De Povos Indígenas no Brasil
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"Antes do contato a terra era tão aberta"

por Wisio Kawaiwete. Publicado originalmente no livro Povos Indígenas no Brasil 2011/2016.

Wisio Kawaiweté. Foto: Isabel Harari, 2016.
Wisio Kawaiweté. Foto: Isabel Harari, 2016.

Meu nome é Wisio, sou da aldeia Kwaruja, e fui escolhida como representante das mulheres para falar sobre o interesse do nosso povo, para nós, mulheres kaiabi.

Antes de tudo, quero dizer que estou preocupada com os produtos da roça do meu povo; alguns estão enfraquecidos. O produto que nós temos não tem veneno, não tem química. Isso é importante nunca deixar acabar, porque a gente tem que manter do jeito que os nossos ancestrais vinham cuidando. Nessa parte eu sempre vou ajudar. É a nossa alimentação e ela não pode acabar.

Antes do contato com o homem branco, a terra era suficiente e quando a terra que a gente morava enfraquecia os produtos, a gente mudava de um lugar para o outro. Antes do contato, a terra era tão aberta... Está ficando difícil porque nós estamos em uma reserva, uma ilha, então isso dificulta quando a terra enfraquece para nossa produção. A gente tem pouco espaço, sim. Mesmo tendo a demarcação da área, ela é insuficiente para o movimento e para a produção. Na minha visão, a terra é que produzia os nossos produtos, como amendoim, milho, inhame, se reproduzem bem naquela terra preta, que chamamos de capoeira – onde tem uma aldeia antiga e uma terra boa para produzir.

Do passado para o presente, as coisas estão mudando. Atualmente, quando as mães fazem aquele trabalho que os antigos faziam, não têm o acompanhamento das moças, da filha, da neta; às vezes, a mãe fica trabalhando sozinha. Isso vem me preocupando.

A gente pode aprender a falar português, mas tem que saber falar a sua língua, não deixar de falar. Isso me preocupa muito porque tem não índio que tem essa religião que está tendo aí e que já está começando a entrar na nossa reserva, impedindo que a gente use a nossa própria cultura, fale a própria língua, use os nossos alimentos, aprenda a ser pajé...

Foi Tuiararé mesmo quem nos transformou em humanos, que fez a gente. Ele, quando transformou, fez língua uma só... depois é que separou as regiões do mundo começou a mudar as línguas, para cada etnia ficar com uma língua diferente. Por isso que a língua da gente é diferente uma da outra.

Eu sempre ouvi na história que nós, indígenas, fomos separados do não indígena. Ele deu orientação para não destruir a terra, saber utilizar, saber cuidar e não destruir os rios. Então, conforme a nossa origem indígena, nós usamos com respeito as coisas da natureza. O mesmo deus, quando passava em outro povo, deu outra orientação, então somos diferentes: nós indígenas usamos as matas diferente de vocês. Nós somos todos iguais, mas na utilização dos recursos naturais, a sua destruição é muito maior do que a nossa.

Eu não sei bem a história de não índio. Não sei como o deus orientou o seu povo. Com o passar dos anos, com os contatos, as coisas vão mudando. Acho que você mesma já percebe que as coisas não estão ficando bem, está mudando o clima. E por que isso? Porque o não índio está destruindo o que não deve ser destruído. Isso está afetando o que não era para ser destruído. Não devia ser construída barragem; não podia cortar os córregos. O deus que criou aqueles recursos, esse mundo, não está satisfeito com isso e por isso que acontece enchente, chuva imensa que alaga a cidade.

É isso que nós indígenas enxergamos. O nosso mundo é equilibrado com a natureza saudável, com a mata fechada. É ela que chama as chuvas e deixa o ar puro para a gente respirar. Alguns de vocês estão preocupados com isso, mas tem alguns que não se preocupam, como os governos, e é isso que vem afetando a natureza e a sobrevivência de nós, humanos.

Falando dos cerrados e da montanha, aquele morro para nós é uma casa dos espíritos poderosos, que construíram todos os recursos. Cada montanha onde existem esses morros é uma casa dos espíritos; eles que transformaram esses recursos. Não sei se os não índios percebem que, quando uma montanha é destruída, o dono se revolta contra quem a destruiu. Isso vem acontecendo nos países que destruíram casas dos poderosos espíritos.

Na verdade, nós não estaríamos aqui no [Parque Indígena do] Xingu, mas os dois irmãos Villas-Boas foram ao Rio Teles Pires, encontraram com o finado do meu sogro e convidaram ele para visitar o Xingu. Nossa aldeia era longe; era apenas para vir para o Xingu “de passageiro” e depois ia voltar para aldeia. Foi isso que foi falado, mas nada disso aconteceu. A gente não acostumou com o Xingu e ficamos de voltar para nossa aldeia, mas não deixaram a gente voltar para os lugares de onde viemos. Nós deixamos muitas coisas lá: produtos de roça, criação de porco, criação de frango. Tudo isso meu pai deixou. Ele ficou muito triste e, por isso, quis voltar pra lá, mas o Claudio e o irmão dele não deixaram, falando que os seringueiros estavam judiando, massacrando.

Na época, quando existiam ainda muitos pajés poderosos que sabiam muito das coisas, não chovia logo que passava a época de queimada. Aquela comunidade tinha que conversar com aquele pajé e dar um jeito de falar com espírito ou, até mesmo cantar, para mandar chuva. Isso acontecia no passado, mas isso não acontece mais porque as pessoas estão nem aí, elas não lembram mais o que eram as nossas coisas.

Mas como hoje em dia os não índios estão desmatando muito, tudo isso está causando problema. Por quê? Porque aquele dono que transformou a mata e a água, com toda a destruição que está acontecendo, não está gostando nada, e por isso impede que chova. E é isso que os pajés de hoje contam: ele está fazendo o clima esquentar, a chuva demorar para chover.

Fortalecer o pajé, fortalecer aquela coisa que os antigos faziam, conversar com o pajé... tudo isso está deixando de ser feito. Existe uma outra religião que vem impedindo isso. Aquele que era pajé está deixando de seguir sua função e está valorizando outra religião. Eu acho que isso que vem impedindo que as coisas se fortaleçam.

Eu, como liderança, deixo aqui de mensagem para mulheres kaiabi e também para outras etnias: “Vocês têm que ser corajosas, têm que pensar em seus filhos e em seu povo. Para conseguir as coisas, vocês têm que ser fortes, têm que ir atrás das coisas. Mostrar o que você tem de bom para ajudar seu povo. Quero que isso aconteça com muitas de vocês que são mulheres lideranças indígenas. Mostre a força, mostre o que você tem de verdade.

Sempre lembramos dos lugares de onde nosso povo veio. Tem vezes que dá uma saudade e lembramos de todos os recursos que têm naqueles lugares, só que infelizmente eles foram ocupados pelos fazendeiros. Foi dado pelo governo os lugares onde nós indígenas vivemos e ele tem que considerar que indígena também faz parte daquele lugar.

Por isso a gente sempre quer pegar os recursos que usávamos para fazer artesanato, mas quem está lá, ocupando, nos considera como invasores. Sempre quer matar índio, mostrar as armas que tem. Mas não é bem assim. Nós pertencemos àqueles lugares onde eles estão ocupando. Aqui onde moramos não tem muitos recursos que precisamos, somente naqueles lugares.

Os antepassados comiam as frutas, tinham ervas medicinais, e, com tudo isso, eles tratavam seus filhos. Então, naquela época, era difícil ter as doenças que hoje estamos tendo. Essas doenças, que não são do nosso costume, vêm mais por causa da produção, que tem química. É daí que vêm as doenças: vêm dos lugares que circulamos, vêm da cidade. Essa é minha visão.

Movimentos na terra

por Equipe de edição

WISIO KAWAIWETE é uma das mais importantes lideranças políticas na região do Baixo e Médio Território Indígena do Xingu (MT). Profunda conhecedora da cultura alimentar e da culinária de seu povo, ela foi, junto com Tuiaraiup, seu esposo, responsável por um projeto de resgate e multiplicação de 42 variedades de amendoim conhecidos pelos Kawaiwete. Nesse processo, ela percorreu diversas aldeias e roças, levantando as variedades agrícolas manejadas por seu povo. Wisio é uma anfitriã de prestígio, que sabe como reunir e alimentar as pessoas, e também é dona de uma oratória admirada por todos, mulheres e homens. Além de congregar as mulheres de sua região, ela atua na diplomacia com os K ĩ sedjê, povo cuja língua ela também fala.

Com o casamento, lembra Wisio, ela se acostumou ao marido Tuiaraiup e, além de apoiá-lo em suas obrigações como pajé, passou a acompanhá-lo em importantes reuniões no território indígena, na cidade e em Brasília (DF), para “cobrar os chefes grandes”: “Eu não estava sozinha na luta. Dentro da nossa reserva, tinha as mulheres que participavam da reunião, mas fora, na cidade, elas não tinham coragem – ou o marido não deixava. Então eu, com minha coragem, enfrentava tudo isso”. Assim, Wisio se tornou uma das pioneiras Conselheiras de Saúde no TIX e até hoje ajuda a pautar as ações de atenção à saúde promovidas pelo Projeto Xingu, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A dedicação à política trouxe dificuldades e, algumas vezes, a afastou de seus filhos e filhas. Mesmo assim, a nora do pajé Prepori Kawaiwete deixa um caminho trilhado para as jovens lideranças: “Hoje estou chegando na idade em que não consigo participar como antes, e é por isso que elas estão aí, no caminho que eu passei”. Nesse depoimento, ela fala sobre o contato com os não indígenas e todas as transformações que ele produziu na terra, nos alimentos e na vida dos Kawaiwete.

O depoimento foi colhido por Isabel Harari na Aldeia Kwaryja, no Território Indígena do Xingu (MT) em junho de 2016. A tradução foi feita por Aruta Kawaiwete, seu genro.