Pankararu
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- MG, PE, SP 8184 (Siasi/Sesai, 2014)
- Família linguística
A exemplo de quase todos os grupos indígenas do Nordeste brasileiro, a história Pankararu remete a políticas públicas e ação missionária implementadas desde o início da colonização portuguesa, que incluíam deslocamentos e aldeamentos forçados, impondo a convivência e a posterior indiferenciação de etnias diversas na região. Seus direitos fundiários não foram respeitados no reconhecimento oficial da Terra Indígena Pankararu. Apenas em 1999, depois de anos de reivindicação, o processo de ampliação dessa terra foi iniciado, mas ainda não está concluído. Assim como os outros povos do Nordeste, o principal emblema da cultura Pankararu consiste no sistema ritual do Toré e no culto aos Encantados a ele associado.
Contato direto
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Localização e histórico da TI
A Terra Indígena Pankararu, homologada em 1987, está localizada entre os atuais municípios de Petrolândia, Itaparica e Tacaratu, no sertão pernambucano, próximo ao rio São Francisco.
Sua forma é a de um quadrado perfeito e corresponde à memória que os Pankararu mantêm da doação imperial de uma sesmaria à missão religiosa que aldeou seus antepassados durante os séculos XVIII e XIX. A única notícia oficial da presença de um aldeamento religioso no local, do qual não há o registro de fundação, diz respeito à sua extinção, em 1878.
Desde os primeiros registros do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), na década de 1930, as terras reivindicadas pelos Pankararu correspondem a "uma légua em quadra", delimitada em 14.290 hectares. Quando da primeira intervenção local do órgão indigenista, em 1940, no entanto, os limites da terra reivindicada não foram respeitados. No trabalho de demarcação, o funcionário responsável reduziu aquele quadrado em meia légua nos seus eixos leste e norte, transformando os mais de 14.000 hectares iniciais nos 8.100 hectares oficialmente reconhecidos.
Os Pankararu intensificaram então os conflitos fundiários com posseiros não-indígenas que habitavam a porção sudoeste da área reconhecida. Ambos passam a reivindicar a decisão da justiça no reconhecimento de seus direitos e a situação permanece nessa dualidade, pontuada por conflitos, até 1984, quando é organizado um Grupo de Trabalho (GT) da Funai para realizar uma revisão da área Pankararu.
O relatório resultante do GT de 1984 propõe ao órgão corrigir a diminuição realizada na área pretendida em 1940, abarcando todo o quadrado maior, com exceção de um pequeno trecho na sua face leste, na qual foi feito um corte para deixar de fora a cidade de Tacaratu, elevando o tamanho para 14.294 hectares. Com relação à área em litígio no vértice sudoeste, o GT realiza o levantamento fundiário das posses, com fim à desapropriação dos "invasores".
Essa proposta, no entanto, é recusada no Ministério da Agricultura e, num acordo com as lideranças indígenas (cacique, pajé, presidente da associação comunitária), troca-se o acréscimo da área ao norte e ao leste pela promessa de imediato "desintrusamento" do antigo trecho em litígio. Em 1987, a mesma área demarcada pelo SPI é então homologada, agora pela Funai, sem que a promessa de "desintrusamento" fosse cumprida. Apenas em 1993, por força de uma ação civil pública movida pela Procuradoria da República contra a União, Funai e Incra, a Justiça decide-se pela retirada de doze famílias de posseiros, identificados como suas principais lideranças, na tentativa de viabilizar as demais retiradas. Esses posseiros, no entanto, recorrem e ganham a suspensão da decisão, voltando a situação à mesma indefinição anterior.
Complexificando esse quadro, lideranças do grupo de posseiros argumentam existirem famílias descendentes de seus ancestrais casadas com indivíduos Pankararu e hoje consideradas indígenas, da mesma forma que existiriam muitas famílias de posseiros descendentes de índios, mais frequentemente de índias, casadas com não-índios e transferidas para fora do que hoje são os limites da área indígena.
Em 1999, a área restante à extensão homologada foi submetida a um novo processo de identificação sob o nome de Terra Indígena Entre Serras e em 2007 foi homologada.
Ambiente e economia
Um pequeno brejo, formado pela vaga aberta em meio aos últimos contrafortes da Serra de Tacaratu (mais conhecida pela população local como Serra Grande), ganha a forma de um anfiteatro, com sua cabeceira à leste abrindo-se no sentido oeste em direção às margens do São Francisco. Este pequeno "oásis verdejante", que serviu para a localização do aldeamento de Brejo dos Padres, é um ponto avançado do agreste em plena área sertaneja, contrastante com a paisagem em torno, marcada por uma pecuária ultra-extensiva e articulada, até meados do século XX, a uma agricultura de subsistência em geral pouco expressiva.
As mudanças de infra-estrutura decorrentes da instalação das UHE de Paulo Afonso e Itaparica na década de 1980 e mesmo antes, quando das frustradas tentativas de irrigação das margens do São Francisco pelo DNOCS na década de 1930, atenuam o contraste entre o Brejo e seus arredores, onde se sucedem cidades e áreas de irrigação.
Na seção central da Terra Indígena encontramos uma terra bastante úmida e escura, alimentada por quatro fontes d'água que nascem na cabeceira dos contrafortes e que, antes das obras de canalização realizadas ao longo da década de 1990, formavam um pequeno rio que escorria até a estreita saída desse anfiteatro, procurando desembocar, quando a seca permitia, no São Francisco. Uma região rica em fruteiras, em especial as mangueiras, goiabeiras e pinhas, que podem complementar a renda familiar de seus moradores em épocas menos secas. Como a qualidade do solo permite plantar de tudo, desde o milho e os diferentes tipos de feijão até a cana, introduzida ali em inícios do século XIX, e que por muito tempo alimentou pequenos engenhos de índios, não-índios e do SPI na fabricação de "mel", garapa e rapadura.
Ultrapassando esses contrafortes, a paisagem muda bastante. Não existe mais a proteção natural que permite a concentração e precipitação das poucas nuvens que chegam do litoral, e a secura quase permanente torna a terra branca, arenosa, quando não dura e pedregosa. Na seção sul, a encosta da serra desce de uma única vez, em curvas de nível largas que formam pastos naturais. Duas fontes d'água hidratam um estreito trecho dessa seção, umedecendo a pequena depressão que depois volta a elevar-se, seguindo três ou quatro quilômetros secos até as bordas da área. Nesta parte regada, cerca de um terço de toda a seção, planta-se feijão e milho, ficando os dois terços de encostas restantes dedicados à mandioca. Sua importância para os Pankararu está no papel que essa região desempenha, pois além de reserva de madeira, é também onde floresce o umbu, fruta natural da região, quase um símbolo étnico, central na mitologia de suas festas.
Do lado externo à área homologada, ao norte dos contrafortes, a serra não desce de uma única vez, mas desenha degraus e muitas valas que chegando ao seu ponto mais baixo voltam a subir, formando uma espécie de estreita "barriga" antes de dar continuidade ao contraforte. A forma acidentada dessa seção dificulta muito a agricultura, tornando-a plenamente utilizável apenas para a mandioca, ainda que seus moradores nunca percam a oportunidade de plantar os tradicionais feijão e milho. Por outro lado, torna-a rica em estreitas e altas formações rochosas, às vezes de aspecto imponente, conhecidas como "serrotes".
Nesta seção não há nenhuma fonte d'água natural, o que faz com que seus moradores dependam quase exclusivamente das chuvas, que são complementadas, com dificuldade, por caminhões-pipa que eles mesmos pagam ou que, próximo às eleições, são fornecidos pelo poder público. Na ausência desses dois recursos, o cotidiano é feito das "carradas" de potes d'água entre a serra e o Brejo, no lombo do jegue ou na cabeça de mulheres e crianças, que assim começam os seus serviços matinais às 4:00 e os terminam às 7:00, depois de duas viagens. Tendo em conta o desenho jurídico, essa seção da terra Pankararu fica em grande parte fora da área homologada em 1987 e dentro da identificada em 1984.
As aldeias e as cidades
Cortando essas aldeias e ligando todas entre si, desce o pequeno riacho que nasce na cabeceira do Brejo e o percorre até a cidade de Itaparica, enquanto paralelo a ele sobe a estrada que vem de Itaparica, “cidade livre” e Petrolândia, e que termina no centro quase exato da área indígena. Por ser cortada pela maior e mais movimentada via de acesso à área, é nessa seção que se concentram as residências em forma de arruamento, com pouco espaço para plantio constante e apenas o suficiente para pequenas hortas e para as antigas áreas de pomar, onde floresce grande número de fruteiras que no verão complementam a renda das famílias. Associado a essa falta de terrenos de plantio, é nessa seção que mora a grande maioria dos índios que trabalham nas cidades próximas ou como "meeiros", diaristas ou rendeiros de outros índios, dos posseiros, ou de proprietários vizinhos à área.
Na seção sul, as terras são usadas na maior parte para pasto, mas existem trechos, em especial os que ficam próximos à concentração das fontes nascentes (e onde estão os mais repartidos e povoados: Tapera, Brejinho dos Correias e Carrapateira) que têm se mostrado bons para o plantio, atraindo índios das outras seções. Essa região tem uma ocupação recente, que remete no máximo à década de 1940, servindo hoje como área de expansão.
A seção norte é composta por um caótico roteiro das curvas de nível de um trecho encravado num estreito vale, mas também e ainda que com uma área equivalente às outras duas, possui quase o dobro de repartições, mas uma densidade menor que a seção central.
A instalação do posto indígena em 1940 deu-se na seção central e ecologicamente privilegiada, o Brejo, acrescentando aos seus atributos ecológicos o de sede do órgão tutelar e, progressivamente, o de sede política, até então inexistente. Isso, por sua vez, tornou-a a seção privilegiada na ordem de surgimento e concentração dos prédios públicos, basicamente escolas e farmácias, assim como da assistência mais próxima e constante da ação tutelar.
As outras seções também vieram a ser atendidas com prédios públicos e serviço de assistência, mas ficaram sempre em segundo plano na ordem das implantações e no número de estabelecimentos e de funcionários. Essa desigualdade de recursos nas diferentes seções, até mesmo em função da diferença de concentração populacional, durante muito tempo não ofendeu a paridade relativa entre as aldeias distribuídas por todo o "círculo". No entanto, na década de 1980, uma série de mudanças regionais afetaram esse equilíbrio local, acentuando as diferenças.
Novos recursos
Nos anos 1980, uma série de recursos e financiamentos especiais passaram a afluir à região pela iniciativa governamental, interessada em minimizar a oposição à construção da barragem da UHE Itaparica, em especial através da atuação da EMATER. Foram realizados relatórios de avaliação do impacto social das barragens que deram maior visibilidade aos Pankararu e a outros grupos indígenas próximos, em especial os Tuxá. Além disso, a imprensa regional dirigia a atenção para o local, marcado pelas paralisações nas obras da barragem realizadas pelos sindicatos. Tudo isso fez com que a região ganhasse interesse também para a ação de órgãos assistencialistas, como a LBA e diferentes tipos de agências não-governamentais, que iam do Lions Club ao Cimi (Conselho Indigenista Missionário).
Essa mudança de conjuntura possibilitou à Funai propor uma série de projetos econômicos e culturais que então eram canalizados para os postos indígenas da região e que tinham na origem de seus recursos programas governamentais mais amplos, como o Programa de Integração Nacional (PIN), o Programa de Apoio ao Pequeno Produtor (PAPP), o Polonoroeste etc. Somam-se a essas ainda as mudanças que atingiram o campo indigenista no Brasil na década de 1990 e conferiram à região Nordeste uma nova visibilidade, atestada pela atenção das antigas agências ou pela criação de novas, na própria região.
Em todos esses casos, no entanto, o ponto de referência para a atuação dentro da área indígena Pankararu é sempre o Brejo dos Padres, local de maior concentração populacional e onde se encontra localizado o posto indígena. Transporte fácil, água encanada e distribuída por caixas d'água públicas, luz gratuita e recursos sociais variados, como creche, casa de farinha coletiva, centro de produção artesanal, clube e um pequeno caminhão, todos surgidos ao longo da década de 1980, marcam hoje uma diferença grande entre o "Brejo" e as outras duas seções, em especial no que diz respeito à seção norte, onde a falta desses recursos se soma às desvantagens de suas geografias jurídica e ecológica.
Boa parte desses recursos surgidos na década de 90 não têm origem nem são mediados pela Funai, mas são alcançados diretamente pelas lideranças indígenas, em mais uma das variações do que chamamos de “busca dos direitos”. Com a ampliação do número de agências governamentais e não-governamentais na região foi possível ampliar ainda mais a noção de “direitos” e o campo de atuação das “lideranças peregrinas” [ver item “História”]. As viagens que passam a ser feitas, então, apesar de estarem sempre vinculadas ao conflito fundiário, não buscam mais exclusivamente soluções fundiárias, nem apenas os empregos na Funai, mas também o apoio de outras agências na forma de projetos de desenvolvimento comunitário, ou de auxílio a "pequenos produtores". Um número relativamente grande de lideranças passa a participar das viagens em busca dos novos “direitos”.
Algumas mudanças se impuseram com o trânsito entre essas novas agências de assistência. Uma delas, e talvez uma das mais importantes, foi o surgimento das “associações comunitárias”, que passaram a ser a interface legal nas transações de transferência de verbas e de realização de convênios entre agências de apoio e grupos indígenas.
História
Desde o início da década de 1920, os Pankararu, por meio de suas relações com os Fulni-ô, haviam estabelecido contatos com o Padre Alfredo Dâmaso – que passaria a apoiá-los em reivindicações fundiárias desde os primeiros contatos, recomendando-os a autoridades militares de Paulo Afonso (BA), que, nessa época, era a principal cidade das redondezas, onde os Pankararu freqüentavam a feira semanal.
Mas foi na cidade de Águas Belas, em 1935, que o pesquisador Carlos Estevão de Oliveira toma contato com um Pankararu e em seguida faz sua primeira viagem ao Brejo dos Padres. Dois anos depois, profere palestras divulgando a existência do grupo. Então, o Ministério da Guerra, ao qual o SPI estava subordinado, envia ao local um funcionário para uma primeira avaliação. Os trabalhos não teriam continuidade até que, três anos mais tarde, depois transferência do SPI para o MAIC (Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio), o órgão instalasse um posto indígena no Brejo dos Padres.
Nessa época, já existia um circuito de trocas entre comunidades hoje reconhecidas como indígenas que poderíamos descrever segundo dois modelos, as viagens rituais e de fuga, que parecem ser desdobramentos de um padrão de mobilidade ainda anterior. As viagens rituais consistiam no trânsito temporário de pessoas e famílias entre as comunidades, marcado por eventos religiosos, que podem corresponder ou não a um calendário anual. As viagens de fuga eram migrações de grupos familiares em função das perseguições, dos faccionalismos, das secas ou da escassez de terras de trabalho.
Para os Pankararu, a cidade de Rodelas, e “os rodelas”, atuais Tuxá, eram uma referência permanente de suas viagens, antes da construção das usinas hidroelétricas que bloquearam o canal desse fluxo de pessoas. Os Pankararu mantinham contatos também com outros grupos, de outros pontos do São Francisco, como os Fulni-ô e, menos freqüentemente, os Kambiwá. Sua relação com os Pankararé e com os Jeripancó era ainda mais estreita, no caso dos primeiros, em função da memória de uma origem comum, no caso dos segundos, porque estes seriam uma parte desgarrada do Brejo dos Padres, fruto destas viagens de fuga, justamente no momento de maior expropriação das terras do antigo aldeamento de Brejo dos Padres.
Dessa forma, as viagens ligavam grupos, de origens diferentes ou não, por laços de afinidade e parentesco na produção de uma comunidade ritual mais abrangente e em expansão, levando à constituição de circuitos abertos de trocas de homens, informação e cultura. Tais circuitos entre os índios do Nordeste também formaram uma comunidade de problemas (o gado sobre as roças surge em todos os relatos e a expropriação das terras de antigos aldeamentos em quase todos) e memórias comuns.
Tais circuitos rituais e de fugas encontram correspondência em viagens historicamente anteriores, que marcaram a situação histórica dos aldeamentos indígenas ao longo do São Francisco. Os grupos da região sempre mantiveram forte resistência ao assentamento em um único local, de forma que lhe fosse tolhida a perambulação por entre aldeias e grupos vizinhos e o empreendimento colonizador levou muito tempo para reduzir esta mobilidade. O fato de terem sido reunidos em aldeamentos comuns, adaptados à cultura agrícola e introduzidos numa estrutura de poder fixa, não significou o imediato rompimento com essa forma de viagens.
À diferença dos aldeamentos construídos pelos próprios sesmeiros da região, como forma de ocupar largos trechos de terras e livrar seu gado do assédio de grupos indígenas "brabos", as Missões tendiam a ser organizadas de uma forma mais regulada. O padrão de mobilidade daquelas populações étnicas pode, portanto, ser buscado em formas culturais nômades anteriores aos aldeamentos, mas também corresponde a um dos efeitos específicos da dinâmica de territorialização dos próprios aldeamentos, quando estes, a fim de maximizar sua administração, juntavam e repartiam grupos de diferentes origens, criando, com isso, laços entre aquilo que os missionários e outros administradores concebiam como unidades administrativas estanques.
Lideranças peregrinas
Um outro gênero de viagens característico da história Pankararu são as viagens de lideranças dessas comunidades à capital de Pernambuco e até mesmo ao Rio de Janeiro, em busca dos direitos, que têm origem como resposta ao último momento das políticas de expropriação territorial, que levou também à extensão oficial dos aldeamentos. Essas viagens passam a ser uma marca da luta indígena do período compreendido entre o último quarto do século XIX e o primeiro do séc. XX, servindo também como modelo a partir do qual se conformarão as alterações nos arranjos de autoridades internos àqueles grupos depois do advento do SPI na região.
O século XIX parece assistir à passagem dos pedidos de missionários em favor dos índios, para pedidos dos índios em seu próprio nome, por meio de petições ao Imperador ou de viagens que realizavam a fim de vê-lo pessoalmente. As comunidades indígenas passam a ver nas viagens aos centros de autoridade, capazes de as conectar aos poderes extralocais, o único recurso para a conquista ou garantia de seus domínios territoriais.
Não é no vazio, portanto, que surgem, desde o início do século XX, as viagens de representantes da comunidade de Brejo dos Padres às cidades vizinhas, na busca de proteção contra o gado dos fazendeiros que invadia suas roças. A década de 1930, aparentemente sob o impacto dos programas do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), amplia a presença de poderes extralocais na região, produzindo novos centros de autoridade. Mas é na cidade de Bom Conselho que, apesar de não apresentar qualquer papel regional destacado, a presença do Pe. Alfredo Dâmaso e o seu apoio às demandas de grupos de remanescentes criaram um centro de autoridade que passa a substituir outros possíveis centros, até então ineficientes.
Nesse circuito, a importância que passa a ter a cidade de Bom Conselho deriva do seu papel de ponto de convergência de dois circuitos rituais, pois seu pároco tinha no seu roteiro de serviços espirituais a cidade vizinha de Águas Belas, onde se localizam os Fulni-ô, mais um dos pontos do circuito de trocas rituais dos Pankararu, Xukuru, Xukuru-Kariri, Tuxá, Kambiwá e outros.
As demandas dos caboclos do Brejo dirigidas ao Pe. Dâmaso inicialmente não falavam na criação de qualquer área de exclusividade que distinguisse entre aqueles que eram ou não eram índios. A memória de uma ancestralidade indígena servia como fiadora dos direitos que sabiam ter sobre as terras, mas não implicava desde o início na pretensão de uma delimitação formal, subordinada a uma unidade identitária e política. A referência não era um território, mas posses de uso familiar. Não existia um perímetro circundando um território abstrato de uso coletivo (ainda que se conhecessem os marcos do antigo aldeamento), mas a terra sobre a qual se investia um trabalho social, de base familiar e sobre a qual havia um domínio não legal, mas hereditário. Era desse domínio que sabiam estar sendo expropriados.
É apenas depois da entrada do SPI em Águas Belas e do reconhecimento dos Fulni-ô como remanescentes indígenas com direitos a um território, que essa visão do domínio da terra mudará de natureza, potencializando a memória de uma posse coletiva ancestral. Aqueles que viajavam em busca de apoio na defesa de suas posses passam então a viajar em busca do direito a seus territórios como “remanescentes”. Isso repercute sobre todos os aspectos da vida da comunidade, desde sua relação com a memória, até o seu arranjo interno de autoridades, em que passam a ocupar um lugar diferencial justamente aqueles que eram responsáveis pela busca dos direitos.
O toré como emblema de indianidade
O quadro ideológico e estratégico do SPI foi formulado com vistas a sua atuação junto a grupos indígenas ainda não integrados, muitas vezes arredios, beligerantes, que era preciso localizar e seduzir através de tradutores e de presentes, em operações “heróicas” representadas pela máxima formulada por Rondon: “morrer se preciso for, matar nunca”. Esses não eram procedimentos que se adequassem ao contato com índios do Nordeste. O SPI antes de procurar, estava sendo procurado, antes de convencer, tinha que ser convencido, antes de utilizar mediadores era alcançados por eles, que serviam de “porta-vozes” dos “remanescentes”.
O inspetor regional do SPI, Raimundo Dantas Carneiro, frente ao avanço indígena e acompanhando a sugestão presente nos textos de Carlos Estevão de Oliveira, institui a performance do Toré como critério básico do reconhecimento da remanescência indígena, tornado então, expressão obrigatória da indianidade no Nordeste.
A instituição do Toré como expressão obrigatória da indianidade cria um nexo de outra natureza entre os dois circuitos de viagens de que já tratamos. De agora em diante um circuito levará ao outro, não eventual ou acidentalmente, mas necessariamente, já que a troca ritual é transformada em pressuposto da conquista de direitos. É também a conexão entre esses circuitos que permitirá às lideranças peregrinas assumirem um papel político ainda mais largo do que aquele que já desempenhavam como representantes de sua comunidade. Além de realizarem o trânsito de informações sobre os direitos entre os centros de autoridade e seu grupo, passam a atuar como os agentes que disseminarão as regras da expressão obrigatória da indianidade. Agregam à comunidade ritual prévia uma comunidade da busca por direitos, que estará ligada ao isolamento, descontextualização e padronização de um dos seus rituais.
Os posseiros e as “linhas”
Os Pankararu descrevem como um golpe dado pelos poderes locais a repartição das melhores terras, isto é, as terras do "Brejo", em linhas de lotes distribuídos entre não-índios, que por isso passaram a ser conhecidos como "linheiros". Parte dos índios teria fugido imediatamente para outros locais e parte teria se refugiado nas serras. Deste segundo grupo, uma parcela teria começado a descer das serras e retomar as terras expropriadas através de alianças com o invasor, na forma de casamentos, relações de trabalho ou da pura submissão, enquanto uma segunda metade, irredutível, trocava as facilidades ecológicas do Brejo por uma irredutibilidade étnica e moral. Por isso, para muitos Pankararu, as famílias expulsas do centro seriam as mais “puras” e as do Brejo, as mais “misturadas”.
Quando em 1987 a Funai vai rever as dimensões da área, com base nos trabalhos de identificação realizados em 1984 [ver item Localização e histórico da TI], é com esse grupo de lideranças do Brejo que são realizadas as negociações. O trabalho do Grupo Interministerial de 1984 tinha evidenciado o erro na demarcação de 1940 e propunha a correção da área para os 14.290 ha reivindicados historicamente pelo grupo, mas ao negociar uma solução para a rápida homologação da área, que estava sendo exigida pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), o órgão propõe, numa reunião em que se encontravam apenas as lideranças do Brejo, manter a área original em troca da promessa de acelerar a retirada dos posseiros da fronteira oeste da seção central. Foi o fechamento deste acordo, que as lideranças da seção norte da TI só ficaram sabendo mais tarde, através de uma notícia de jornal onde aparecia a foto das lideranças ao lado dos funcionários da Funai, que deu uma natureza sísmica ao já existente faccionalismo ritual e mítico entre os grupos Pakararu.
Os Pankararu na Funai
Na década de 1990, inaugurou-se uma nova fase no relacionamento dos índios da região com a Funai, quando cargos de chefia passaram a ser ocupados por “filhos da aldeia”. Se, a princípio, esses chefes filhos da aldeia poderiam significar um ganho político dos grupos indígenas na conquista da plena gestão de seus próprios negócios, o que se observa é o discurso e a prática desses jovens, presos às dualidades, por um lado, da relação tutelar e, por outro, do faccionalismo interno.
Um chefe de posto indígena é, em parte, tutor e em parte tutelado, sem que uma dessas posições elimine a outra, como poderia sugerir o significado mais elementar do termo. No seu discurso, o “índio” aparece alternadamente na terceira e na primeira pessoa e a sua relação com o cargo é tanto de poder, quando exerce sobre a população uma autoridade e um governo cuja origem está fora dela, quanto de dependência, já que se vê obrigado por essa posição a maximizar as ações do órgão em favor do grupo, sem que isso esteja, na maioria das vezes, ao seu alcance. Por outro lado, se é a figura capacitada a fornecer a maior representatividade ao grupo, está definitivamente preso às relações de autoridade familiares, a que deve obediência, sendo antes de tudo e, em parte à sua revelia, instrumento da luta faccional.
Os Pankararu em São Paulo
Os Pankararu de Real Parque, na zonal sul da cidade de São Paulo, formam um grupo estimado em torno de 1.500 pessoas, que ocupa parte da favela de mesmo nome no bairro do Morumbi, no município de São Paulo. Esse grupo tem origem na intensificação do fluxo de deslocamentos de trabalhadores do Nordeste para as grandes cidades do Sudeste a partir da década de 1940. O trabalho, na maioria dos casos, era nas equipes de desmatamento da Cia. de Luz do Estado e, inicialmente era agenciado por “gatos” que iam buscá-los na própria aldeia, para entregá-los, em lotes, aos “empreiteiros” das obras. A sucessiva elevação de um desses trabalhadores ao papel de “gato” e mais tarde de empreiteiro da obras de desmatamento da Cia. de Luz, acabou acarretando um fluxo direto e constante entre o Brejo dos Padres e São Paulo nas décadas de 1950 e 1960. Em pouco tempo São Paulo tornou-se uma referência para todo o grupo, que tem lá filhos e irmãos.
Inicialmente era um fluxo apenas de homens, que saíam da área indígena para trabalhar curtos períodos em São Paulo, como forma de reequilíbrio do orçamento doméstico em ano de seca ou em situações emergenciais. Sem se integrarem à cidade, voltavam sempre que as necessidades imediatas já tivessem sido cobertas ou quando se anunciasse um bom inverno.
A partir da segunda geração de Pankararu trabalhadores em São Paulo, no entanto, que coincidiu aproximadamente com a idade adulta das primeiras gerações de crianças alfabetizadas pelo posto indígena, as mulheres intensificam suas viagens e aparentemente passaram a servir de base para permanências mais estáveis. A cada núcleo familiar instalado lá, tornava-se mais fácil e provável que novos jovens percorressem o mesmo caminho, fazendo com que essas viagens assumissem um caráter sistemático e familiar. O fato de construírem uma base espacial relativamente homogênea, logrando reproduzir uma organização política e ritual, diminuiu os custos materiais e afetivos dessas migrações, permitindo uma efetiva reterritorialização.
Em 26 de julho de 1994, o jornal Notícias Populares de São Paulo abria a primeira página do caderno "Plantão NP" com a manchete “Índio eliminado na favela - Fugiu da tribo para morrer em São Paulo”. Ao lado da manchete, era estampada a foto do corpo ensangüentado de um índio de 20 anos. O texto explicava que, apesar de estarem ali porque os grandes fazendeiros haviam invadido suas terras em Pernambuco, os índios continuavam realizando seus rituais e conversando “em sua língua nativa, o Iatê”. Duas semanas depois, o jornal Folha de São Paulo dedicava uma página inteira para comentar a inusitada existência de uma tribo indígena em pleno Morumbi, que tinha criado uma "rede de solidariedade" na favela e que se reunia todas as semanas, sob o comando do pajé da favela, para rituais de Toré, que era comparado ao candomblé. Uma semana depois, o assunto teria uma página inteira do jornal Diário de Pernambuco, sob o título “Pankararus que trabalham em São Paulo estão sendo dizimados pela violência urbana”, em que também se registrava que o assassinato teria sido matéria do telejornal Aqui Agora, do SBT.
Com a visibilidade que adquire então a presença indígena na favela Real Parque, suas lideranças passam a emancipar-se do discurso das lideranças do Brejo e a reivindicar a criação de sua própria aldeia em São Paulo. A idéia, entretanto, não foi bem recebida nem pelas lideranças do grupo em Pernambuco, nem pela Funai. Estava em jogo, entre outras coisas, o estatuto das viagens a São Paulo. As reivindicações fundiárias e os projetos de desenvolvimento do Brejo dos Padres freqüentemente contabilizaram a população de São Paulo como parte dos beneficiados, caracterizando sua saída como uma diáspora. Aquela nova postura, no entanto, convertia a diáspora em mais um enxame, o exílio econômico em reterritorialização étnica, dando continuidade ao movimento de fragmentação e expansão da identidade Pankararu que, nesse caso, contrariava a estratégia política do Brejo dos Padres.
Aspectos cosmológicos
Assim como o Toré é o centro do complexo ritual Pankararu, os Encantados são as figuras centrais de sua cosmologia. “Semente” é a forma material pela qual os Encantados se manifestam pela primeira vez aos Pankararu. Os Encantados são “índios vivos que se encantaram”, voluntária ou involuntariamente e, por isso, o culto a eles, como insistem os Pankararu, não pode ser confundido com o culto aos mortos. A forma desse “encantamento” só pode ser parcialmente narrada, seja porque constitui um mistério para os próprios Pankararu, ou um segredo que não pode ser revelado a estranhos.
Segundo os Pankararu, o segredo do encantamento é o núcleo da própria identidade da aldeia. Cada povo indígena tem seu panteão de Encantados, mas como cada tronco é marcado por uma determinada forma de “encantamento”, esses Encantados podem ser partilhados durante um determinado tempo por grupos ligados entre si como “pontas de rama” de um mesmo tronco velho. Atualmente os Encantados Pankararu habitam apenas as serras e os serrotes que demarcam o entorno do Brejo dos Padres. Praticamente para cada uma dessas formações ou maciços rochosos, esteticamente muito impressionantes, corresponde um Encantado. O contato entre os Pankararu e eles restringe-se, atualmente, aos “sonhos”, durante os quais alguns Pankararu podem viajar até os castelos existentes dentro daquelas serras e serrotes.
Os “encantamentos” de “índios vivos” que geraram os atuais Encantados, no entanto, envolviam as extintas cachoeiras de Paulo Afonso e de Itaparica. Algumas narrativas contam que o surgimento dos Encantados e dos próprios Pankararu deve-se ao encantamento de toda uma população de índios, uma “tropa”, que teriam se jogado na cachoeira de Paulo Afonso. Eram esses Encantados, que passaram a habitar a cachoeira e que tinham origem em todas as “nações” antigas, que se comunicavam por meio do estrondo das águas, prevendo desgraças, mortes ou mesmo novos encantamentos. Depois desse encantamento coletivo, que dá origem à própria aldeia, pensada enquanto unidade espiritual, outros índios, depois de serem anunciados e de passarem pela devida preparação, podiam continuar se encantando.
As “sementes” são o transporte dos Encantados. Depois de escolherem uma determinada pessoa que deverá zelar por eles, os Encantados surgem em sonho para essa pessoa e anunciam que ela receberá sua semente. Em pouco tempo essa pessoa se depara com a “semente” anunciada, que tem, de fato, a forma de uma semente vegetal, mas onde pode-se ver a imagem do Encantado. Essa semente deve ser guardada em um pote, que deve ser enterrado sob o solo da casa do zelador escolhido, em um lugar que apenas ele pode conhecer. Trata-se de um outro segredo, nesse caso, doméstico.
Essas sementes, no entanto, não correspondem a apenas um Encantado. Por meio delas podem se manifestar até 25 Encantados para um mesmo zelador. Depois de manifestados, os Encantados passam a ser objeto de culto “particular”, isto é, cerimônias domésticas, em que se fuma, toma-se garapa e canta-se o “toante” do Encantado, mas nas quais não se dança. O toante é a música própria de cada Encantado e só é revelada progressivamente, por meio do exercício ritual do “particular”. É apenas depois que o próprio Encantado pede para ser “levantado”, que ele pode ser cultuado também no Toré, que é a versão pública e coletiva dos “particulares”, em que os vários Encantados da aldeia podem se encontrar em festa. Depois desse pedido, então, o zelador deve tecer o Praiá, que é a “farda” do Encantado, isto é, a saia e a máscara de fibras de croá ou ouricuri que corresponderá a apenas ele.
O zelador dos Praiás tem, por tudo isso, uma grande responsabilidade religiosa frente à aldeia, acumulando com isso também autoridade política. Não é qualquer pessoa que é reconhecida como apta a receber uma “semente”, estando esse lugar marcado por uma certa avaliação coletiva acerca de sua reputação. De outro lado, assim que uma pessoa recebe uma “semente”, ela passa a concentrar à sua volta e à volta de sua casa uma órbita ritual mais ou menos extensa e intensa. Primeiro, ela passa a concentrar os “particulares” de seu próprio núcleo familiar ou da sua família extensa, dependendo da existência de outros zeladores na mesma família ou em núcleos colaterais. Em seguida, depois de ter “levantado” um ou mais Praiás para os seus Encantados, ela passa a ter também um “terreiro” para que esses Praiás dancem e que, por isso, passa a concentrar também parte dos eventos festivos que se realizam na aldeia.
Cada terreiro de pai de Praiá é um ponto de realização de Torés, seja por iniciativa própria, ou em função das visitas que os Praiás fazem a todo o circuito de terreiros em cada festa realizada. Além disso, cada Praiá deve ser vestido por um homem, em geral afiliado ao Encantado correspondente à farda, que deve exercer esse papel em segredo. Nesse caso também não é qualquer pessoa que pode vestir o Praiá e o zelador deve escolher essa pessoa, dentro ou fora de sua família, de acordo também com sua reputação moral. Isso estende a autoridade do zelador, como alguém que também é um avaliador do comportamento moral de outros homens.
O dilema mais dramático, do ponto de vista da identidade étnica para os Pankararu, é o fato de todo esse sistema estar ameaçado em sua reprodução. Depois de terem assistido a sua morada nas cachoeiras de Paulo Afonso serem destruídas pela construção das barragens, os Encantados migraram para a cachoeira de Itaparica, mas recentemente teriam assistido novamente a uma nova destruição de sua morada, por meio da construção de novas barragens. Extintas as cachoeiras, os Pankararu estão limitados ao panteão de Encantados já existente e àquele universo dos que ainda podem vir a se manifestar. Isso, no entanto, é considerado insuficiente para continuar contemplando a sua expansão demográfica. Hoje os Pankararu estão no trabalho de descobrirem um novo “segredo”.
"A cachoeira era um lugar sagrado onde nós ouvíamos gritos de índio, cantoria de índio, berros, gritos. O encanto acabou porque o governo quer assim, né... [...] Olha, essa cachoeira, quando ela zoava, estava perto dela chover ou de um índio viajar. E a cachoeira não zoou mais, chove quando quer... Acabou-se o encanto dela. Então esse era todo o lugar sagrado que agente pediu pra preservar, mas... É a força maior combatendo a menor... Era uma grande cachoeira, de um grande rio, que a gente ouvia os cantos, das tribos indígenas, vários cantos de tribos indígenas cantando junto que nem numa festa. Mas hoje em dia não se vê mais nada... Aquele encanto acabou" (João de Páscoa).
O sistema ritual do Toré
Os elementos constituintes do sistema ritual do Toré Pankararu estão divididos entre: A) personagens: os Encantados, os Praiá, os pais de Praiá e os dançadores; B) situações rituais: o particular e o Toré público, que podem assumir o caráter de simples demonstrações teatrais, como expressão folclórica, ou serem dedicados ao culto dos Encantados, ligados ou não ao pagamento de promessas; e C) locais: as cachoeiras, serrotes, casas e terreiros.
Como apontado no item anterior [Aspectos Cosmológicos], uma vez recebida a semente, o escolhido tem que levantar o Praiá, num período de tempo indeterminado, mas não muito longo, sob pena de sofrer represálias, ou transferir essa responsabilidade para um zelador já respeitado, ao terreiro do qual passa a dever lealdade.
“Levantar é tecer”. Isto é, para levantar um Praiá, o zelador do encantado, que passará a ser também um “pai de Praiá”, deve confeccionar ou contratar a confecção, por um dos poucos artesãos especializados na aldeia, da roupa e da máscara de palha de ouricuri que servem para encobrir a personalidade do dançador e que é, quando vestida sob determinadas prescrições, a materialização do próprio Encantado. O Praiá é a conjunção em ato, do Encantado, do dançador e da roupa e máscara de ouricuri ou croá, devidamente consagrada pelo zelador. Os zeladores não são as mesmas pessoas que ocupam o lugar de dançadores. Aos primeiros cabe um papel mais religioso, de orientação e guarda da tradição, através do cuidado com as sementes que lhes foram transmitidas, com as roupas dos Praiás e com o contato permanente com os Encantados, funções que normalmente se associam às qualidades de rezador e pai de família. Os segundos são normalmente homens jovens, casados ou não, capazes de “segurar a brincadeira” do Toré, já que ela geralmente implica em muitas horas seguidas de dança dentro de pesadas roupas de palha de ouricuri, ou fibras de croá, e nos rituais do Menino do Rancho e da festa do Umbú, em disputas corporais que exigem grande vitalidade física.
Os dançadores são escolhidos pelo zelador da semente do Encantado dentro de seu círculo familiar ou de afinidade. Mesmo sendo comum a população local conhecer e reconhecer, através de suas características corporais ou de suas performances, a identidade dos dançadores, esta não pode ser revelada, fazendo parte sempre respeitada dos segredos que compõem o ritual, sob o risco, para aquele que a pronuncia, de sanções que podem levar da doença à morte.
A escolha e o chamado dos dançadores pelo zelador, para a realização de um Toré, envolve uma antecedência que pode ir de quinze até dois ou três dias, dependendo do rigor do zelador, da importância da situação ou mesmo da freqüência com que o Toré é realizado. Essa antecedência está relacionada às prescrições de purificação física e espiritual que o ritual envolve, tanto para os dançadores quanto para os zeladores: durante aqueles dias lhes é proibido qualquer contato sexual, qualquer bebida e qualquer “sentimento ruim no coração”.
No modelo ideal do sistema do Toré Pankararu, toda vida ritual se concentra num único ou num pequeno número de terreiros mais importantes que servem também à dança dos Praiás dos zeladores menores. Da mesma forma, não se aceita facilmente que dois Torés se realizem simultaneamente em dois lugares diferentes, ou que os Praiás mais próximos, ou dos terreiros mais importantes, não sejam chamados para cada Toré realizado. Assim, quanto menor o número de terreiros, melhor, porque a concentração ritual realiza no plano simbólico a união social e política do grupo. A autoridade moral e religiosa, portanto, está intimamente relacionada à capacidade de criar lealdades, não só através da criação de um grande batalhão de Praiás, mas também pela capacidade de agregar, ao redor de um mesmo terreiro, grande número de dançadores e de outros “pais de Praiá”.
A dança do Toré é regida por uma música fortemente compassada, o Toante, cantado por apenas um “cantador” ou “cantadora” e que encontra respostas periódicas nos gritos uníssonos e ritmados do grupo de bailarinos. É possível que o que passou a ser conhecido por Toré, originalmente não constituísse um ritual autônomo, sendo apenas uma parte recorrente em outros rituais e, com certeza, ele não era idêntico em todos os grupos que o possuíam. Mas foi essa realidade mais imediatamente identificável, isolável e rotulável que assumiu o lugar de marca identificadora, primeiro para o indigenismo, depois, para os próprios grupos indígenas, tornando-se assim, símbolo de indianidade.
Organização social
Os Pankararu se distribuem basicamente segundo duas classificações, os troncos e as aldeias, ambas relacionadas à organização das famílias, histórica no caso da primeira e espacial no caso da segunda. A classificação dos grupos de famílias em status diferentes, através da sua ligação a "troncos" familiares que se dividem entre os "antigos" e os "recentes", não corresponde a qualquer produção de segmentações, classes ou linhagens, já que ela opera uma dicotomia básica entre aqueles que descendem de índios "puros" e aqueles que descendem de índios "misturados" ou "braiados", em referência a uma forma de organização que é mais histórica do que estrutural. Por isso, essa distinção não chega nem a pôr em risco a identidade indígena dessas famílias de troncos mais novos, já que participam plenamente da repartição da terra, dos rituais e da organização política, nem a criar uma forma de organização da sociedade que tenha repercussão sobre as relações cotidianas ou de parentesco, ficando seu uso relacionado à (des)classificação de alguém ou de algum grupo familiar em ocasiões de oposição especialmente acirrada. A própria distinção entre as famílias de cada tronco não é muito clara e surge como mais um objeto de disputas.
Abaixo dos "troncos" está a família, que é a classificação social que funciona cotidianamente, definindo aqueles a quem se pede ajuda, a quem se acompanha nas definições políticas, com quem se planta, perto de quem se mora, e com quem se compartilha a comida e o trabalho da "farinhada". Sua organização está diretamente ligada à disposição espacial das casas, que se distribuem segundo dois tipos: ou agrupadas lado a lado, em linha reta ao longo das principais vias de acesso internas à área, ou em grupos de casas de uma mesma família, cuja disposição tende à forma circular, com o foco gravitacional na casa do patriarca.
Os agrupamentos do primeiro tipo estão bem delimitados geograficamente: localizam-se ao longo da estrada que vai da entrada da área indígena até o sopé da serra, onde se dividem, indo por um lado para o posto indígena e por outro para o "terreiro do nascente", passando por todo o conjunto de prédios públicos do Brejo, como o "centro de produção artesanal", a igreja e o cemitério, a casa de farinha coletiva, o clube, as pequenas "biroscas", as duas escolas, a farmácia, a merendeira e as caixas d'água.
Os agrupamentos do segundo tipo distribuem-se por toda a área indígena, inclusive pelos terrenos que se seguem imediatamente a essas primeiras fileiras de casas em forma de arruamentos, subindo todo o sopé da serra, ocupando-a e se estendendo até os limites da área, e mesmo depois, principalmente no sentido norte, onde se confundem com os agrupamentos de não-índios. Tal organização das residências reúne famílias extensas ligadas por laços de descendência e voltadas para um espaço comum, capitaneado por uma casa principal. Essa casa, de um patriarca ou de uma matriarca, a princípio, está na origem do agrupamento, tendo-se seguido a ela as casas dos filhos, netos e mesmo de irmãos e sobrinhos.
Ao formarem uma unidade mais ou menos definida, tais agrupamentos desenham círculos em que o espaço interno, para onde normalmente estão voltados, pode assumir o lugar de convergência das atividades de lazer e ritual daquele agrupamento familiar (figura 8). Como algumas vezes esses patriarcas são também "pais de Praiá", esses espaços internos servem como terreiros onde se realizam os Torés [ver item sobre O sistema ritual do Toré]. Neste caso, então, ultrapassam as funções de lazer familiares, tornando-se referência religiosa para um círculo de vizinhos de extensão variável.
Para esses Terreiros podem convergir as lealdades mais próximas, dependendo da capacidade do patriarca principal de conseguir manter ao redor daquele núcleo o maior número de "pais de Praiá", ou mesmo de concentrar no seu próprio terreiro um grande número de Praiás, que comporiam um mesmo "batalhão", tão mais factível quanto maior o número de parentes que permanecem ligados ao núcleo original. Além disso, tais famílias, ao manterem laços mais extensos e constantes sob a influência de uma casa principal, mantêm também uma interação cotidiana mais intensa, com a possibilidade de compartilhar da distribuição de gêneros e insumos agrícolas, da disciplina dos jovens e das crianças etc., passando a servir como referência para a administração do posto indígena, onde o "pai" da casa principal serve de interlocutor privilegiado.
Esse modelo de distribuição espacial das famílias em núcleos residenciais não difere muito daquele que é corrente entre a população regional, mas ao ser aplicado ao contexto Pankararu, produz efeitos particulares em termos de organização política e ritual que estão na origem do formato aldeia: unidades político-administrativas de uso mais comum tanto pela população quanto pelo posto indígena, sendo também a base de referência dos censos feitos na área, além de ser, teoricamente, a unidade básica de onde saem as "lideranças".
As unidades que hoje são designadas como aldeias não se distinguem tanto em função de fronteiras territoriais quanto a partir de uma série de laços de respeito e lealdades, a princípio bastante discretos, que as aproximam mais da imagem de áreas de gravidade de núcleos relativamente móveis.
As famílias e grupos de residência reunidos nos arruamentos ao longo da estrada que leva à igreja do Brejo e dela ao Posto Indígena e à “fonte da nascente” tendem à (ou manifestam a) fragmentação de uma urbanização seminal e à individualização das famílias nucleares, voltadas mais para um espaço público que para um espaço familial e ritual. Nesses casos, há uma divisão sócio-espacial das atividades, onde a morada, a roça e o círculo ritual não mais se sobrepõem no espaço. É nesta região que se encontram os “índios sem terras” que trabalham nas terras de outros índios, de posseiros ou fora da área, como rendeiros, “meeiros” ou diaristas. É aí que estão concentrados também aqueles que largaram ou complementam o trabalho na roça com trabalhos nas cidades próximas.
De outro lado, o formato do arruamento não facilita que um núcleo familiar se desenvolva como núcleo residencial e é comum que os filhos dessas famílias se desloquem com relação à casa dos pais, avançando junto com o avanço das ruas, sendo absorvidos em núcleos residenciais fora do Brejo por meio do casamento ou ainda saindo da área indígena, em suas buscas de emprego nas cidades próximas, em São Paulo [ver item A grande árvore e os Pankararu em São Paulo) ou em outras áreas indígenas, às quais têm acesso via parentesco ou via empregos na Funai.
Organização política
A primeira e mais evidente conseqüência desta mudança na organização espacial das residências e na sua concentração no Brejo é a mudança que traz com relação aos arranjos de autoridade anteriores. Deixa de existir o tipo de autoridade que atua sobre uma família extensa reunida no mesmo núcleo residencial, ou sobre um círculo mais ou menos largo de respeito ligado ao exercício do Toré, e a autoridade do chefe de posto emerge como centralizadora da regulação moral. Isso cria forte dependência com relação à intervenção direta do chefe de posto na resolução de conflitos entre vizinhos, na mediação com agentes externos ou na distribuição de gêneros.
A proximidade, mas também essa diferença de organização social faz com que a maior parte do tempo de serviço do chefe de posto seja dedicada à tentativa de resolução desses pequenos conflitos gerados dentro do próprio Brejo, envolvendo disputas de quintal, bebida, ofensas etc., ao contrário do que ocorre com as outras seções, onde disputas menores são mediadas pelas autoridades formais ou informais de base familiar ou ritual.
Não há vestígios de que a organização social e política dos Pankararu apresentasse, no momento em que se dá o contato com o SPI, uma chefia centralizada que englobasse seus diferentes núcleos familiares. As unidades familiares, que tenderam a constituir grupos de residência, ou grupos vicinais, parecem ter tendido a respeitar um tipo de autoridade que emergia da figura de patriarcas dotados de qualidades especiais, geralmente associadas a uma combinação variável de poder mágico, valor moral e outras variáveis, como a capacidade de criação de lealdades rituais, da agregação do maior número de pessoas através de laços familiares e, ou, de trabalho e de crédito, tão importantes nos períodos de seca.
Há, porém, registro de uma designação especial que indicaria o desempenho de um papel de autoridade destacado dos demais. No passado, o sarapó representava a autoridade moral de base religiosa, mas não parece ter exercido outros poderes que os de influência moral e religiosa interna à comunidade. Sua função precípua era a de zelar pelo principal Encantado da aldeia, o Índio Xupunhum, ou, como também é conhecido, o Índio Mestre Guia. Este é o único Encantado a ter uma festa especial em sua homenagem, realizada em seqüência à festa do umbú, que marca o início do calendário agrícola.
Acompanhando essa função de destaque, o sarapó concentrava também a guarda do maior “batalhão de Praiás” da aldeia, concentrando com isso, na sua casa e no seu terreiro, o principal da vida ritual local. Mas mesmo o sarapó, que parece fornecer um lugar estruturalmente diferenciado nesse arranjo de autoridades Pankararu, não parece ter exercido qualquer papel de poder repressivo, de decisão ou governativo sobre o conjunto das outras autoridades estruturalmente indiferenciadas. A primeira novidade neste arranjo, de que temos notícia, foi o surgimento dos mediadores entre a comunidade e as autoridades extralocais que temos chamado de lideranças peregrinas.
As lideranças peregrinas passaram a realizar, desde a década anterior à chegada do SPI, viagens para os lugares de poder, em busca dos “direitos”. Elas se transformarão em referências políticas para a população Pankararu e serão também a via de entrada e de controle das novas formas de autoridade estatutárias, moldadas segundo a repartição de poderes estatal. [ver item História]
Fontes de informação
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