De Povos Indígenas no Brasil
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“Muito antigamente, a gente andava muito no cerrado... como se a gente dividisse o espaço com os bichos”

por Wautomoaba Xavante

Antigamente as pessoas não ficavam num lugar só, paradas. As pessoas andavam muito, usavam o território fazendo expedição.

Vou contar a minha vida, a minha infância eu vou contar. Eu não sou daqui, sou de um lugar que se chama Norosurã. Nossas mães contam a história assim para nós. Minha mãe e minha avó gostavam de contar, eram contadoras de histórias. A minha tia, considerada minha mãe de criação, era boa para contar histórias, por isso eu sei contar.

Minha mãe me deu para a minha tia me criar. Ela que me ensinou todas as coisas da vida, me ensinou também a coletar frutas. Diferente dos warazu [não indígenas], a relação de parentesco entre os Xavante é próxima e forte, por isso minha mãe e meu pai me deram para o irmão de meu pai me criar.

Quem me ensinou foi quem me criou, quem me mostrou o mundo e com quem eu aprendi a coletar. Me ensinou muito, principalmente em relação à coleta. Eu aprendi com essa mulher, com essa tia que fez o papel de minha mãe. Ela me ensinou a buscar as frutas no cerrado, pegar os cocos e um dos cocos que ela me ensinou a pegar chama norõre. É em época de chuva que a gente colhe o norõre. A época da chuva é de fartura, colhemos muito e comemos muito essa fruta, que é muito forte. Eu sou de Norosurã, mas a minha mãe e minha família são de um lugar que se chama Parabubure.

De Cuiabá, os não índios vieram para ocupar o espaço e fazer guerra com os Xavante. Eles fizeram um massacre nesse lugar, Parabubure, e nesse conflito perdi minha mãe e meu pai. Depois desse massacre nos refugiamos na região de Pimentel Barbosa. Quando eu vim para cá eu já era grandinha, dava para ver o que estava acontecendo. Eu vim com meus irmãos e a partir daí eu cresci sem ter noivo, sem ter nada, já vim grandinha para cá. Nós viemos de um lugar que não tinha meninas para casar, não tinha mulher para casar. Por isso que viemos para cá e nos casamos nesse lugar.

Daqui nós fomos para São Domingos, Wedeze. Lá chegando criaram um grupo de idade para a gente se tornar adulto. Foi o primeiro grupo tirowa do Wedeze e eu fiz parte desse grupo. Foi lá que eu passei a participar do grupo tirowa. No grupo tirowa me formei, me tornei mulher e me casei.

Quando a gente se torna adulto, começa a produzir. Eu e minha irmã nos tornamos trabalhadeiras, a gente plantava muito, trabalhava muito e tinha muita fartura. Eu comecei a produzir, a plantar e a ter fartura, por isso meus filhos não passavam necessidade. Fui sempre trabalhadeira, tinha muita comida, plantava muita banana, plantava muito mamão.

Depois que tive meu primeiro filho, meu sogro [Apowë Xavante] começou a pensar em deixar aquele lugar, ele começou a andar, andar para encontrar um lugar para criar uma nova aldeia. Meu primeiro filho nasceu na Barreira Amarela e depois dele tive outros filhos. Depois de mudarmos para Barreira Amarela, meu sogro resolveu mudar de novo, ele começou a andar, procurar um lugar bom e resolveu mudar para esse lugar que hoje é a aldeia de Pimentel Barbosa. E nós mudamos para cá.

Quando a gente mudava de aldeia ou criava uma nova aldeia não passávamos necessidade , porque a roça que tinha eram as frutas do cerrado , a gente comia em qualquer lugar . Antigamente não nos preocupava uma mudança porque ninguém passava necessidade, já que tinham as frutas do cerrado. A gente sempre comia cará do cerrado, tipo wededu, a gente plantava muito, nunca passamos necessidade. Meus filhos nunca passaram necessidade. Assim eram as coisas, era assim. Era assim a vida, assim tive meus filhos. E os filhos que tenho hoje foram esses que nasceram daquela época para cá. Meus filhos cresceram e começaram a ter filhos, aumentar a família.

Antigamente , muito antigamente , a gente andava muito, muito no cerrado fazendo expedição , como se a gente dividisse o espaço com os bichos . Os bichos andavam muito procurando comida e a gente andava muito, igual aos bichos. Antigamente, quando as pessoas ocupavam o espaço, andavam, faziam expedição, cada pessoa exercitava o seu conhecimento, tanto as mulheres em relação à coleta, quanto os homens em relação à caça, todo mundo exercitava seu conhecimento , era uma forma de aprender , era uma forma de viver a vida . É assim que a gente aprende a pegar as frutas, identificar, aprende a quebrar e tirar a casca do sé. É assim que a gente desenvolve nossa habilidade e conhecimento, quem gosta de pegar o sé, vai pegar o sé, quem gosta de pegar outras frutas, pega outras frutas. A gente comia patede, wededú e poné ’re [tipos de cará do cerrado], e essas comidas estão indo embora e sendo esquecidas . Além dessas frutas tem o norõré, terãntĩ, terĩre [tipos de coquinho do cerrado]. Hoje acho que ninguém conhece, ninguém sabe ou se esqueceu o que é o terãti. Terãti é uma fruta muito gostosa, acho que ninguém sabe ou conhece.

Antigamente nossos avós conversavam muito com a gente e ao mesmo tempo nos ensinavam. Por isso quando as meninas ficavam grandes já estavam preparadas porque receberam o ensinamento. Um dos lugares onde andávamos muito é na região onde hoje é a cidade de Água Boa. Os lugares onde fazíamos expedição eram muito longe, hoje esses lugares são ocupados por cidades que são próximas às aldeias, era onde as pessoas andavam muito. Antigamente nossos avós ensinavam muito, muito mesmo. Eles falavam, a gente ouvia, aprendia e colocava em prática. Depois que aprendíamos as atividades, a gente substituía o trabalho de nossas mães, a mãe da gente já não trabalhava muito, pois a gente assumia a atividade doméstica. É assim que a gente pensava e levava a vida antigamente. É assim que é a vida.

Mudança na paisagem e práticas culturais atualizadas

por Camila Gauditano, antropóloga

Wautomo é uma árvore do cerrado e um dos cinco prefixos que compõem os nomes femininos xavante. Aba significa caçada. Uma boa coletora é como um bom caçador: são identificadas e comentadas na comunidade e podem ganhar reconhecimento em outras comunidades. Wautomoaba, assim como outras mulheres, é uma caçadora de frutos, cocos e carás do cerrado, assim como os homens são caçadores de veado, anta e caititu. Desde menina, aprendeu os segredos de uma boa coleta: onde encontrar, como manejar, proteger-se dos espíritos da mata – donos dos recursos naturais – e a preparar os alimentos para sua família.

As expedições familiares pelo cerrado, denominadas zöomo’ri, realizadas para buscar alimentos, recursos naturais para confecção de artesanatos, vistoriar do território e praticar rituais, diminuíram drasticamente a partir da década de 1980, por influência dos salesianos e pela ocupação de terras xavante por colonos. Muitas regiões por onde exercitavam e praticavam seus conhecimentos foram cortadas por estradas, tornaram-se cidades, pastos e plantações de soja. Ainda hoje, buscar alimentos que fortaleçam os Xavante espiritualmente, como a carne de caça – que os faz sonhar –, cocos e carás, exige a experiência de homens e mulheres na interação com o cerrado, seus seres e seu entorno degradado.

A relação com os primeiros criadores xavante se mantém por meio dos sonhos. Neste encontro eles compartilham práticas rituais, cantos, nomes masculinos e femininos. Para a imersão no universo onírico é preciso o uso de remédios, banhos e práticas propiciatórias, que inclui relações com a sobrenatureza nos momentos em que estão no cerrado, e, também, da ética alimentar, que determina quais são as comidas consideradas fortes e fracas para sonhar.

A mudança na paisagem tem uma relação direta com as práticas culturais. Locais propícios para caça e coleta, como tabocais, brejos e terras altas, foram desmatados e/ou desertificados. A cesta básica foi adotada, assim como o plantio de arroz, e também faz parte do sistema de solidariedade que demonstra o interesse de reforçar laços de parentesco entre a comunidade. Segundo a opinião das mulheres mais velhas, o preparo de alimentos não indígenas, transformado em prática cotidiana dos mais jovens, está enfraquecendo os Xavante. Enfraquecendo não no sentido estritamente nutricional, mas das práticas culturais envolvidas. O ato de coletar e caçar não envolve apenas encontrar o alimento, mas todas as ações simbólicas praticadas desde o princípio dos tempos por seus ancestrais criadores que, atualizadas, garantem o modo de vida xavante até os dias de hoje.

O depoimento a seguir foi gravado na aldeia Wederã, TI Pimentel Barbosa, Mato Grosso, em 2008. A tradução foi realizada por Cipassé Xavante, filho de Wautomoaba, hoje coordenador técnico local da Funai em Água Boa, MT, local onde os Xavante realizavam suas expedições.