Pitaguary
- Autodenominação
- Pitaguari
- Onde estão Quantos são
- CE 3623 (Siasi/Sesai, 2014)
- Família linguística
O Ceará foi a primeira província a negar a existência da presença indígena em seu território, ainda no século XIX. Como resultado dessa medida, extensas faixas de terra tornaram-se disponíveis, o que beneficiou de forma direta a pecuária extensiva. Nesse contexto, povoados originados pela expansão dessa atividade foram transformados em vilas e o Estado passou a exercer controle crescente sobre a mão-de-obra local, uma mão-de-obra que era basicamente formada por índios submetidos ao regime de trabalho forçado.
A hegemonia que o Estado conquistou sobre os índios após a expulsão dos jesuítas deu lugar a um processo de perda de visibilidade indígena que só começou a ser revertido na segunda metade do século XX, quando, a partir da década de 80, dada à mobilização do povo Tapeba, voltou-se a falar sobre a presença indígena no Ceará. Logo em seguida, já no início da década de 90, foi a vez dos Pitaguary, que começaram a se organizar politicamente para pressionar pela demarcação de sua terra.
Denominação
Pitaguary é a auto-denominação do povo indígena que vive ao pé da serra entre os municípios cearenses de Maracanaú, Pacatuba e Maranguape. Distando aproximadamente 26 Km de Fortaleza, a Terra Indígena (TI) Pitaguary está situada na região metropolitana da capital cearense, tendo em seus arredores uma área caracterizada pela concentração de indústrias e urbanização crescente. Habitada pelos Pitaguary desde há muito, essa terra é socialmente marcada por uma série de acontecimentos que fundam a memória coletiva de seu povo. Foi nela que os “troncos velhos” pereceram, deixando suas “raízes antigas”, assim como é dela que sobrevivem os Pitaguary de hoje.
De origem Tupi, o termo Pitaguary sempre aparece, nos documentos oficiais dos séculos XVII, XVIII e XIX, designando um lugar: uma serra, um sítio ou um terreno. Possivelmente, é um termo derivado de variáveis do nome Potiguara, etnia que teria ocupado extensas terras, já em 1603, na costa cearense. Para o termo “Potiguara” há diversas interpretações e é nelas que se pode perceber a semelhança existente para com a denominação Pitaguary.
Lima Figuerêdo, por exemplo, na obra Índios do Brasil (1939), enumera as variantes de “Potyguaras” como “Pitinguaras” e “Petinguara”. Fernão Cardim, em Tratados de Terra e Gente do Brasil (1939), refere-se aos mesmos grafando sua variante como “Pitiguaras”. Entre essas denominações surgem outras, como “Potiguare”, “Potigoar”, “Pitagoar”, “Pitinguares” e “Petinguares”. Hoje em dia, além da grafia de Pitaguary com “y” no final, são de uso corrente as formas “Pitaguarí” e “Pitaguari”.
História
Em 1665, após os conflitos que envolveram habitantes nativos, portugueses e holandeses no Ceará, os Potiguara formaram um grande aldeamento original cujo nome se conheceria, mais tarde, como Bom Jesus da Aldeia de Parangaba. Grupos menores daí se destacaram e por volta de 1680 constituíram as Aldeias de São Sebastião de Paupina, de onde se originariam mais tarde as aldeias de Caucaia e a Aldeia Nova de Pitaguari.
Também consta nos arquivos que, em 1707 e 1718, os índios de Parangaba receberam, por data de sesmaria, posses de terra na costa da Serra de Sapupara e na Serra de Maranguape, enquanto os índios de Paupina, em 1722, receberam suas terras na Serra de Pacatuba. Um século mais tarde, em 1854, o sítio Pitaguarÿ era registrado como terra de posse indígena, levando o nome de 21 índios e seu líder, Marcos de Souza Cahaiba Arco Verde Camarão. Acredita-se, assim, que os Pitaguary de hoje descendam diretamente da população que se fixou nessa região, compreendendo parte dos municípios de Pacatuba e Maranguape (do qual se originaria mais tarde Maracanaú).
Já em 1863, foram registradas queixas dos índios contra posseiros que tentaram usurpar suas terras. Em complemento às fontes escritas, nas narrativas Pitaguary o contato é representado como sinônimo de invasão e perda de autonomia. Essas histórias revelam, inclusive, que parte das obras hoje encontradas na localidade de Santo Antônio dos Pitaguary, como a igreja e o açude de mesmo nome, foram construídas à custa de trabalho escravo indígena.
No princípio, contam os narradores indígenas, “era tudo um povo só”, “uma só nação”, levada à divisão em face do contato. Esse era o tempo pretérito, onde havia liberdade. Com a chegada dos “ricos fazendeiros” veio, então, o tempo da “escravidão”, em que os índios foram levados a trabalhar na construção de grandes edificações. A escravidão ou o “cativeiro”, que aparece nessas narrativas, tanto quer significar uma prisão, de fato, quanto, simbolicamente, um estado de sujeição coletiva em que há perda de autonomia, ou seja, perda da liberdade de produzir e se reproduzir.
Além dos fazendeiros, a terra indígena Pitaguary sofreu a ocupação do Estado, através de diversas instituições, durante um período consideravelmente extenso. Essa presença marcou profundamente a história da comunidade de Santo Antônio dos Pitaguary. Ao longo de décadas, em toda a região habitada pelos índios, o chefe da Secretaria de Agricultura do Estado do Ceará parece ter figurado como autoridade máxima, sendo posteriormente substituído pelos representantes da Empresa de Pesquisa Agro-pecuária do Ceará e, mais tarde, pela Polícia Militar do Ceará.
Durante grande parte do século passado, os Pitaguary viveram num regime ditado pelos chamados “doutores”, ocupando, no máximo, posições subalternas que lhes eram destinadas nas casas dos chefes ou nas repartições públicas. Foi somente no início deste século que, após mobilização intensa por parte dos moradores, a Polícia Militar do Ceará, juntamente com a sua cavalaria, foi retirada de dentro da área Pitaguary. Paralelamente, outras medidas (como o fechamento do portão que dá acesso à localidade de Santo Antônio e ao açude de mesmo nome) deram continuidade à retomada, por parte dos índios, da terra que lhes cabia e do patrimônio material nela presente. De um modo geral, a retirada da Polícia Militar do Ceará, o fechamento do açude e o fim da comercialização de bebidas alcoólicas dentro da área representou, cada qual, um marco na história recente desse povo.
População
Com uma população de índios, todos falantes do português, os Pitaguary apresentam uma tendência ao crescimento populacional, negando, com isso, a tão propagada idéia do “desaparecimento” indígena no Ceará. A maioria dos habitantes da TI Pitaguary por lá sempre morou, mudando apenas de casa, de terreno ou, no máximo, deslocando-se para espaços circunvizinhos. Isso explica a recorrência de inúmeros cruzamentos familiares e de uma rede de parentesco bastante particular, na qual bem se evidencia a preservação, através de várias gerações, de sobrenomes de famílias como “Ferreira da Silva”, “Marcolino”, “Targino”, “Alves”, “Feitosa” e outros.
Nesse contexto, a auto-identificação indígena tem como pilares o sentimento de uma origem e de uma unidade comum que é baseada nos laços de parentesco e que muitas vezes utiliza como recurso a invocação da memória dos antepassados. Isso fica expresso em falas como “porque minha avó era índia, minha mãe era índia”, “meu avô era índio brabo”, “são raízes antigas”, “aqui tudinho é índio, uma coisa só” e “aqui todo mundo se conhece, porque todo mundo se criou junto”. Em conversas cotidianas, também se observa o sentimento de pertencimento a um espaço comum. Igualmente fortes na sustentação da identificação que os Pitaguary fazem de si, esses pilares definem a idéia de uma comunidade que permanece sobre um território que lhes é deveras específico.
Situação fundiária e localização
Os Pitaguary vivem em localidades diversas, dentre as quais estão o já mencionado Santo Antônio, assim como Olho D’Água, Horto (sob a jurisdição do município de Maracanaú) e Monguba (no município de Pacatuba). Essas localidades estão dentro da Terra Indígena Pitaguary.
As localidades aqui mencionadas variam bastante quanto à sua caracterização, à densidade demográfica e o grau de atenção que têm dentro e fora da Terra Indígena. Santo Antônio talvez seja a comunidade de maior visibilidade para os Pitaguary. Isso se deve ao fato de que, além da paisagem exuberante de que dispõe, é o local que concentra a maior parte dos lugares de memória desse povo. Também foi lá que se deu o pontapé inicial para a mobilização em torno da demarcação da terra Pitaguary.
Santo Antônio conta ainda com amplo patrimônio material erguido ao longo dos anos de ocupação estatal. A casa de apoio, o prédio comunitário, a vacaria e outras construções menores são exemplos do que ficou dessa ocupação. Afora isso, são marcos locais a pequena igreja de Santo Antônio, que atrai inúmeros romeiros todos os anos, e o açude, razão de muitos conflitos entre aqueles que defenderam a proibição da entrada de banhistas que invadiam a área de sexta a domingo e aqueles que advogavam pela passagem livre dos mesmos, geralmente representando o interesse de comerciantes locais que lucravam com a venda de bebidas nos finais de semana.
Dada a extensão de sua área verde, em conjunto com a existência de formações rochosas, de rios sazonais e outros recursos naturais, Santo Antônio apresenta imenso potencial, ainda não explorado, para um turismo de caráter ecológico e comunitário. Por outro lado, é também nesta localidade, mais precisamente na parte denominada de Aldeia Nova, que se encontram algumas das moradias Pitaguary mais precárias. A Aldeia Nova continua a sofrer com parco abastecimento de água, o que leva a um sem número de dificuldades, especialmente no que diz respeito à saúde desses moradores.
As localidades do Olho D’Água e Horto, por estarem mais próximas do centro comercial de Maracanaú, apresentam uma paisagem que as difere consideravelmente do Santo Antônio. Parte dessas localidades são também áreas de passagem para municípios vizinhos (como Pacatuba e Maranguape), o que significa dizer que estão mais bem servidas no que se refere a opções de comércio e transporte. Ainda assim, na ponte que liga Olho D’Água à estrada que dá acesso ao Santo Antônio, há uma área desde há muito estigmatizada como “favela”, onde uma parte da população local enfrenta dificuldades que vão desde o alto índice de criminalidade, nos arredores da estrada, até a falta de saneamento básico e a poluição do rio à beira do qual vivem.
Monguba já apresenta um perfil bastante distinto. Fora da jurisdição de Maracanaú, em direção ao centro de Pacatuba, a localidade de Monguba, embora próxima à auto-estrada e tendo como limite uma linha da antiga Rede Ferroviária Federal, está em grande parte encravada no pé da serra, cercada aos fundos pelo verde da mata serrana. Além disso, Monguba destaca-se como um dos lugares de maior atividade cultural dentro da área indígena. Os Pitaguary de Monguba, como gostam de ser chamados, formam um grupo de presença marcante em eventos dentro e fora de sua área. Também dispõem de uma casa de apoio, onde se realizam as reuniões do conselho local e as atividades da escola. Afora tais características, vale ressaltar que a existência de uma tradição religiosa de matriz afro-índio-brasileira faz de vários moradores dessa localidade exímios artistas, alguns dos quais se dedicam, entre outras modalidades, à percussão, à dança e ao teatro. Em adição, percebe-se ainda o valor dado às pinturas corporais e algumas práticas esportivas como o vôlei e o futebol.
Organização política
No início dos anos 90, quando um pequeno grupo de índios Pitaguary começou a pressionar pela demarcação de sua terra, foi criado o Conselho Indígena Pitaguary – COIPY. Com o passar do tempo, as reuniões quinzenais, que costumavam se realizar numa palhoça construída ao lado da casa do cacique, passaram a acontecer num galpão, no centro da localidade de Santo Antônio, onde anteriormente funcionava parte da Empresa de Pesquisa Agro-pecuária do Ceará – EPACE. Ainda no princípio, o índio Daniel Araújo desenvolvia tanto a função de cacique quanto a de presidente do conselho. Mais tarde, porém, o número de pessoas engajadas na “luta” pela conquista dos direitos indígenas foi crescendo e, como resultado, novos espaços de organização política foram criados, surgindo daí o Conselho de Articulação Indígena Pitaguary – CAINPY e o Conselho Indígena Pitaguary de Monguba – COIPYM.
Cada um destes conselhos se volta para uma região específica dentro da TI Pitaguary e é composto por um presidente, um vice-presidente, um tesoureiro e outros representantes eleitos em reuniões. No ano de 2005, uma quarta organização foi criada, a Associação dos Produtores Indígenas Pitaguary – APIPY, oriunda da necessidade de se pensar a questão da produtividade dentro da área indígena, abrangendo assim tanto Santo Antônio quanto Horto/Olho D’Água e Monguba. Afora isso, existe ainda o Conselho Local de Saúde, com representantes das três comunidades.
À frente de cada uma dessas organizações, as lideranças Pitaguary têm estado cada vez mais envolvidas com a implementação de políticas públicas voltadas para a questão indígena. O dia-a-dia desses representantes inclui negociações com o poder público local, com organizações governamentais e não-governamentais, além do constante debate com lideranças de outros povos indígenas no Ceará. Ao contrário do que ocorria no início dos anos 90, essas lideranças hoje interagem com um público de caráter bastante amplo, estando freqüentemente presentes em eventos de alcance nacional.
O perfil das lideranças indígenas Pitaguary, por sua vez, varia consideravelmente. Há pessoas usualmente denominadas de líderes “tradicionais”, o que aqui inclui principalmente a figura do cacique e do pajé, assim como há as chamadas “jovens lideranças”, que em geral vivenciaram a experiência da educação formal, seja através do programa de “magistério indígena” de nível médio, seja através da realização de cursos superiores em instituições como a Universidade Vale do Acaraú – UVA e a Universidade Federal do Ceará – UFC.
Memória, cultura e tradição
Há vários lugares de memória na área Pitaguary. Entre esses lugares destaca-se a figura da “mangueira centenária”, da “senzala dos escravos” e da gruta ou do “buraco” de Santo Antônio, para citar apenas alguns. A mangueira é constantemente identificada com a figura da “mãe natureza”, que protege, dá paz e conforto. Ela está no centro das atenções, pois, segundo contam os narradores indígenas, “naquele pé de mangueira, exatamente lá, morreu muito índio enforcado e matado de fome”.
A mangueira é símbolo de um tempo pretérito, mas também de um momento vivido no presente. Ela é a lembrança do que se passou ao mesmo tempo em que se torna cenário de atividades contemporâneas de suma importância. Por exemplo, é sob a sombra da “mangueira sagrada” que, no dia 12 de junho de cada ano, os Pitaguary realizam um evento tradicional, cujo maior objetivo é apresentar o Toré para a própria comunidade e para visitantes que vêm de fora da área indígena.
O Toré Pitaguary é uma dança que se inicia com os participantes dando as mãos e formando um grande círculo, como numa "corrente" de oração. Aqueles que dançam seguem os comandos dos chamados “puxadores” de Toré, geralmente o cacique ou o pajé. O canto é acompanhado pelo som das maracás e muitas vezes conta com a batida de tambores que ficam no centro da roda. É nesse momento que, segundo contam os narradores, a mangueira chora. Dizem que o clamor dos índios escravizados no passado é tão forte que, ao “brincar o Toré”, debaixo da árvore chove. Para o antigo pajé Pitaguary, seu Zé Filismino, a chuva nada mais é do que o choro da mangueira.
O ritual se completa com a ingestão de uma bebida, preparada à base de frutas nativas da região, e servida para todos os membros num recipiente único (uma cabaça) que deve sempre girar em sentido horário. Os Pitaguary não têm o costume de experimentar dessa bebida, a “atanhanga”, em momentos que não sejam o da dança, indicando, com isso, que se trata de uma bebida de uso ritual.
Além do Toré, as narrativas orais constituem um importante elemento da cultura Pitaguary. Nelas, é comum encontrar referências à idéia do contato entre índios e não-índios. Esse momento é representado como uma descoberta fundada sobre a violência e seguida de aprisionamento. Um dos personagens-chave de muitas histórias é o “velho Miguel Barão”, rico fazendeiro que teria usurpado larga faixa de terra pertencente aos índios. O “velho Miguel Barão” personifica a invasão e o processo de escravização de que tanto falam, em suas narrativas, os Pitaguary.
Há também as crenças nos chamados “seres encantados”, presentes nos relatos míticos que têm como personagem principal a “caipora”. A caipora é símbolo da afirmação de um saber indígena sobre a “mata”. Histórias relacionadas a ela aparecem, freqüentemente, quando o assunto é a caça. Ao sair para caçar, dizem alguns mais velhos, “o pessoal vê gemido, vê pancada, vê chiado, fica ouvindo coisa que não vê”. Por que? Porque “ali tem encanto”, “caipora é encantado”. Ao contar essa história, alguns utilizam a referência com o artigo definido “a” (a caipora), outros a colocam no masculino, com o artigo "o", fazendo concordância com a figura do “caboco” ou “caboquinho”.
Assim como o Toré, que de “brincadeira” passou à “arma de guerra”, as narrativas, além do seu caráter lúdico e pedagógico, passaram a ser instrumentos eficazes na demarcação da(s) singularidade(s) do povo Pitaguary, uma singularidade que se quer dizer histórica, política e cultural. Assim, a atividade de rememorar e narrar hoje tem uma importância que extrapola o âmbito da socialização interna desse povo.
Aspectos sócio-econômicos
Além da caça e a pesca, que complementam parte da dieta alimentar de algumas poucas famílias, a sobrevivência dos Pitaguary é garantida a partir do extrativismo vegetal e mineral, do artesanato, da agricultura familiar, além de um pequeno número de empregos formais, dentro da área indígena, e informais, na zona urbana de Maracanaú e Fortaleza. A agricultura de subsistência, com plantio de mandioca, macaxeira, milho, feijão e jerimum, é praticada por algumas famílias, sendo entretanto inteiramente dependente da estação chuvosa. Já a atividade artesanal engloba um grande número de pessoas, mas tem se mostrado vulnerável aos riscos do extrativismo desmesurado e à sede de lucro dos atravessadores.
Os trabalhos artesanais são feitos a partir de matéria-prima da região. A produção local inclui desde a confecção de colares e trajes típicos, feitos da fibra do tucum e outros materiais, até a fabricação de cerâmica pintada à mão com com diversos tipos de barro. Figurando como o produto artesanal mais popular entre os Pitaguary, os colares são criados a partir de uma infinidade de sementes nativas, tais quais o jiriquiti, a mucunã, a linhaça, o mulungu, a lágrima de Nossa Senhora, o sabonete, o coco-babão e o coco-babaçu. Afora trabalhos manuais mais comuns como o bordado, o fuxico e o crochê, nota-se ainda a produção de cestos e sacolas de palha, além de adornos utilizados em eventos tradicionais, muitos dos quais são feitos de fibras vegetais e penas de aves como a galinha d’água, o anum-branco e o socó-boi.
Quanto às atividades econômicas de extrativismo, as mais comuns são o corte de madeira e a mineração de areia lavada, fonte de renda de muitas famílias nas localidades de Santo Antônio, Horto e Olho D’Água. Todavia, dada a degradação ambiental resultante dessas práticas, as lideranças locais têm demonstrado uma preocupação constante no sentido de se buscar outras formas de geração de emprego e renda dentro da área. Essa necessidade fica ainda mais evidente quando se observa que o corte de madeira acarretou no desmatamento de áreas de tamanho significativo, assim como a retirada de areia contínua provocou o aparecimento de cavidades de profundidade variável. Como conseqüência, a modificação da mata ciliar acabou por causar o assoreamento de alguns rios, com a morte, inclusive, de árvores de inestimável valor medicinal para os Pitaguary.
Os empregos formais estão reduzidos aos postos de trabalho advindos do processo de implementação de políticas públicas voltadas para a saúde e a educação indígena. Há, portanto, vários índios e índias nos cargos de professores das escolas diferenciadas, além de funcionários dos postos de saúde, como agentes de saúde, assistentes de enfermagem, zeladores e vigilantes.
Afora isso, nota-se o investimento de algumas famílias na criação de animais de pequeno porte, como a galinha caipira, a cabra e o porco. De um modo geral, num cenário de poucas alternativas econômicas, as lideranças Pitaguary têm tentado, a partir dos recursos financeiros disponíveis e com o apoio de órgãos governamentais, desenvolver pequenos projetos de auto-sustentação, como a criação de gado para leite, as hortas comunitárias e a agricultura familiar irrigada.
Assistência e políticas públicas
Em 1993, ainda no início da mobilização pela demarcação da terra indígena Pitaguary, a presença desse povo foi oficialmente reconhecida por um projeto de lei da Câmara Municipal de Maracanaú. A doação de 107 hectares de terra que daí resultou constituiu uma das razões pelas quais várias famílias indígenas voltaram para dentro da área, fixando-se a partir de 1997 na localidade designada de Aldeia Nova dos Pitaguary. Foi nesse mesmo ano que o Grupo de Trabalho – GT da Funai foi enviado para dar início aos estudos de identificação e delimitação da TI Pitaguary.
Em 1998, as lideranças locais já falavam da necessidade de se equipar uma escola que pudesse funcionar como espaço de construção de um saber especializado na cultura local, desenvolvendo para isso um plano educacional que reconhecesse o modo de vida, aqui incluindo a história e a memória, do povo Pitaguary. Naquela época, o cacique Pitaguary lamentava o fato de que não existia “colégio pras crianças” porque não existia “uma escola indígena mesmo”, isto é, “professores índios para ensinar os índios”. Além disso, o cacique enumerava a falta de água, posto de saúde e telefone na área.
Já em 1999, com a pequena doação de uma ONG estrangeira, foi construída a primeira escola indígena Pitaguary, localizada na Aldeia Nova. Deu-se a ela o nome de “Cuaba”. Entretanto, sua edificação foi mais tarde condenada e, por temor aos riscos de um desabamento, a escola acabou sendo desativada. O malogro dessa experiência afetou inúmeras crianças e professores indígenas que, voluntariamente, deslocavam-se a pé ou de bicicleta todos os dias, às vezes por cerca de mais de uma hora, para tornar possível o “sonho” de uma formação diferenciada. O que estava em jogo, na realidade, era a criação de um espaço educacional em que as crianças da localidade, ao invés de marginalizadas, fossem valorizadas.
Enquanto o ideal de uma escola indígena diferenciada sofria tal abalo, a Fundação Nacional de Saúde – Funasa começava a se fazer presente dentro da TI Pitaguary. Além da seleção para o preenchimento de cargos destinados a agentes de saúde indígena, em 2000 realizou-se o cadastramento de mais de setecentos índios Pitaguary. Logo em seguida, em 2001, teve início o Curso de Magistério Indígena Diferenciado, Universidade Federal do Ceará – UFC em parceria com a FUNAI, o qual contou com a participação de diversos povos indígenas do Ceará. Esse curso, apesar de duramente criticado por lideranças Pitaguary, parece ter sido, por outro lado, diretamente responsável por um processo de interação contínua entre jovens de diversos povos indígenas no Ceará. Foi também em 2001 que se inaugurou a escola indígena do Horto, chamada de “Chuí”. Em 2002, embora sem espaço próprio, outra escola indígena, a Itaara, foi reconhecida.
No mesmo ano de 2002, a partir da mobilização dos professores Pitaguary, a escola municipal da localidade de Santo Antônio foi transformada em Escola Municipal Indígena do Povo Pitaguari. Para garantir o funcionamento dela, um convênio entre estado e município foi assinado, com o primeiro se responsabilizando pelo pagamento dos professores e o segundo se encarregando dos funcionários. Nessas escolas, além da educação infantil e o ensino fundamental, tem se tentado promover, ainda que enfrentado inúmeras dificuldades, a educação de jovens e adultos.
Em 2005, um novo cadastramento da Funasa já indicava um aumento da população Pitaguary para um o número de 2.144 pessoas. Até então, o pólo base de saúde do Olho D’Água continuava a funcionar em condições precárias, expondo pacientes e profissionais de saúde a diversos riscos de contaminação. Um novo pólo base foi assim construído, dessa vez dentro da área de Santo Antônio dos Pitaguary, mas devido a uma série de divergências de cunho político e administrativo, a sua estrutura ficou sem utilização até meados de 2006.
De um modo geral, as equipes de saúde que trabalham junto aos Pitaguary não dispõem de profissionais suficientes para atender, simultaneamente, a população indígena e não-indígena, o que vem ocorrendo no caso do posto de saúde do Olho D’Água. Além disso, dada à a instabilidade que esses profissionais enfrentam no que diz respeito aos contratos de trabalho que assinam com as prefeituras locais, os Pitaguary acabam sofrendo com a alta rotatividade de pessoas que ocupam posições de extrema importância dentro dos postos de saúde.
Afora um médico e sua esposa enfermeira que se dedicaram ao longo de mais de seis anos à saúde dos Pitaguary, e com quem esses índios desenvolveram uma relação de empatia e confiança, a maior parte dos demais profissionais de saúde não passaram mais do que alguns meses na área Pitaguary. Essa descontinuidade na relação entre os profissionais de saúde e a população atendida tem se apresentado como um dos maiores desafios para a saúde indígena Pitaguary.
No que diz respeito à presença da Funai, o que se observa é que, devido à precariedade da estrutura e do reduzido número de servidores do Núcleo de Apoio Local - NAL Ceará, esta instituição tem se mantido verdadeiramente ausente da área Pitaguary. Em contraste, nota-se a presença constante de representantes da Prefeitura de Maracanaú e, mais esporadicamente, da Prefeitura de Pacatuba. Em anos recentes, a prefeitura de Pacatuba se utilizou da presença indígena Pitaguary para justificar ajuda financeira destinada à implementação de um Centro de Referência da Assistência Social – CRAS em seu município. No entanto, segundo lideranças locais, esse Centro de Referência nunca atendeu às demandas da população indígena e hoje figura como mais um exemplo da relação autoritária que o poder público às vezes assume em relação à população indígena de seu município.
Em 2006, a Prefeitura de Maracanaú também decidiu trazer, para a área de Santo Antônio dos Pitaguary, um Centro de Referência da Assistência Social – CRAS específico para a população indígena. Funcionando em duas salas da casa de apoio local, o CRAS Pitaguary pretende prestar serviços de atenção básica a famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade, além de fazer o controle dos benefícios advindos de políticas assistenciais dentro da área. Dado seu pouco tempo de funcionamento, o CRAS de Santo Antônio é um experimento ainda em fase de implantação.
Lado a lado com as políticas públicas na área da saúde, educação e assistência social, os Pitaguary contam ainda com recursos financeiros oriundos de duas indenizações pagas às suas comunidades. Isso se deve ao fato de que, em 1999, 2003 e 2004, ocorreu a passagem de linhas de transmissão de eletricidade dentro da área Pitaguary. Da instalação da primeira e segunda linhas, de propriedade da Companhia Hidro-Elétrica do São Francisco – CHESF, resultou o pagamento de uma indenização no total de 150 mil reais. Já em 2004, com a chegada de mais duas linhas de propriedade do Sistema Transmissão Nordeste – STN, obteve-se o pagamento de nova indenização, dessa vez no valor de 600 mil reais, com acréscimo de uma taxa anual de 75 mil reais durante um período de cinco anos.
Esses recursos já estão oficialmente disponíveis para uso do povo Pitaguary, no entanto a burocracia para a liberação de parte desse montante tem sido tão grande que, no dia 13 de setembro de 2006, uma comitiva de 40 índios decidiu ocupar a Funai até que, em reunião com o seu administrador local, ficasse acordada uma alternativa para uso imediato desse recurso. As lideranças locais têm consciência de que a passagem das linhas de transmissão dentro da TI Pitaguary acarretou na diminuição de sua terra, a qual já é considerada de tamanho insuficiente. Todavia, existe aí a esperança de que, através das indenizações pagas, essa população possa, enfim, encontrar os meios para financiar projetos produtivos que transformem a situação de pobreza na qual muitos dos seus vivem.
Notas sobre as fontes
Entre vários outros povos, os Pitaguary são mencionados no clássico “Os Aborígenes do Ceará” (1963), de Carlos Studart Filho. Referências a eles também aparecem em compilações tais quais como “Sesmarias Cearenses” (1970), publicação da Secretaria de Cultura do Ceará, e “Documentos para a História Indígena no Nordeste” (1994), volume organizado por Maria Sylvia Porto Alegre, Marlene da Silva Mariz e Beatriz Góis Dantas.
Há uma série de informações e relatórios elaborados por técnicos de órgãos governamentais como parte do processo de reconhecimento oficial dos Pitaguary. Nesse conjunto figuram trabalhos como “Abordagem Histórica com finalidade para suporte ao reconhecimento étnico do Grupo Indígena Pitaguary” (1998), de Soraya Campos de Almeida Assis, e “Relatório de reconhecimento étnico dos índios Pitaguary e de identificação, delimitação e levantamento fundiário da terra indígena Pitaguary” (1999), de Maria de Fátima Brito. Em anos recentes, outros estudos de caráter técnico foram desenvolvidos, dentre os quais se pode mencionar o “Diagnóstico Ambiental Preliminar da Terra Indígena Pitaguary” (2003), de M. Ribeiro, e o “Estudo Etno-ecológico Pitaguary” (2005), de Juliana Noleto, Noara Pimentel e Flávio Valerte.
Entre os textos etnográficos mais relevantes, compreensivos e abrangentes estão aqueles escritos pela autora deste verbete, precisamente em trabalhos como “Índios Pitaguary: um estudo sobre história, cultura e identidade” (1998), monografia de bacharelado defendida no Departamento de Ciências Sociais da UFC, e “Arte de contar, exercício de rememorar: as narrativas dos índios Pitaguary” (2002), dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. Dessas produções surgiram as publicações “História, Memória e Identidade entre os Índios Pitaguary” (2002), “Memória e Narração” (2002) e “Da Arte para o Exercício: Uma Introdução às Narrativas Pitaguary” (2002). Existem ainda as dissertações de mestrado “Aldeia! Aldeia! A Formação Histórica do Grupo Indígena Pitaguary e o Ritual do Toré”, de Eloi dos Santos Magalhães, e “As Crianças e Suas Relações com a ‘Escola Diferenciada’ dos Pitaguary”, de Flávia Alves de Souza, ambas defendidas em Agosto de 2007, nos Programas de Pós-Graduação em Sociologia e Educação da UFC. Além desses trabalhos, novas dissertações de mestrado sobre os Pitaguary estão sendo desenvolvidas por pesquisadores vinculados a várias institutições no Ceará.
Fontes de informação
- ASSIS, Soraya Campos de Almeida. Abordagem Histórica com finalidade para suporte ao reconhecimento étnico do Grupo Indígena Pitaguary. Brasília: FUNAI/DAF/DEID, 1998.
- BRITO, Maria de Fátima. Relatório de reconhecimento étnico dos índios Pitaguary e de identificação, delimitação e levantamento fundiário da terra indígena Pitaguary, 1999. GT PORT. 1093 / PRS / FUNAI / 97.
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Cartas de Sesmaria e Registros de Terra
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- Data: 13/12/1842 Página: 324 – Conjunto CE1.5: Compilação das Leis Provinciais do Ceará. Livro: T.1 Compilação das Leis Provinciais do Ceará, 1835-1846.
- Data: 04/09/1854 – Livro; Registro de Terras da Freguezia de São Sebastião de Maranguape, 1854-1858.
- Data: 04/07/1863 – Conjunto CE1.9: Ministério da Agricultura. Livro: L3 Correspondências dos Ministérios do Império ao Presidente da Província, 1863-1864.
- Data: 02/01/1864 Página: 63-65 – Conjunto CE1.18: Secretaria do Governo da Província do Ceará – Ofícios ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Livro: L144
- Registro dos Ofícios da Presidência da Província dirigidos ao Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, 1861-1872.