De Povos Indígenas no Brasil
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"A gente existia antes"

Leila Lopes, liderança Guarani Ñandeva, narra a resistência histórica de seu povo e explica os conflitos fundiários que enfrentam com os fazendeiros no Mato Grosso do Sul

Leila Lopes posa para retrato no Acampamento Terra Livre 2017. Foto: Luiza Calagian/ISA, 2017.
Leila Lopes posa para retrato no Acampamento Terra Livre 2017. Foto: Luiza Calagian/ISA, 2017.


Eu sou uma liderança mulher, da minha retomada [área reivindicada pelos Guarani como suas terras tradicionais, ocupada por não indígenas] Yvy Katu. Sou representante da Aty Guasu [Grande Assembléia Guarani e Kaiowá] também. Para virar uma mulher liderança, a gente tinha que voltar para o nosso tekoha [o lugar físico em que ocupam e realizam o modo de ser guarani]. Porque antigamente, no [tempo do] nosso bisavô, do nosso tataravô... Não tinha fronteira para nós índios. Para os Guarani e Kaiowá, não tem fronteira. Então é por isso que a gente tem que voltar para o nosso território, para poder retomar do fazendeiro o nosso tekoha. O antigo, o nosso bisavô, o nosso tataravô, foi expulso de lá.

Em 1960, meu avô me contava: foram os fazendeiros que entraram em contato com a Funai para poder trazer os indígenas para uma reserva. Antes, a gente não tinha reserva. Porque para o Guarani, para o Kaiowá, não existe fronteira. Então, do jeito que o meu avô contou, fizeram aldeamento em todos os lugares para ali poder ajuntar os indígenas. E ali é igual a um chiqueiro para nós. [Desde então] alguém fala: “o indígena tem o direito de 1988”. Mas não é verdade não! A gente existia antes. Lá para 1940, 1950, nós já estávamos espalhados por aí.

Então por isso que nós, indígenas, não esquecemos do território. Onde que é, onde a gente nasceu… Isso foi passando para o nosso filho, para a nossa filha. Eu não acredito! Fazendeiro fala: “essa aqui é a nossa terra”. Não é verdade! Porque eu sempre acompanhei, desde 10, 8, 7 anos... A minha vó sempre me contava isso. Eu deitava junto com a minha avó e ouvia. Isso é muito importante. Eu não acredito que uma pessoa fale que nós, indígenas, não existíamos antes de 1988. Não é verdade, não é verdade. Os brancos fizeram uma aldeia ali para nós, eles trouxeram tudo, aí depois o que aconteceu? Agora, os Guarani Ñandeva e Kaiowá começaram a sair daquele chiqueiro e ir para o tekoha. Porque uma reserva, para nós, não serve. Porque a gente veio na marra parar ali. Porque nosso pai, nosso avô vieram na marra ali. E agora o que Guarani e Kaiowá tinha que fazer? Ir pular aquela cerca e voltar para o tekoha dele novamente. Isso é o que Guarani Ñandeva e Kaiowá estamos fazendo no Mato Grosso do Sul. Então, eu sei... É muito difícil nós, indígenas, voltar, tirar da mão de um fazendeiro o nosso território. É muito difícil porque a gente já sofreu bastante lá em Mato Grosso do Sul. A gente foi morto. E sumiu corpo de cacique. Muitos caciques já foram mortos. Não foi punido até hoje. Foi escondido o corpo.

Eu conheci o primeiro Guarani Ñandeva que morreu na retomada campestre, o Marçal de Souza. Depois, foi morto o Durvalino Rocha. E depois, foi morta Xurite Lopes. E depois, Nísio Gomes. E depois, foram mortos dois indígenas no município de Paranhos. Um acharam o corpo e um não foi achado. O último que foi morto ali no tekoha Caarapó, um agente de saúde, Clodiode [Aquileu Rodrigues de Souza]. Foi morto... Mas depois tem bastante que faleceu já. E até hoje não foi punido. Em Mato Grosso do Sul, eu não sei se o parente do Amazonas sofreu igual a nós também… Isso eu não sei. Porque lá em Mato Grosso do Sul nós sofremos muito.

Lá numa retomada foi estuprada, foi apanhada uma mulher grávida de oito meses. A mulher perdeu o bebê. Foi machucada. Conhecemos [quem fez isso]. Foi um fazendeiro. A Marinalva também… Tanta coisa aconteceu para nós no Mato Grosso do Sul que, se alguém quiser ouvir história, nós vamos amanhecer e escurecer novamente. A história do indígena não é fácil.

Eu sou uma mulher que retomei o meu território. Primeira mulher que entrou para retomar o meu tekoha novamente. Atrás de mulher, os homens entraram. Nós, mulheres, que demos coragem para os homens entrarem. Eu sou uma pessoa que já levou tanta coisa na vida. É ameaça que veio para cima de nós… Nove despejos. Quatro a Polícia Federal tentou tirar nós, mas não conseguiu. Eu tenho até no meu celular aqui que foi gravado. Dia que foi morto parente nosso em Buriti... o Oziel Gabriel, Terena. Depois de trinta dias nós retomamos e eles tentaram fazer isso com um Guarani e Kaiowá, mas não conseguiram.

Meu avô já não está vivo mais e ele sempre falava que esse lugar é nosso: “é de vocês. Porque eu, daqui a pouco, não vou estar mais com você. Tem que pensar na sua família, no seu parente e voltar novamente naquele lugar. Porque ali é nosso”. Porque, ali, o osso do nosso tataravô tá lá. O osso do nosso bisavô tá lá. Aquele lugar é nosso. Então sempre dá coragem. Quem vai querer perder um parente que já foi enterrado ali? Há décadas lá... Para mim, eu nunca vou esquecer o que meu avô sempre contava.

Nós, indígenas, a gente tem dor de derrubar um mato. Porque o mato a gente ama muito. Aquele lá trouxe chuva para nós. O rio… Tudo isso para nós é muito bom. Porque não traz doença. Agora não... Hoje em dia, fazendeiro entrou e acabou a nossa mata, com os nossos remédios tradicionais. E hoje em dia a gente fica pedindo esmola para o governo. Antigamente, nós indígenas não éramos assim. E por que hoje em dia indígena morre muito? É porque a gente comeu comida envenenada. Eles plantam e passam o veneno por cima da plantação. E contamina água. Acabou nosso peixe, acabou a nossa mata, acabaram nossos remédios tradicionais. Acabou tudo.

Então por isso que nós, indígenas, queremos conseguir novamente a nossa terra: para conseguir reflorestar e deixar a água limpa, o rio... Para aumentar peixe novamente, para ter novamente a caça, para ter novamente os nossos remédios tradicionais. Hoje em dia, em Mato Grosso do Sul, não tem mais isso. A água é toda poluída. Porque o fazendeiro planta soja, cana, tantas coisas… Milho. Ele passa veneno. Aí chove e vai tudo no rio, não dá nem para tomar qualquer água. Nós sofremos bastante. E esse governo não tem piedade de nós. É por isso que nós, indígenas Guarani e Kaiowá, nós estamos lutando até o fim.

Eu já não tenho medo da luta. Porque nós já estamos acostumados. Porque outro dia teve ali aquele spray de pimenta que foi jogado. Não é desse jeito que a gente tá na retomada. É bala... Pura. Não é bala de borracha. Nós já enfrentamos tudo isso. Eu, com a arma no meu peito… a Polícia Federal. No meu redor, todo mundo tava chorando: mulheres, crianças, homens. Eu na frente. A Polícia Federal apontando arma no meu peito. Falei assim para eles: “senhor delegado, se você vem para matar um indígena, mata primeiro eu, depois eu quero que você mata tudo o que tem aqui na sua frente. Eu não quero que o senhor deixa nenhuma pessoa. E não mata ele, mata primeiro eu”. Eu já sofri.

Na retomada não é fácil. Esse spray de pimenta que foi jogado aí, para nós é uma fumaça. Mas o que a gente tá passando na retomada… Por exemplo, você tem uma casa. Uma pessoa invadiu a sua casa, a sua porta e você querendo entrar lá. E ele não deixou. Do jeito que ontem aconteceu com a gente lá. Aqui no Senado. É assim a retomada. Por isso que nós, Guarani e Kaiowá, a gente já morreu bastante em Mato Grosso do Sul. Se esse governo não fizer nada para nós, para o Kaiowá e Guarani, nós vamos resolver isso. Nós vamos fazer autodemarcação da terra.

Em Aty Guasu, no conselho geral ali em Mato Grosso do Sul, a gente sempre avisava. Até o presidente da Funai, em fevereiro foi lá e a gente já conversou com ele o que nós vamos fazer. O que nós vamos fazer é autodemarcação. Os nossos parentes, o Kaiowá e o Guarani, nós vamos se espalhar e fazer autodemarcação da terra. Se eles não fizerem nada aqui, nós mesmos vamos fazer o Grupo de Trabalho, nós mesmos vamos fazer a homologação. Se eles não fizerem nada, nós mesmos vamos demarcar a nossa terra. É isso que está no nosso coração, no coração do Guarani e Kaiowá.

Nós estamos deixando claro para ele mesmo: se ele não fizesse isso e esse vindo aqui, em Brasília, mais um aviso pra ele nós vamos deixar. Aí, se não aconteceu nada, nós vamos fazer isso, a autodemarcação da terra em Mato Grosso do Sul. Porque nós não temos mais medo. Já morremos bastante, não temos mais medo. Nós já somos acostumados. Morrer… nós já somos acostumados a enfrentar a Polícia Federal, Polícia Militar, então é isso a nossa vida em Mato Grosso do Sul.

O depoimento acima foi registrado em 2017 durante o 14º Acampamento Terra Livre, em Brasília (DF), por Victoria Franco e Luiza Calagian.