda, que os exames prometidos aos Karitiana não foram devolvidos em função das precárias condições de transporte e armazenamento do material, que sofrera rápida deterioração em função de problemas com seu resfriamento adequado, e não pudera ser analisado.

Não obstante, o Ministério Público Federal abriu Ação Civil Pública contra dois dos brasileiros que acompanharam os ingleses, estipulando uma indenização em favor da comunidade Karitiana. A ação requeria, ainda, o completo impedimento da alienação do material coletado entre os índios por parte dos pesquisadores. Alguns anos depois, em 2005 a FUNAI informou, em depoimento de seu então presidente à CPI da Biopirataria, que “todas as medidas haviam sido adotadas no sentido de coibir o comércio de sangue”. Nada de concreto, entretanto, aconteceu. Embora a imprensa brasileira tenha esquecido o caso, a coleta de amostras Karitiana foi matéria de capa no jornal The New York Times, um dos mais importantes e influentes diários do mundo, em 20 de junho de 2007, com o sugestivo título de Giving Blood but Getting Nothing (“Dando sangue por nada”, em tradução livre). A reportagem ouviu várias pessoas na aldeia Kyõwã, que afirmaram não ter recebido um só centavo pela coleta das amostras. Diz ainda que os Karitiana estavam “revoltados” porque pouco sabiam do mundo dos brancos à época da extração do sangue nos anos de 1980 e que, por este motivo, não houve propriamente consentimento segundo as bases legais. Outros canais de imprensa internacional, como a BBC Brasil, também falaram do caso, mas sem maiores consequências para uma solução do problema.

No ano de 2008 a Polícia Federal e o Ministério Público Federal em Rondônia voltaram a se interessar pelo caso, muito em função de um novo escândalo envolvendo os Karitiana desta vez perpetrado pela ATINI – Voz pela Vida, uma organização religiosa sediada em Brasília que afirma defender os direitos das crianças indígenas. A instituição lançou, em 2008, um filme (Hakani – Voz pela Vida) destinado ao combate à práticas de infanticídio entre povos indígenas no Brasil. O filme, e o livreto que o acompanha, foram produzidos tendo como atores vários homens, mulheres e crianças Karitiana que, posteriormente, denunciaram ao MPF em Porto Velho terem se sentido “perturbados” sobretudo pela cena em que um jovem portador de necessidades especiais, filho do pajé Cizino Karitiana, era enterrado vivo, de modo a ilustrar o procedimento infanticida. Embora a produção audiovisual buscasse retratar a prática do infanticídio em outro grupo indígena – os Karitiana afirmam que jamais observaram o costume – o caso assumiu proporções não pretendidas pela ONG, que foi condenada a retirar o vídeo de seus sítios eletrônicos, e os processos judiciais relativos ao evento seguem seu curso na justiça. De todo modo, a busca dos Karitiana por reparação neste evento reacendeu, ainda que por breve momento, o interesse nos casos de coleta irregular de seu sangue e amostras genéticas, mas este cruzamento dos dois episódios de abuso dos corpos e práticas indígenas, já no século XXI, não produziu maiores consequências em termos judiciais: ninguém foi responsabilizado, nenhum material genético ou celular karitiana retornou ao Brasil. As amostras Karitiana permanecem (em 2021) expostas na Human Populations Collection no sítio eletrônico da Coriell, que agora se chama Coriell Institute for Medical Research (o material, contudo, não parece estar mais disponível para venda). Resultados de pesquisas que utilizaram as amostras genéticas Karitiana (assim como de outros povos) continuam, desta forma, sendo publicados nas mais prestigiadas revistas científicas do planeta (como Nature e Science), e sem qualquer menção às polêmicas em torno do caso e, ao que parece, sem maiores preocupações de natureza ética (ver, por exemplo, ''Scientists Trace an Ancient DNA Link Between Amazonians and Australasians''). Prova de que o material biológico já se descolou das condições socioculturais e políticas de sua coleta, o que é, justamente, aquilo que se deve discutir. Os Karitiana seguem sendo mencionados nesses artigos e capítulos, mas nada mais foi feito em favor das compensações exigidas por este povo amazônico por conta da extração e uso irregulares de seu sangue.

O emaranhado de questões desdobradas em torno destes eventos tem interessado alguns pesquisadores nas áreas acadêmicas do direito, da bioética e das políticas públicas nos últimos anos (veja mais em #Fontes de informação). Há de se perguntar, entretanto, como os Karitiana experimentaram estes dois eventos de saque de sangue, e de que modo construíram uma interpretação particular sobre eles.


O caso do sangue na perspectiva dos Karitiana

Uma das versões do mito de Byyjyty, neto de Botyj̃, o Deus “maior, chefão” narra uma história de perdas diante do contato com os brancos, ainda que coloque os Karitiana como os principais responsáveis pelo seu infortúnio. No “tempo antigamente” – forma Karitiana de, em português, estabelecer a fratura entre o tempo atual e o que chamamos de tempo mítico ou história antiga –, Byyjyty vivia entre os Karitiana (como vimos, foi ele que criou os Karitiana a partir de mechas cordatas de seu cabelo espalhadas em cestinhos pela floresta primordial). Certo dia avisou aos índios que morreria e pouco depois voltaria na forma de uma grande ave que os Karitiana não deveriam matar; morreu e foi enterrado dentro da maloca. Seu espírito retornou – como alertara, na forma de um jaburu –, e pousou em cima da maloca. Entretanto, os índios esqueceram-se do aviso de Byyjyty e mataram o pássaro. Foram, então, punidos pelo seu “pecado”: Byyjyty se foi para sempre, e nasceu de novo entre os brancos. Fora Byjyty que tirara, tempos antes, os brancos de dentro da “água grande”, dos domínios de Ora, “chefão das águas”, uma enorme anaconda, dona dos animais aquáticos e irmão maléfico e desastrado de seu avô. Para os brancos Byyjyty transmitiu toda a sua sabedoria. Caso não tivessem “errado” ao matarem o pássaro, Byyjyty teria nascido de novo entre os índios, e hoje eles teriam todos os cobiçados bens de que dispõem os brancos.

Nesta narrativa, Byyjyty espelha, claramente, a figura de Jesus Cristo. Seu nome traduz-se, literalmente, por “grande chefe” e, segundo as regras do parentesco intergeracional, em que avós e netos constituem a mesma pessoa – com estes “renovando” ou “reencarnando”, como dizem os Karitiana, aqueles – Byyjyty é Botyj̃, seu avô e, portanto, ele é, também, Deus (assim como o Cristo). O comentário Karitiana acerca deste mito sugere, assim, o sofrimento experimentado pelos Karitiana ao longo de décadas de convivência com os homens brancos, desde que foram abandonados por Byyjyty que, na sequência, renasceu entre os brancos e lhes trouxe todos os cobiçados bens e mercadorias. Em paralelo, alinha-se uma coleção de narrativas que detalham a abundância do “tempo antigamente” e a trajetória de declínio inaugurada com o contato, sobretudo no que tange à radical depressão demográfica que sofreram e ao surgimento de doenças desconhecidas e muito mais agressivas. Os dois eventos de coleta de sangue entre os Karitiana devem ser vistos da perspectiva destas narrativas.

A etnografia Karitiana faz referência anterior a pouca profundidade da memória nesta sociedade. Com efeito, os Karitiana não se recordam com precisão do evento ocorrido em meados dos anos de 1980 que, para eles, parece estar na categoria temporal estabelecida pelas expressões “tempo” ou “era tempo”, que aparentemente compreende o período entre o presente e passado imediato e o passado remoto, mítico e histórico (ou seja, eventos que ocorreram faz algum tempo, mas que foram presenciados ou experienciados por pessoas ainda vivas). Há algumas informações fragmentadas, oferecidas por algumas pessoas, sobre a visita, “faz muitos anos”, de dois “americanos magros, de barriga funda, barriga de sapo”. Nesta época a escola da aldeia Kyõwã ainda nem estava completa, “era pequena ainda”. Os “americanos” vieram em dois aviões e coletaram o sangue na enfermaria. Isto teria ocorrido em 1984 ou 1985, de acordo com alguns Karitiana, e as referências à idade que tinham na época do evento – marco temporal comum – apontam também para a segunda metade da década de 80.

Do evento de 1996 muitos Karitiana recordam-se com precisão, mesmo porque já se fez acompanhar de uma manifestação positiva do grupo frente ao que consideraram lesivo aos seus interesses, e este posicionamento encontrou reverberação nas preocupações da FUNAI, do Ministério Público, de parte da imprensa, de outros pesquisadores e da sociedade em geral quanto à biopirataria e ao acesso de pesquisadores mal-intencionados a áreas indígenas. Os índios contam que o médico brasileiro e uma equipe de “americanos” vieram até a aldeia e disseram que coletariam sangue para fazer exames, e que depois disso enviariam, todo mês, “remédios para a comunidade”. Durante dois dias todos os moradores da aldeia, até mesmo crianças, compareceram ao posto de saúde local, onde cada um teve duas ampolas de vidro de “sangue puro” retiradas, o suficiente para encher “duas caixas grandes de isopor”, que depois foram levadas. Na ocasião os médicos teriam distribuído “bombons” (como os Karitiana se referem à balas e doces) às crianças e chocolates aos adultos, o que deve ter conferido ao episódio ares de festa. Os Karitiana relembram a relutância de alguns em ceder o sangue – dizem que fugiram “para o mato”, onde foram buscados pela equipe de pesquisadores –, posteriormente convencidos diante da sedutora proposta de ter seu acesso aos serviços de saúde ampliados. No entanto, as promessas feitas pelos visitantes jamais foram cumpridas, de acordo com os Karitiana, e esse é o maior motivo de revolta: após saírem da área, os médicos nunca retornaram, e nem chegaram até a aldeia os prometidos e tão esperados medicamentos e tratamentos de saúde.

Há, na cosmologia Karitiana, uma série de elementos que permitem caracterizar a problemática imposta pela retirada do sangue e a estocagem de amostras do material, sobretudo no que tange aos perigos associados ao sangue fora do corpo, especialmente na situação deste sangue que, no caso de pessoas já falecidas, resta insepulto. Os aspectos poluentes do sangue são enfatizados, aparentemente, na inutilidade da simples devolução do material: este seria o caminho lógico aos olhos dos Karitiana, que não entendem os motivos que acompanham a coleta de material biológico humano e o potencial científico e mercadológico nela envolvidos. Mas, ao mesmo tempo, é evidente a impossibilidade de ele ser reutilizado, recolocado nos corpos: o sangue retirado está “frio”, é sangue morto e, além disso, há o temor de que seu sangue tenha sido misturado com o sangue de outras pessoas e com sangue de animais – “cachorro, boi e burro”, animais introduzidos pelos brancos e tratados com certa ambiguidade pelos índios – e que, por isso, esteja “sujo”, ao contrário do sangue que circula nos corpos vivos, “puro” e “limpo”. Por esta razão, os Karitiana falam em indenização pelo sangue “roubado” (o termo é deles): eles querem dinheiro. Tendo percebido que o sangue, signo em seu código cosmológico, foi mercantilizado, os Karitiana conceberam a contrapartida em mercadoria como tradução mais adequada para tornar mutuamente inteligíveis o confronto entre sua cosmologia e uma “cosmologia do capitalismo”.

A coleta irregular de seu sangue terá sido, portanto, uma afronta às concepções simbólicas Karitiana acerca do corpo e de seu funcionamento regular, nas quais qualquer derramamento do fluido vitual – sangue fora do corpo – é problemático e potencialmente perigoso. Entretanto, mais do que isso, tratou-se de uma ofensa moral grave: os Karitiana falam sobre os taso ty literalmente “homens grandes”, não apenas no tamanho físico, mas, sobretudo, na sabedoria, no pensamento e no trabalho: o “homem grande” é aquele que não tem o “pensamento num só caminho”, mas o “espalha em todas as direções”, homem que tem sabedoria e responsabilidade. Em suma, o modelo de personalidade social adequada e respeitada: o homem que “fala bem com as pessoas”, recebe-as com presteza em sua casa, não “conta mentiras ou pensa e faz mal” a outrem, e respeita as regras da reciprocidade, tão importantes para o grupo.

Muitos brancos estão nesta categoria, pois a eles são creditados longos anos de estudo e vasto conhecimento. É, pois, com incredulidade e resignação que os Karitiana refletem sobre a traição de que foram vítimas, posto que jamais poderiam esperar conduta tão desviada vinda de taso ty, sobretudo por parte de médicos, cuja confiança é fundamental e foi, possivelmente, alimentada pela razoável eficiência dos serviços de saúde oferecidos aos Karitiana na então única aldeia deste povo indígena e em Porto Velho. Uma quebra da ética da dádiva, fundada no intercâmbio entre o sangue coletado em diferentes contextos e os remédios e a assistência médica – intercâmbio já há muito estabelecido entre os Karitiana – que deixou um forte ressentimento e a necessidade de recuperar, de alguma forma, o que se foi. O assunto, entretanto, parece ter sido esquecido, diante da longa espera pela solução do caso e por medidas de compensação, e em função dos múltiplos novos problemas enfrentados pelo grupo nos últimos anos.


Organização social e cosmologia

Refeição comunal na aldeia Kyõwã. foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Refeição comunal na aldeia Kyõwã. foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

Os Karitiana apresentam para a etnologia americanista um conjunto de práticas socioculturais e concepções cosmológicas que os fazem únicos e bastante singulares no contexto etnolinguístico regional e mesmo continental. A começar por sua língua – de uma família isolada dentro do grande tronco Tupi, do qual parece ser a única língua ainda viva, posto que Arikém/Arikeme e o misterioso Kabishiana estão, ao que tudo indica, extintas há tempos – e que os faz contrastarem com todos os povos indígenas vizinhos e regionais, via de regra, seus (antigos) inimigos, todos eles falando línguas Tupi-Guarani (Kagwahiva). Mas os Karitiana são um povo particular também por algumas de suas práticas e certos itens de sua cultura material, em larga medida estranhos à paisagem regional, Tupi e mesmo amazônica como um todo. Temos, por exemplo, o fato de que os Karitiana não cultivam (e afirmam nunca terem cultivado) tabaco, no que contrastam fortemente com a ampla difusão desta planta nas terras baixas sul-americanas, onde virtualmente todas as sociedades ameríndias conheciam a planta e seus usos. Também merece menção a sugestão, apontada pela antropóloga Andréa Castro, de que a noção Karitiana na qual a geração de filhos envolve a fusão de elementos masculinos e femininos é, também, rara na paisagem das ideias sobre a concepção na Amazônia indígena. Outros elementos, mais bem estudados, também se configuram interessantes na caracterização da organização social e da cosmologia karitiana.

Comecemos pela antiga prática de modificação craniana que tornava os Karitiana únicos na paisagem etnocultural regional. O procedimento chamou a atenção dos primeiros pesquisadores que conheceram os Karitiana e deles deixaram registros: os integrantes da Expedição Carlos Chagas, que localizaram um jovem Karitiana no rio Jamari em 1912 (provavelmente trabalhando em um seringal, em função das roupas que usa), tomaram três fotografias – frente e perfis esquerdo e direito – que deixam ver com clareza seu crânio artificialmente deformado. De acordo com os Karitiana, o processo de achatamento do crânio começava bem cedo. Um aparato denominado om’am (que foi fotografado pelo antropólogo Carlos Frederico Lúcio em 1993) e fabricado apenas pelas mulheres era preso à cabeça da criança logo no nascimento; nos primeiros meses, o aparato era confeccionado de palha enrolada com algodão bruto, que era substituída por madeira e fibras tecidas de algodão quando a ossatura da caixa craniana se fortalecia com o crescimento da criança; a pressão exercida pela faixa de algodão no osso frontal levava e seu deslocamento, dando à cabeça um característico aspecto cônico: segundo os Karitiana, bastavam três dias usando o om’am para que se modificasse o formato da cabeça dos recém-nascidos. Homens e mulheres que, hoje, têm acima de 50 anos, todos apresentam o crânio achatado, e a prática parece ter sido abandonada no início dos anos de 1970, momento em que contatos permanentes com os não índios são estabilizados.

Em razão da ausência de práticas similares na bacia do alto Madeira, alguns autores vinculam a modificação craniana outrora praticada pelos Karitiana com povos mais distantes, como os Omágua-Cambeba e alguns povos de língua Pano no vale do Ucayali. Sobre a prática, os próprios Karitiana a comentam por meio de um mito, bastante conhecido porque hilariante, no qual um homem do “tempo antigamente”, Okorokoto, não tinha a cabeça achatada e, por esta razão, era rejeitado por todas as mulheres do grupo. Para além de infeliz, porque não encontrava uma companheira humana, Okorokoto era figura do ridículo, pois fez de um oco de pau sua “esposa”, narram os Karitiana, a quem chamava de “minha mulher”, beijava, acariciava, destinava presentes e com quem mantinha relações sexuais. Comportamento ridículo, mais do que reprovável, punido com humor pelos demais moradores da aldeia que, em certa ocasião, enchem o buraco da “esposa” de Okorokoto com pimenta apenas para ver o infeliz solitário sair pulando por causa da ardência e da dor, diante das risadas de todos. Este mito detalha uma explicação para a prática do achatamento do crânio pelos Karitiana: diz-se que, antigamente, as mulheres só apreciavam os homens que deformavam seus crânios. Tratava-se, pois, de uma razão mesmo estética: o crânio achatado era “bonito” (hãrãj̃), razão pela qual Okorokoto era considerado “feio” (sara), pois tinha a cabeça não alterada pela modificação artificial da caixa craniana. Parece haver, ainda, uma outra razão para a antiga deformação craniana: conta-se que teria sido um antigo tuxaua que achou bonito modificar a forma da cabeça, instituindo, então, a prática, que era destinada a diferenciar os Karitiana dos “outros índios” (opok pita) vizinhos e inimigos. As cabeças chatas de homens e mulheres constituíam, assim, a “marca dos Karitiana”, que os tornava distintos de outros povos que também tinham (e têm) suas próprias “marcas” corporais: narizes e orelhas furadas, tatuagens faciais e outras. É interessante que esta explicação ressoe com a razão fornecida pelos Karitiana aos religiosos que os visitaram em 1958, para quem explicaram que seus crânios modificados os tornavam distintos dos Karipuna, seus mortais antagonistas.

Uma outra prática Karitiana incomum no cenário regional em que se inserem é o uso dos chamados pilões de pedra, que são, na verdade, pilões alguidariformes escavados em troncos de madeira com uma mão feita de uma pedra chata e usados pelas mulheres para processar alimentos (grãos e tubérculos). Alguns ainda seguiam em uso na aldeia Kyõwã em 2003, e muitas dessas pedras (que os Karitiana denominam “pilão de pedra”) podem ser encontradas nos sítios de antigas aldeias hoje abandonadas, sobretudo na bacia do rio Candeias: elas, assim, configuram índice seguro, e durável, da presença dos Karitiana em certos lugares na região, e frequentemente as pedras são recolhidas e trazidas para as aldeias. Esses pilões são, além de seu uso no processamento de alimentos, empregados também no ritual funerário karitiana: depois de erguida a estrutura de madeira e palha (a “casinha”) sobre o túmulo, as mulheres aparentadas do morto (especialmente suas filhas) batem a pedra no pilão vazio uma única vez; as demais pessoas não devem ouvir esse som, segundo Antonio Paulo, pois morreriam em pouco tempo: por isso quase todos na aldeia retiram-se para o mato, permanecendo por algum tempo a uma distância segura. Não se conhecem registros de artefatos similares em outros povos vizinhos ou amazônicos, e Rondon, descrevendo seu uso entre os Arikêmes (grupo de língua Tupi-Arikém) no rio Jamari em 1913, afirmou que se tratava (o pilão) de instrumento “de uso commum a todos os silvícolas brasileiros”, mas que deste grupo ganhou “um feitio novo, privativo da tribu”. A mesma informação é anotada por Amilcar Botelho de Magalhães, que corrobora o formato de “meio disco” dos “pedaços de laje” ainda hoje encontrados no território tradicionalmente ocupado pelos Karitiana, e que eram no passado selecionados pelos Arikémes para utilização como trituradores de grãos em toras de madeira abertas horizontalmente.

Os textos de Rondon e de Magalhães, contudo, não fazem menção ao curioso fato de as mulheres fazerem “música” (assim é como os Karitiana se referem), batendo as pedras nos pilões de forma ritmada: esta é a música que acompanha as flautas (aerofones) de taboca tocadas pelos homens durante a festa das flautas: dizem os Karitiana que os homens falam (ou falavam, já que a festa não é mais realizada) através das flautas, e as mulheres respondem (respondiam) por meio da batida ritmada das pedras no cocho de madeira. Conforme os Karitiana, nos antigos rituais que comemoravam a caça de cabeças dos inimigos (trazidas para as aldeias de modo a preparar o caldo com o qual todos se banhavam para obter saúde), “homem tocava flauta, e mulher respondia com toque do pilão”. De fato, os padres Angelo Spadari e José Francisco Pucci, que visitaram uma aldeia Karitiana no rio Candeias em 1958, notaram a singular prática, relacionando-a aos tradicionais tambores de madeira (trocanos) usuais em outras partes da Amazônia: “Usam – muito parecido com o trocano tradicional – um tronco de madeira de uns 4 ms. de comprido, com uma cavidade em tôda a parte superior de sua extensão, onde as mulheres, com lascas de pedra de forma retangular, socam o milho para a pamonha, produzindo um som soturno e compassado, que ribomba pela floresta adentro”. Em seu Dicionário do artesanato indígena, Berta Ribeiro não faz menção, nas seções dedicadas aos pilões e aos tambores nativos, a percutores confeccionados em pedra, e esta convergência entre um instrumento musical e um processador de grãos parece ser bastante rara na América do Sul.

Resta, por fim, uma terceira singularidade dos Karitiana, esta relativa à sua história mais recente e diretamente relacionada aos dois eventos de coleta irregular de seu sangue (ver item #Biopirataria e coleta irregular de material biomédico ) – e que os converteu, defintivamente, em “objectos de sciencia”, agora não mais etnológica, mas biomédica ou genética.. Com efeito, após a intensificação do contato com a sociedade nacional, provavelmente a partir do início do século XX, os Karitiana sofreram, como vimos, um brutal declínio demográfico: eles dizem, hoje, que “quase acabaram”. Isso só não veio a acontecer porque o grupo tomou duas medidas desesperadas, como parte de uma estratégia adotada para a recomposição do contingente populacional. Em um dado momento, tomaram a iniciativa de procurar contatar os Juari, um grupo de parentes que, dizem, fora separado anos antes; este grupo, de acordo com os relatos, era constituído apenas por homens, que precisavam de mulheres para o casamento. Estas esposas teriam sido providas pelo grupo Karitiana, que dispunha das muitas filhas do chefe Antônio Moraes, resultantes de uma primeira tentativa de conter a extinção do povo. Há cerca de 3 gerações (por volta dos anos 20 ou 30), o prestigiado líder Antonio Moraes teria desposado, de acordo com os Kari-tiana, de 7 a 10 mulheres (a crer em versões divergentes), inclusive algumas cujo parentesco muito próximo lhe seriam interditas pelas regras matrimoniais. Estas uniões poligâmicas geraram muitos filhos, especialmente mulheres, que foram cedidas aos Juari, selando a união entre os dois grupos. Desta forma, a grave depressão populacional de que os Karitiana foram vítimas foi revertida com sucesso. Contudo, sua maneira de estancar o declínio populacional teve impacto importante na estrutura genealógica dos Karitiana. Já em meados dos anos 70, Rachel Landin observou a extrema densidade de seus laços de parentesco, e outros autores mencionam a reconfiguração de regras matrimoniais do grupo em função de profunda desestabilização demográfica. Claro, estas são características comuns a muitas sociedades demograficamente reduzidas e levadas ao limite da extinção física; a questão, contudo, era o grau de complexidade que esta configuração veio a adquirir entre os Karitiana.

Ao investigar a genealogia dos Karitiana, Carlos Frederido Lúcio detectou que praticamente todos os Karitiana vivos (95,23% deles, à época de seu trabalho em meados dos anos de 1990) descendiam diretamente de Antonio Moraes. O mesmo dado havia sido verificado pelo estudo anterior do geneticista Gilberto Souza Aguiar, que inaugurou o interesse das ciências da vida pela peculiar configuração genética do grupo. Aguiar descobriu que a estratégia de Antônio Moraes em desposar muitas mulheres teve “(...) efeitos dramáticos no atual estado genético-populacional da tribo [sic] (...)” e, à época de sua visita à aldeia, constatou que todos os indivíduos menores de 16 anos descendiam do chefe Moraes, frequentemente por diversos caminhos genealógicos. O mesmo pesquisador constatou, ainda, que o coeficiente de consanguinidade médio – índice que mede a proximidade genética no interior de uma população – dos Karitiana era de 0,142, sendo que entre primos de primeiro grau este número chega a 0,125. Um artigo de 1994, em que o material Karitiana é analisado, reafirma a transição entre a genealogia e a genética sugerida por G.Aguiar: os autores agradecem a um colaborador uma genealogia dos Karitiana (CALLEGARI-JACQUES et al., 1994). Deste modo, a partir da estrutura genealógica, os pesquisadores parecem fazer emergir a estrutura genética, e a história é reduzida a seus efeitos sistêmicos inscritos no DNA. Esta estrutura genética define, então, uma vez mais, a singularidade dos Karitiana: uma sociedade de pequena escala, linguisticamente isolada e geneticamente ímpar, posto que resultante de uma ação passada que provocou uma alteração cientificamente interessante no mapa genético do grupo: extremo de consanguinidade, extremo de endocruzamentos ou casamentos entre parceiros geneticamente muito próximos. Os estudos posteriores ressaltaram esta característica peculiar da história Karitiana, tal qual impressa em seu mapa genético. Possíveis implicações desta singularidade, que transformou a estrutura genética dos Karitiana em material de elevado valor científico e a definiu como diferente das demais ou única, vêm sendo reportadas em numerosos artigos, que descrevem os Karitiana como “(...) exemplo interessante de população ameríndia com variabilidade genética limitada (...)”. Este renovado estranhamento dos Karitiana segue sendo alimentado – talvez porque seu material genético continua em uso nos mais diferentes estudos, pois coletado e difundido entre uma enorme rede de pesquisadores e centros internacionais de pesquisa – por novas pesquisas, que sugerem, entre outras coisas, que o grupo guarda em seu material genético evidências de antigas conexões da América indígena com os povos nativos da Austrália, da Nova Guiné e das Ilhas Andaman (Índia), ícones, na antropologia popular (e, às vezes, mesmo da antropologia profissional), do exotismo, da ancestralidade e do primitivismo.


Parentesco

O sistema de parentesco Karitiana enquadra-se no conjunto de sistemas ameríndios de parentesco definido como dravidianato amazônico. Ele foi objeto de estudos anteriores, e aqui oferece-se uma nova abordagem, adaptada do trabalho que Luciana Storto desenvolveu com Nelson e Garcia Karitiana (2018). Para a família nuclear os termos são “pai” (syp para o ego feminino falando e 'it para o ego masculino falando), "mãe" (ti) e “filhos” (ego masculino se refere a seus filhos fazendo uso do termo 'it, e ego feminino usa 'et). Note que o termo para “pai” e “filho” quando homens estão falando são os mesmos, recíprocos ( 'it). Assim, é como se o filho de ego chamasse seu pai de “filho”, uma vez que o neto e o avô paterno se identificam no sistema de parentesco e onomástica: dizem os avôs que seus netos são seus “eus novos” ou “eus renovados” (ou fala-se, atualmente, em “reencarnação” do avô no neto), e os nomes são transmitidos em gerações alternadas, de avô paterno para o neto (FF para FS).

A categoria “irmãos” é dividida por sexo de ego e de alter. Irmãos do mesmo sexo de ego são divididos por idade do alter: para o alter (irmão ou irmã) mais velho, o termo usado é haj, e para o alter mais novo o termo é ket se ego é masculino (homem falando), e kypet se ego é feminino (mulher falando). Irmãos do sexo oposto a ego estão divididos por sexo de ego: irmãs de um homem são chamadas de pan'in e irmãos de uma mulher são chamados de syky. Estendem-se as categorias “pai” para os “irmãos do pai” de Ego, e “mãe” para as “irmãs da mãe” de ego, conforme o quadro abaixo. Os filhos destes tipos de tios (paralelos) são os primos paralelos de ego, que são considerados tipos de irmãos, com quem ego, portanto, não pode se casar.

Ego Masculino Ego Feminino
1 eFB Sypyty Sypyty
2 yFB Sypy’et Sypysin
3 F ’It Syp
4 M Ti Ti
5 yMZ Ti’et Ti’et
6 eMZ Tiity Tiity

No quadro acima, a categoria irmão do pai – father´s brother (FB) – é dividida por idade relativa ao pai de ego: sypyty é o termo para irmão mais velho do pai (eFB) e o irmão mais novo é dividido pelo sexo do ego: Sypy´et se o homem fala e sypysin se a mulher fala. Há dois termos para pai, um para ego masculino ( ´it) e outro para ego feminino (syp). A categoria irmã da mãe – mother´s sister (MZ) – não varia de acordo com o sexo de ego: é sempre ti´et para a irmã mais nova da mãe e tiity para a irmã mais velha.

Nos sistemas dravidianos de parentesco o primo cruzado da mãe de ego costuma ser o pai de ego e a prima cruzada do pai do Ego costuma ser a mãe de ego. Isto decorre do fato de que, nestes grupos, o casamento preferencial ser geralmente com os primos cruzados. Os termos para tios cruzados são divididos pelo sexo de alter. As tias paternas de ego masculino ou feminino (FZ) são chamadas de sokit. Tios maternos (MB) são divididos pelo sexo de ego: ta-`it para ego masculino (3anaf + pai de homem, significando, possivelmente “pai que é dele”). Os tios desta categoria são potenciais sogros e sogras de ego, já que os Karitiana dão preferências às uniões matrimoniais avunculares. Talvez por isso um menino chame seu tio materno de ta´it, que significaria “pai dele” (e não meu) e uma mulher use o termo syky-´et (literalmente “irmão “+ “cria de mulher”). Igualmente, porém, uma mulher pode se casar com o tio que ela chama de syky’et (avunculato). Seria o termo composto explicado pelo fato da mãe chamar o marido potencial de sua filha de syky (irmão)? Será que o termo quer dizer “o irmão que é cria”, pois a mãe ajudou na criação desse irmão já sabendo que ele poderia ser o marido de sua filha ou o sogro dela?

No sistema de parentesco Karitiana, ego se identifica com seu avô ou avó paternos (dependendo do sexo de Ego). Este fato pode ser observado também no sistema de nominação. No entanto, como nomes pessoais têm uso restrito entre os Karitiana (o estoque de nomes na língua indígena é finito, mas todos e todas têm nomes em português, além de muitos apelidos em ambas as línguas), utilizam-se os termos de parentesco para referência. O termo usado por um menino para se referir ao seu avô paterno ou por uma menina para se referir a sua avó paterna, é ombyj (em que se pode reconhecer a raiz byj “chefe”). Esta criança vai receber o mesmo nome de seu ombyj, ou se o nome já tiver sido concedido a um de seus irmãos, a criança receberá o nome de um irmão/irmã de seu ombyj. Aqueles avós que não são chamados de ombyj por ego recebem os termos de parentesco owoj (avô) e timoj̃ (avó). A categoria “netos” é dividida primeiramente pela relação com ego e depois pelo sexo de ego: ongot é o termo usado por ego para um neto ou neta do mesmo sexo que ele na linha paterna, a quem ele dá o nome. Para os outros tipos de netos, os termos usados são sokite'et para ego masculino e ete'et para ego feminino.

Rachel Landin (1989) diz que não há termo de parentesco para primos cruzados em Karitiana porque esta categoria é constituída por aqueles indivíduos que são os esposos preferenciais de ego. Assim, tradicionalmente, os termos usados para designar tais indivíduos podem ter sido “marido” (man) e “esposa” (sooj). Para mais informações sobre o parentesco Karitiana pode-se consultar a tese de doutorado de Andréa Castro (2018).


Língua e educação escolar

Liderança karitiana. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Liderança karitiana. Foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

A língua Karitiana é classificada como pertencente à família Arikém que é parte do tronco linguístico Tupi. Esta pequena família é composta, também, pelas extinta língua Arikém, ainda falada, provavelmente, na primeira metade do século XX, pelo povo conhecido como Ariquemes, que foi nucleado pelo Serviço de Proteção aos Índios, junto a outros povos, no Posto Indígena Rodolpho Miranda. Uma terceira língua, o Kabishiana (Kabixiana), às vezes aparece como integrante da mesma família, mas seu estatuto é controverso e, na verdade, sua própria existência é duvidosa (o nome, inclusive, pode ser apenas uma corruptela do termo Karitiana).

O idioma Karitiana foi estudado inicialmente pelos missionários David e Rachel Landin, ligados ao SIL - Summer Institute of Linguistics (hoje Sociedade Internacional de Linguística) nas décadas de 1970 e 1980. Em 1992, a linguista Luciana Storto iniciou uma pesquisa de descrição e análise da língua que foi tema de seu mestrado e doutorado e continua até o presente. Em 2002, Storto iniciou uma colaboração com o foneticista e etnomusicólogo Didier Demolin, estudando vários temas da fonologia da língua através da fonologia experimental. Em 2004, uma colaboração com Ana Müller sobre fenômenos semânticos da língua gerou as bases para a criação do Grupo de Estudos em Línguas Indígenas (GELI) do Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo (USP). Por seu turno, Caleb Everett escreveu uma tese de doutorado em 2006 e publicou alguns artigos sobre a língua.

Um projeto de alfabetização na língua Karitiana foi elaborado e coordenado por Storto e financiado pela Norwegian Rainforest Foundation através da Divisão de Linguística do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG) entre 1994 e 1997; o projeto ensinou um terço da população acima de 10 anos a utilizar a ortografia desenvolvida para a língua. Um material didático de mais de 100 páginas, utilizado até hoje nas escolas das aldeias, foi elaborado para auxiliar o aprendizado da ortografia e a leitura. Uma “casa da língua”, com sede na aldeia Central (Kyõwã) foi construída pela comunidade para sediar o projeto de ortografia. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) financiou, à época, a presença de professoras na comunidade que serviram de tutoras preparando os jovens que já haviam terminado o Ensino Fundamental 1 para exames de equivalência do Fundamental 2, permitindo a obtenção de diplomas de primeiro e segundo graus para muitos membros da comunidade. Em posse destes diplomas, vários deles fizeram os cursos de 2º e 3º graus oferecidos pelo Estado de Rondônia a partir do ano 2000.

Storto fez uma contribuição contínua para o estudo da língua desde o projeto de alfabetização (1994-1997) através de materiais linguísticos produzidos em colaboração com narradores e professores da comunidade (textos como ‘´Ej Akypisiibmim’, ‘Boyyj͂ Pynhadna’ e gravações de áudio de narrativas entregues aos professores e diretores da escola, à sede da Associação Indígena do Povo Karitiana Akot Pytim´adnipa, e à FUNAI). A partir de 2003, quando foi contratada no Departamento de Linguística da Universidade de São Paulo, foi possível realizar, quase que anualmente, a continuação dos estudos da língua com falantes de Karitiana, que vêm sendo trazidos a São Paulo para participar de trabalhos de tradução junto à equipes de alunos de graduação e de pós-graduação e professores da USP, como Ana Lúcia de Paula Müller e Didier Demolin, que, entre outras publicações, gravou e produziu o CD de músicas Karitiana. Recentemente, uma coleção de materiais didáticos foi publicada e entregue à comunidade. Uma listagem completa das produções científicas sobre fenômenos da gramática da língua que tratam de temas variados, assim como os trabalhos desenvolvidos pelo grupo de estudantes e de docentes da USP, podem ser consultados no item FONTES DE INFORMAÇÃO deste verbete.

O Karitiana é falado por todas as crianças que vivem aldeadas, mas as crianças que nascem ou vivem na cidade estão lamentavelmente deixando de falar a língua. Rocha (2018) menciona que 25% da população está vivendo fora da aldeia, e que 60% deles não falam mais a língua Karitiana, mas apenas o português. O português é a segunda língua de todos os membros da comunidade que vivem na aldeia, sendo que os mais velhos têm mais dificuldade em falar a língua nacional que os mais jovens. Muitos jovens possuem celulares, e, quando na cidade, acessam a internet e as redes sociais e têm contato intenso com a população local, falante de português.


Educação escolar

Dentro das aldeias Karitiana existem 6 escolas administradas pela Secretaria de Educação do Estado de Rondônia (SEDUC) e frequentadas por aproximadamente 100 estudantes. A escola Kyowã, situada na aldeia Central, é a única que oferece o Ensino Médio. As escolas contam com 29 professores, sendo 18 indígenas e 11 não indígenas. Há alguns anos indígenas participam da formação de magistério, o projeto Açaí, oferecida pela mesma Seduc. Destes, 13 deram continuidade à formação com o Curso superior de Licenciatura Intercultural que os habilita a trabalhar conteúdos de Ensino Médio, o que contribuiu para o aumento da contração de professores indígenas.

As aulas ministradas pelos professores indígenas acontecem nas línguas Karitiana e portuguesa, e há aulas específicas para o aprendizado da língua e da cultura. Apesar da escola ter sabedores da cultura e do projeto político-pedagógico da escola possuir alguns elementos da educação diferenciada, a prática de uma educação escolar alinhada às especificidades Karitiana está longe de ser efetivada por conta da imposição do calendário escolar e do currículo pela Secretaria Estadual de Educação – SEDUC, como aponta Joel Karitiana (2021) em seu TCC (ver #Fontes de informação ).


Nota sobre as fontes

Time de futebol karitiana. foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.
Time de futebol karitiana. foto: Felipe Ferreira Vander Velden, 2003.

O material etnográfico a respeito dos Karitiana é ainda bastante escasso como, de resto, para a maior parte das sociedades indígenas em Rondônia e sudoeste da Amazônia brasileira, mas vem crescendo substancialmente nos último anos. Nesse sentido, contrasta com a excelência e relativa abundância das análises de sua língua, bem como com os estudos genéticos, biomédicos e bioantropológicos realizados entre eles.

Ainda que os materiais produzidos pela Comissão Rondon – depositados no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, e agora disponíveis online – tragam as primeiras referências sobre os Karitiana, a primeira descrição – absolutamente sumária – de sua cultura está nas memórias do padre Angelo Spadari – que os visitou em 1958 – publicadas pelo historiador Vitor Hugo, em italiano, na revista alemã Anthropos (56, de 1961), e depois, em português e com pequenas alterações, no segundo volume de seu monumental Desbravadores. Uma rara e preciosa matéria escrita pelo padre Spadari foi publicada no jornal O Guaporé em 1981.

Depois dele, o casal de missionários David e Rachel Landin – ligados ao Summer Institute of Linguistics, SIL – residiu entre os Karitiana de 1972 a 1977. Ainda que interessados na tradução do Novo Testamento para a língua Karitiana, os missionários deixaram uma coleção de análises linguísticas, publicadas principalmente na Série Lingüística do SIL, bem como uma dissertação sobre parentesco e nominação (Kinship and naming among the Karitiana) e um curto artigo sobre mitologia (Nature and culture in four Karitiana legends), ambos de Rachel Landin, além de dois manuscritos, sobre tecnologia lítica e economia, por David Landin, que também publicou um dicionário e léxico da língua Karitiana. Um extraordinário conjunto de fotografias produzidas pelo casal Landin nos anos 70 encontra-se atualmente em análise, mas algumas das imagens já ilustram este verbete (gentilmente cedidas por David Landin).

Carlos Frederico Lúcio produziu a primeira etnografia detalhada do grupo, em sua dissertação de mestrado defendida em 1996 na Unicamp (Sobre algumas formas de classificação social: etnografia sobre os Karitiana de Rondônia), e centrada na análise da interseção dos sistemas classificatórios da genealogia, da onomástica e do parentesco. O parentesco Karitiana é também objeto – numa perspectiva comparativa, dentro do universo dos grupos Tupi de outras famílias que não Tupi-Guarani – da dissertação de mestrado de Carolina Araújo, de 2002, na UFRJ (A dança dos possíveis: o fazer de si e o fazer do outro em alguns grupos Tupi). A história do contato dos Karitiana com os brancos, tendo por base as narrativas dos próprios índios, foi tratada por Lilian Moser em sua dissertação de mestrado na UFPE de 1997 (Os Karitiana no processo de desenvolvimento de Rondônia nas décadas de 1950 a 1990). Os casos de coleta irregular de amostras biológicas, bem como as implicações simbólicas e políticas desta intervenção para os Karitiana, são objeto da dissertação de mestrado de Felipe Vander Velden, defendida na Unicamp em 2004 (Por onde o sangue circula: os Karitiana e a intervenção biomédica); os casos de biopirataria entre os Karitiana também têm sido objeto de estudos nas áreas do Direito e das Políticas Públicas. Vander Velden também estudou as relações dos Karitiana com espécies animais exóticas na sua tese de doutorado (também na Unicamp) em 2010 (Inquietas companhias: sobre animais de criação entre os Karitiana), posteriormente lançada, com algumas alterações, como livro (2012) pela Alameda Editorial, na primeira monografia publicada sobre este povo indígena. Vander Velden vem, desde então, publicando extensamente sobre diversos aspectos da cosmologia, das práticas e da história karitiana, situando-os no cenário etnológico regional, mas mantendo especial foco nas múltiplas relações com seres não humanos (ver #Fontes de informação).

Mais recentemente, Íris Araújo tem pesquisado os assim chamados “especiais” entre os Karitiana, discutidos longamente em sua tese de doutorado defendida em 2014 na FFLCH/USP (Osikirip: os ‘especiais’ Karitiana e a noção de pessoa ameríndia), e também em artigos e apresentações de trabalho. E Andréa Castro retomou, de maneira original e provocativa, o parentesco Karitiana em suas interseções com corpo, substância e história, na tese de doutorado (Koro’op: E-moções. Sociabilidade, paisagem e temporalidade entre os Karitiana) defendida na UFJF em 2018. A língua Karitiana foi previamente estudada por David e Rachel Landin, que e publicaram o resultado de suas pesquisas através do SIL em diversos artigos entre 1973 e 1989. A partir do material dos Landin, Daniel Everett publicou 4 artigos, e seu filho, também linguista Caleb Everett, segue publicando materiais sobre o idioma. Luciana Storto – que tem trabalhado na descrição e análise da língua Karitiana desde sua primeira visita profissional àquela aldeia em meados de 1992 – fez uma análise detalhada de aspectos fundamentais da gramática do Karitiana, em sua tese de doutorado de 1999, no MIT (Aspects of Karitiana Grammar), e publicou vários artigos em periódicos nacionais e estrangeiros. Recentemente (2022) Luciana Storto organizou e traduziu quatro narrativas míticas Karitiana, publicadas no formato de livro, o que deve incrementar a difusão do conhecimento sobre este povo indígena Tupi-Arikém.

A fotografia mais antiga de que se tem notícia de um Karitiana – tirada pela Expedição de Carlos Chagas à Amazônia em 1912 – introduz o grupo no campo das pesquisas bioantropológicas e biomédicas. De uma curiosidade inicial em torno da modificação craniana passou-se a um conjunto de investigações em torno das condições epidemiológicas e sanitárias do grupo e, por fim, a estudos que focam a estrutura genética deste povo. Dos primeiros destacam-se a dissertação de mestrado de José Odair Ferrari, defendida na USP em 1995 (A saúde do índio: um desafio sem endereço, os Karitiana de Rondônia) e vários artigos publicados em periódicos da área de saúde pública e biologia humana. Dos segundos é preciso sublinhar a pesquisa de Gilberto Araújo, publicada em Ciência Hoje (v.13, n.76, de 1991), periódico de divulgação científica de grande circulação, além de um número expressivo de artigos, quase todos em periódicos estrangeiros, que discutem genética e biologia molecular Karitiana, e que continuam sendo publicados, alguns em revistas de bastante prestígio. Estes últimos não tratam especificamente dos Karitiana, mas analisam o material coletado entre eles em comparação com amostras recolhidas e estudos efetuados entre outras populações indígenas no Brasil e no mundo.

Deve-se dar destaque aos trabalhos mais recentemente desenvolvidos pelos estudantes karitiana do Curso de Educação Intercultural da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) – campus de Ji-Paraná. Até o momento foram defendidos seis trabalhos de conclusão de curso (Trabalho na ítegra), um dos quais, de Edelaine Karitiana, publicados em formato de livro aos cuidados de Gicele Sucupira (Kerep õwã aopika: a educação Karitiana antes da criação da escola). Esses trabalhos de graduação se somam às duas monografias defendidas por jovens karitiana no curso de Pedagogia do campus de Porto Velho da UNIR. Cada vez mais mulheres e homens karitiana vêm alcançando o ensino superior em várias áreas, o que abre a perspectiva de uma rica produção futura com a marca desses jovens intelectuais e profissionais indígenas e das formas de conhecimento karitiana.


Fontes de informação

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