Kaxarari
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- AM, RO 522 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
- Pano
Os Kaxarari habitam na fronteira entre Rondônia e Amazonas, nas proximidades da rodovia federal BR-364. Em 1910, viviam nas cabeceiras do igarapé Curequeté, afluente do rio Ituxy, e sua população era estimada em cerca de 2 mil índios. Desta época até o início da década de 1980, os Kaxarari, devido aos violentos ataques de caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros e às epidemias, viram-se reduzidos a menos de 200 pessoas. Nas décadas seguintes houve um relativo crescimento populacional. Os Kaxarari, ao longo de todo o século XX, tiveram que se deslocar pela região em busca de melhores condições de vida, pois suas terras foram sempre alvo de ações predatórias de não-índios que buscavam explorar os recursos naturais ali existentes, especialmente a seringa, a castanha, as madeiras e as pedras.
Nome e Língua
Kaxarari parece não ser a autodenominação do grupo. No entanto, não é fácil indicar a sua origem. As primeiras referências a este nome datam do início do século XX. Em 1910, João Alberto Masô, engenheiro da Comissão de Limites entre o Brasil/Bolívia/Peru que percorreu o rio Ituxy e o seu afluente Curequeté, utilizou o nome Cacharary.
Kaxarari, como tantos outros nomes utilizados para designar os povos indígenas da Amazônia Ocidental, é uma atribuição oriunda do contato interétnico.
Os Kaxarari falam uma língua da família Pano, semelhante ao idioma falado pelos Yaminawa, Kaxinawa, Yawanawa, Nukini, Katukina e Poyanawa que vivem no Acre.
“Entre os Kaxarari que vivem na aldeia Pedreira, pode-se perceber que apenas os mais velhos ainda falam a língua; das crianças, poucas falam e algumas apenas entendem. Entre os adultos, pode-se dizer que a maioria não lê ou escreve o português, e alguns apresentam dificuldades na compreensão da língua”
(Aquino, 1984)
Localização
Os Kaxarari vivem hoje em quatro aldeias, Marmelinho, Barrinha, Paxiúba e Pedreira, todas elas localizadas na Terra Indígena Kaxarari, na fronteira dos estados do Amazonas e Rondônia. A área ocupada pelos Kaxarari é próxima aos municípios de Lábrea, Porto Velho e Extrema, e o acesso por terra se dá pela BR-364 entre Rio Branco e Porto Velho.
Segundo o relatório de Terri Vale de Aquino, em 1910, João Alberto Masô, localizou os Kaxarari nas cabeceiras do igarapé Curequeté, afluente da margem direita do rio Ituxy.
Os velhos Kaxarari afirmavam que suas malocas eram tradicionalmente encontradas não só nas nascentes do Curequeté como também em outros rios e igarapés daquela região.
Em meados de década de oitenta, a maior concentração populacional estava localizada às margens do rio Azul, nos locais denominados Maloca e Boca da Barrinha. Algumas famílias eram encontradas na boca do rio Vermelho com o Marmelo, na BR-364 e em vários núcleos urbanos da região (Rio Branco, Porto Velho e Guajará-Mirim).
(Aquino, 1984)
Entre o fim da década de oitenta e o início dos anos noventa, houve uma mudança dos grupos domésticos kaxarari, que viviam nas antigas aldeias do Azul e da Barrinha, para a área do ramal das Pedreiras (que foi construído no final da década de oitenta pela empreiteira Mendes Junior para produzir em larga escala pedras e britas destinadas tanto à pavimentação da BR-364, quanto para a construção civil em Rio Branco).
O deslocamento dos Kaxarari e a ocupação da área das Pedreiras foi uma forma de paralisar as atividades predatórias que a construtora Mendes Junior vinha realizando na região (ver Luta pela demarcação).
(Funai, 1997)
População
No início do século XX, a população kaxarari foi estimada em cerca de 2 mil índios (Masô, 1910). Desta época até o início da década de oitenta, os Kaxarari, mortos a tiros por caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros e vítimas de epidemias viróticas, viram-se reduzidos a menos de 200 indivíduos. O primeiro censo foi levantado em 1978 pela equipe da Funai que realizou a primeira delimitação da Área Indígena Kaxarari. Foram recenseados 109 índios, sendo 58 homens e 51 mulheres. Deste total, 53 índios moravam dentro da área delimitada pela Funai e os outros 56 moravam fora dela, em locais dispersos (Cruvinel, 1978). Em 1981, a CPI-Acre recenseou 129 índios Kaxarari. Deste total, 88 viviam dentro da área delimitada pela Funai em 1978 e os outros 41 viviam espalhados pela BR-364 e pelas margens dos rios Marmelo, Vermelho e Abunã (Meirelles, 1981).
Em meados de 1983, a CPI-Acre fez um novo censo, registrando 93 índios que moravam dentro da área indígena e cerca de 16 famílias residindo fora dela, com aproximadamente 60 pessoas, apresentando um total de 153 indivíduos.
(Aquino, 1984)
Segundo o relatório de visita à área feita pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de Rondônia, os Kaxarari somavam, em 1984, cerca de 135 pessoas, que viviam nas aldeias, nas proximidades da BR-364 e fora da área delimitada pela Funai.
O censo demográfico realizado em julho de 1993 pelo chefe do Posto Indígena apresentou um total de 192 indivíduos. Aproximadamente sessenta por cento da população kaxarari possuía menos de 20 anos de idade, enquanto trinta e quatro por cento estava compreendida na faixa etária de 20 a 50 anos e somente cerca de seis por cento era constituída de velhos acima de 50 anos (Relatório de viagem à Área Indígena Kaxarari. Funai, 1997).
De acordo com a Fundação Nacional da Saúde (Funasa), havia em meados de 2009 cerca de 318 índios Kaxarari.
Histórico do contato
Os Kaxarari marcam a sua história do contato em três períodos distintos: o “tempo das correrias”, o “tempo do cativeiro” e, mais recentemente, o “tempo dos direitos”. Fazem ainda referências explícitas aos nomes dos personagens e instituições sociais de cada período que lhes marcaram direta e/ou indiretamente.
Tempo das correrias
Os Kaxarari associam o início do contato com o período das “correrias”, no qual a maioria de sua população foi exterminada pelos caucheiros peruanos e seringalistas brasileiros. As “correrias” foram organizadas por empresários do extrativismo com o intuito de “limpar a área” para expropriar as terras dos índios, ricas em seringa, caucho e castanha. O surgimento de doenças viróticas também é lembrado pelos índios como um marco desse período.
“Antigamente só vivia Kaxarari no Curequeté, Macurenem, Ituxy e Aquiry. Primeiro que veio foi peruano tirando caucho. Entrava nas malocas e matava muita gente na bala. Matava os homens tudim pra tomar a nossa terra, as mulher e as criança. No tempo dos peruano eles não livrava a cara de homem nenhum. Matava tudo na bala, no terçado e no porrete. O chefe dos peruano era um tal de Missael. Depois apareceu os cearense trabalhando na seringa e metia bala também pra tomar as nossa terra. No tempo das correrias os branco tangia nós na bala. Aqui no Macurenem, no Curequeté tinha muito caboclo brabo. Aonde era mais gente que tinha. Não tinha outro. Só puro Kaxarari. Também morreram muito com sarampo, tosse-braba, malária, catapora, gripe e tuberculose. Não tinha remédio, não tinha nada. O resto morreu na bala mesmo. Bala doido. O resto que escapou, correu. O Otávio Reis onde ele encontrou seringa e castanha, ele botou bala nos caboclo que já vivia ali, né? Um empregado do Capitão Valdivino matou esses caboclo mais velho tudim que ele encontrou pela frente. Amarrava os caboclo e metia bala. Ele era malvadeza. Os empregado do Capitão Valdivino que mais matava era o Anísio e um tal de Joaquim (...). Depois acabou esse negócio de correria, mas doença continuou ainda”. (Depoimento de Antônio Caibú, no início dos anos 80)
Tempo do cativeiro
Uma vez expropriadas as terras dos Kaxarari e constituídos os primeiros seringais da região do Ituxy-Curequeté procurou-se “amansar” os que sobreviveram aos massacres das “correrias” para incorporá-los como trabalhadores da empresa seringalista. Este período é marcado pela violenta exploração e escravização do povo Kaxarari, reduzidos agora a meros braçais dos “patrões” dos seringais da região.
“Depois que acabou as correria, nós encontremo o patrão Matias Quaresma. Com o Matias não tinha que mexesse com nós. Nós fomos trabalhar pra ele. Foi ele que acabou de amansar a gente, os mais novo, né? Os mais velhos morreram tudo na bala mesmo. Ele amansou nós pra botar no cativeiro. Fazer todo tipo de serviço pesado. Carregar borracha nas costas, tirar caucho nas costas, fazer varador, achar as madeira pra fazer estrada de seringa, varejar de ubá pra levar borracha e trazer as mercadoria dele da cidade, fazer canoa pra ele, apanhar castanha pra ele, botar roçado pra ele, pro Matias Quaresma. Os mais novo foram aprendendo a cortar seringa pra ele. Trabalhava, trabalhava pra ele pra ganhar uma mudinha de roupa e mercadoriazinha. Nunca ganhemo nada, só doença e muitos morria à mingua. Esse é o cativeiro que a gente chama”. (Depoimento de Artur César, no início dos anos 80)
O tempo do “cativeiro” é ainda marcado pela ausência sistemática de saldo, a cobrança de renda pelas estradas de seringa que os índios ocupavam, o alto preço das mercadorias, o baixo preço de suas produções de borracha/castanha e pela manipulação das contas correntes dos índios seringueiros, de forma a ficarem sempre em dívida com seus “patrões” de seringal.
Este período se estende até fins da década de 1960, época que coincide com a construção da BR-364, no trecho Porto Velho-Rio Branco que passa nas proximidades das aldeias kaxarari, e também com a decadência dos antigos seringais da região onde vivem os índios. Nesta época, deslocaram-se das cabeceiras do Curequeté e Ituxy para a margem esquerda do rio Azul. Esse rio era considerado, até a construção da rodovia, como o fundo de suas terras, depois disso passou a ser a entrada da área indígena. A partir daí passaram a receber a influência e a dominação dos pequenos “marreteiros da estrada”.
“No tempo do cativeiro nós nunca recebia saldo e ainda era obrigado a pagar renda das estradas de seringa. Patrão não dava talão de mercadoria nem conta corrente. A gente trabalhava e só ficava devendo. Nesse tempo que nós trabalhemo pro Matias Quaresma o fundo da nossa área era no Azul. Depois que passou a estrada os patrão já estavam se acabando. Quando passou a estrada aí os marreteiros tomaram de conta. Já os fundo ficou sendo a frente e a frente ficou sendo os fundo. Quer dizer que de primeiro a frente era pro Ituxy, no Seringal Remancinho. A gente se aviava no depósito do Porto. Aí foi o tempo que foi se acabando os patrão e coisa e tal e foi ficando ruim de caça também. Aí nós fomo abrindo as colocações pros fundo na área, pro Azul, que era bom de cala e ficava mais perto da estrada. O Caibú [liderança kaxarari] abriu a primeira colocação bem na beira do Azul, que é justo esse lugar que ele ainda mora agora e que se chama Maloca. Aí o resto foi mudando devagarzinho. Lá onde era frente não ficou ninguém mais. Veio tudo pro Azul. Aí no Azul comecemo a se aviar com os marreteiro por influência da estrada. Já tinha esse melhoramento mais. Já as mercadoria era vendida mais em conta. Deixemo de pagar a renda das estrada de seringa. E aqui e acolá dava pra tirar um saldozinho. Foi acabando o tempo do cativeiro dos patrão de seringal, como se diz. Mas os marreteiros também não é flor que se cheire não. Só melhorou uma coisinha assim”. (Depoimento de Artur César, no início dos anos 80)
Tempo dos direitos
Para os Kaxarari, este novo momento histórico é marcado a partir da instalação de uma Ajudância da Funai no Acre, em meados da década de 70, e pela delimitação de sua área indígena por uma equipe de técnicos do órgão oficial, em 1978. Desta época em diante os Kaxarari passaram a tomar consciência de seus direitos, inclusive aqueles relacionados à posse efetiva de suas terras e aos meios suficientes e necessários para sua sobrevivência coletiva.
“Depois que a Funai botou uma Ajudância em Rio Branco e veio aqui no Azul tirar um pedaço de terra pra nós, nós ficamo mais sossegado porque nós compreende agora os nosso direito. Nós fiquemo sabendo que tinha direito a nossa terra, direito nas nossa seringueira e castanheira que tem na nossa terra. Funai prometeu marcar a nossa terra, mas ainda não marcou no terreno. Só marcou no mapa, só marcou no papel. Por enquanto é só promessa, mas nós já sabe que temo direito a nossa terra. Nós queremo marcar logo a nossa terra porque não tá ainda invadida de cariú [não-índio]”. (Depoimento de Antônio Caibú, no início dos anos 80)
(Aquino, 1984)
Luta pela demarcação da terra
Mesmo depois do “tempo das correrias”, cuja conseqüência maior foi o deslocamento, a depopulação e a expropriação de suas terras, os Kaxarari continuaram vivendo em partes dos seus antigos territórios. A ocupação seringalista e caucheira, segundo depoimentos de velhos kaxarari, ocorreu principalmente nas áreas de seu antigo território, que eram ricas em caucho e seringa.
De 1910 para cá, os Kaxarari mudaram-se das cabeceiras do Curequeté, afluente do Ituxy, onde foram localizados por Masô, para as margens e centros do rio Aquiry e, mais recentemente, para as águas do rio Azul e seus afluentes Barrinha e Maloca. Vivendo, portanto, em partes de seus antigos territórios.
Com a passagem da BR-364 (no trecho Porto Velho-Rio Branco) nas proximidades de suas moradias e as posteriores tentativas de venda das terras cortadas por esta rodovia federal para fazendeiros do sul ligados à agropecuária, os Kaxarari ficaram temerosos de perder o pouco de terra que ainda ocupavam.
Vendo as suas antigas terras serem cortadas por picadas demarcatórias das fazendas estabelecidas na região em meados da década de 1970, as lideranças kaxarari procuraram os responsáveis da delegacia regional da Funai, localizada em Porto Velho (RO), solicitando a urgente delimitação de sua área indígena.
Foram atendidos anos mais tarde, mais precisamente em 1978, quando uma equipe da Funai de Brasília, constituída por um antropólogo e um engenheiro agrimensor, realizou a primeira delimitação de suas terras. De 1978 a 1984, os limites da área Kaxarari sofreram muitas modificações.
Mas foi somente no final da década de oitenta que os Kaxarari vieram reivindicar uma parte da terra que fora excluída equivocamente da demarcação de sua área: as Pedreiras.
(Aquino, 1984)
Ação predatória da Mendes Junior na área das Pedreiras
Entre 1988 e 1989, foi iniciado um processo de grande devastação das matas e subsolos das pedreiras, uma área situada no limite oeste do território Kaxarari, com cerca de 900 hectares, que havia sido excluída, segundo os próprios índios, intencionalmente da demarcação realizada pela Asserplan/Funai, em 1987, para beneficiar a empreiteira Mendes Junior. Esta, dispondo de equipamentos e tecnologias apropriadas (tratores, caminhões, grandes britadeiras, dinamites etc.) e ainda de vultosos recursos do próprio governo federal/BID, desenvolveu uma produção em larga escala de pedras e britas para a pavimentação da BR-364 e para a construção civil em Rio Branco.
Em 1990, alarmados com o represamento das águas das cabeceiras do rio Azul, que banhava, em seu curso médio, as antigas aldeias/colocações da Barrinha e do Azul; assustados com as explosões provocadas pelas dinamites; preocupados com o afastamento das caças, os desmatamentos realizados na área e com o aumento de doenças provocadas pelo uso da água poluída, os Kaxarari, conduzidos por suas lideranças e apoiados pela Funai e outras organizações indigenistas, ocuparam o acampamento da empreiteira Mendes Junior e paralisaram as atividades de produção de brita que há mais de dois anos vinham sendo realizadas na área das pedreiras.
O ‘embate’ realizado pelos Kaxarari no acampamento chamou atenção da opinião pública e das autoridades federais e estaduais. Ocupando pacificamente o acampamento, apreendendo equipamentos pesados e grande quantidade de pedras britadas, os índios conseguiram uma importante vitória política que garantiu a partir de 1991 a demarcação da área da Pedreira, anexando, portanto, cerca de 900 hectares à área demarcada em 1987.
Essa importante conquista se consolidou quando a Mendes Junior foi obrigada a negociar com os índios o pagamento de uma indenização pela devastação realizada no território kaxarari. Só assim puderam retirar seus equipamentos e pedras britadas apreendidas pelos índios. Uma parte do dinheiro pago pela empreiteira foi distribuída proporcionalmente entre os distintos grupos domésticos e cantineiros das comunidades kaxarari.
Além da depredação de importantes recursos naturais de sua área indígena, as atividades desenvolvidas pela Mendes Junior criaram, por outro lado, uma grande expectativa entre os índios no sentido de que eles poderiam agora administrar a exploração de pedras britadas em benefício da comunidade. Chegaram a solicitar à Funai a exploração comercial de pedras britadas de algumas de suas 14 pedreiras, mas não obtiveram resposta. (Funai, 1997)
Organização social
Os Kaxarari dividiam-se em clãs (classificação segundo uma regra de descendência baseada em uma só linha). No caso dos Kaxarari esta linha de descendência era patrilinear, ou seja, cada homem ou mulher pertencia sempre ao clã de seu próprio pai. Como em toda sociedade assim dividida, os clãs kaxarari eram exogâmicos (não se podia casar com pessoas do mesmo clã).
No início dos anos oitenta, foram identificados 18 clãs nomeados, mas no passado eram mais numerosos:
Inauêtxabê | gente da onça |
Xaualitxabê | gente da arara |
Bauêtxabê | gente do papagaio |
Xapuitxabê | gente do algodão |
Xauitxabê | gente da garça |
Txalamaitxabê | gente do Jaburu |
Tekuluitxabê | gente do passarinho bico de brasa |
Rititxabê | gente da envira |
Waraínerotxabê | gente da banana |
Txurutxabê | gente da andorinha |
Binuissakaitxabê | gente da patativa |
Xaxuitxabê | gente da pedra |
Xukitxabê | gente do tucano |
Kalatxabê | gente da arara canindé |
Tescubatxabê | gente do passarinho |
Apulitxabê | gente do tamanduá |
Kukuiritxabê | gente do gavião |
Tauãxanetxabê | gente da cana |
O casamento preferencial entre os Kaxarari era com a filha do koko (tio materno ou sogro) ou com a filha da iaiá (tia paterna ou sogra), ou seja, casamento ideal entre primos cruzados bilaterais, assim mantinha-se a exogamia clânica.
O jovem esposo costumava se deslocar para o local onde vivia a família de seu sogro, dada a regra da matrilocalidade após o casamento, e deveria trabalhar para ela. Como os filhos homens, de 15 anos em diante, saiam de seu grupo doméstico ao se casar, os genros eram muito importantes para a manutenção daquela família. Eram eles que cortavam seringa, coletavam castanha, derrubavam as matas para colocar os roçados ou trabalhavam como “bóias frias” das fazendas agropecuárias e seringais estabelecidos ao longo da BR-364. Quem decidia o casamento eram os pais dos futuros cônjuges. A separação dos casais era muito freqüente nas primeiras fases do casamento.
“De acordo com os Kaxarari, os mais jovens têm observado pouco a questão dos clãs em relação à realização dos casamentos. O número de clãs hoje citados são apenas seis” (Trecho extraído de Aspectos da fonologia da Língua Kaxarari (2004), de Gladys Cavalcante Sousa).
As crianças, ao nascerem, além de receber o nome clânico de seu pai e residir no grupo doméstico de sua mãe, possuíam nomes pessoais em sua língua nativa, que lhes eram transmitidos em gerações alternadas. Assim ensinavam os mais velhos: “o menino quando nasce recebe o nome do avô dele [avô paterno] e a menina tem o nome da avó dela [avó paterna]”.
“Por falta de pessoas detentoras dos antigos conhecimentos, o ritual de nomeação das crianças está se extinguindo. A nomeação deveria ser realizada por uma pessoa mais velha conhecedora dos nomes das famílias, pois uma criança deve receber um nome de um parente antigo; portanto, conhecer a língua e a genealogia kaxarari é imprescindível para nomear um recém-nascido na língua Kaxarari. Alguns pais relataram que seus filhos, devido à ausência de pessoas capacitadas para tal nomeação, não receberam nomes kaxarari, apenas aqueles em português” (Trecho extraído de Aspectos da fonologia da Língua Kaxarari (2004), de Gladys Cavalcante Sousa).
(Aquino, 1984)
Atividades produtivas
Os Kaxarari vivem de seus roçados de subsistência, da coleta de frutas silvestres e, eventualmente, trabalham como diaristas ou peões das fazendas e seringais estabelecidos nas proximidades de sua área.
Em seus pequenos roçados, nem sempre suficientes para alimentá-los durante todo o ano, plantam, sobretudo, mandioca mansa e brava, milho, cará, batata doce, inhame, taioba, banana, mamão, caju, abacate, abacaxi etc. Plantam também café, arroz e feijão. Para adquirir o que eles próprios não produzem, geralmente manufaturados, e muitas vezes até o que poderiam produzir em seus roçados, os Kaxarari coletam castanha durante o inverno e cortam seringa nos meses de verão para, em seguida, comercializar com os atravessadores da BR-364.
A coleta de castanha e a extração de seringa tornaram-se as principais atividades econômicas e praticamente as únicas fontes de recurso do grupo. Através da comercialização destes produtos, os Kaxarari adquirem os bens fabricados pela sociedade nacional e boa parte dos alimentos que consomem nos momentos de crise e escassez, tais como o arroz, a farinha, o feijão, as conservas, o charque, o peixe seco e salgado etc.
Para caçar, os Kaxarari utilizam espingardas e munições, além de cachorros. Dada a proximidade da BR-364, a caça está escassa dentro de suas terras, o que leva a um progressivo aumento de suas criações domésticas de galinhas, patos e porcos.
Os rios, lagos e igarapés existentes dentro da terra indígena não são piscosos. Geralmente pescam com uaca (uma espécie de tingui ou timbó) ou anzol, apenas nos meses do auge do verão.
Dos frutos silvestres, coletam principalmente o açaí, a bacaba, o patuá e o buriti, com os quais fazem nutritivos vinhos, que complementam sua dieta alimentar.
(Aquino, 1984)
Ciclo anual das atividades
De início de janeiro até fins de abril, trabalham exclusivamente na coleta, quebra e comercialização da castanha. De maio até meados de julho dedicam-se ao corte de seringa (corte de verão). De meados de julho até meados de outubro trabalham exclusivamente em seus roçados de subsistência. E, finalmente, de meados de outubro até fins de dezembro retornam ao trabalho na seringa (corte de inverno). Em fins de dezembro reiniciam o trabalho de coleta de castanha.
Tais atividades, embora não sejam excludentes, competem entre si, sobretudo em relação à extração de seringa (corte de verão) e a abertura de novos roçados. Aqui cabe a escolha dos chefes de família, pois ao optarem por roçados maiores e por uma freqüência nas caçadas e pescarias, atividades voltadas para a subsistência dos grupos domésticos, diminuem consideravelmente os dias dedicados ao trabalho na seringa durante o corte de verão, uma atividade voltada exclusivamente para o mercado.
A comercialização da castanha e da borracha representam as principais fontes de renda dos grupos Kaxarari. É, sobretudo, através da venda de latas de castanha e pranchas de borracha que adquirem as mercadorias que necessitam para viver.
Consideram a época da castanha como a mais favorável e proveitosa para suas famílias. O tempo de apanhar e quebrar castanha, que coincide com toda a estação de inverno, é representado como o de maior fartura, tanto para a subsistência das famílias, quanto para a venda no mercado regional. A castanha é também considerada como o principal “dinheiro da floresta”.
O caso da exploração ilegal de madeira
A falta de recursos para os Kaxarari organizarem a extração de seringa e a coleta de castanha por conta própria, teve como conseqüência imediata um aumento considerável nas atividades de extração predatória de madeira-de-lei dentro da área. De 1989 até março de 1993, distintos chefes de grupos domésticos kaxarari cortaram muitas árvores de frejó, mogno e cerejeira, para negociá-las posteriormente com madeireiros das vilas Extrema e Califórnia. Estes últimos, dispondo de tratores e outros instrumentos, derrubaram uma quantidade considerável de madeiras dentro da área indígena. A retirada indiscriminada de madeiras provocou uma séria devastação de suas florestas. Estas madeiras foram negociadas quase sempre a preços inferiores aos de mercado ou às vezes trocadas por mercadorias básicas e instrumentos de trabalho necessários à realização de suas safras de castanha, de seringa e agrícolas.
Migração para área das Pedreiras e a mudança na economia de subsistência
A mudança dos grupos domésticos, que viviam nas antigas aldeias do Azul e da Barrinha, para a área do ramal das Pedreiras, no início da década de noventa, desestruturou a sua economia de subsistência. A situação de penúria e fome culminou a partir do ano de 1993, quando seus animais, que antes viviam nas pastagens existentes no Azul e Barrinha, foram levados para a área do ramal das Pedreiras. Entre os seus animais, que corriam o risco de se perderem lá em suas antigas pastagens, e os seus novos roçados de terra firme, os Kaxarari optaram em perder estes últimos.
Depois que a Funai reprimiu a venda ilegal de madeira-de-lei dentro da área, os grupos domésticos passaram a se preocupar mais com seus roçados de subsistência.
A área das Pedreiras não é considerada boa para caçar e pescar. Esta parte da terra está praticamente cercada de lotes de colonos de um assentamento do Incra, que com suas máquinas e moto-serras espantam as caças. As barragens do rio Azul realizadas pela construtora Mendes Junior também dificultaram a pesca nessa região.
As caças eram encontradas em maior quantidade nos barreiros e trilhas de caça existentes nas cabeceiras dos rios Macurenem e Marmelinho. Periodicamente os Kaxarari realizavam caçadas e pescarias nas cabeceiras desse último rio, a dois dias de caminhada da área das Pedreiras, de onde traziam muita carne moqueada e/ou salgada para o consumo de suas famílias. No entanto esta área, considerada boa de caça e de peixe, foi sendo invadida por caçadores profissionais, que caçam com finalidades exclusivamente comerciais. Assim, as caças grandes estão cada vez mais escassas nas matas da área.
(Funai, 1997)
Modos de vida
Habitações
Os Kaxarari não vivem mais em suas antigas malocas e aldeias tradicionais, tal como descreveu Masô em 1910:
“As aldeias são compostas de 15 a 20 malocas ou grandes choupanas cobertas de palhas de jarina (...). As malocas são espaçosas, podendo agasalhar até 10 famílias ou aproximadamente umas 40 pessoas (...) as habitações possuem apenas duas aberturas ou portas, que à noite são tapadas com peles de onça ou de outro animal quadrúpede”. Hoje, só os índios mais velhos do Azul conheceram estes tipos de habitações. Os velhos Kaxarari descrevem as antigas moradias do seguinte modo: “Cada aldeia antiga tinha o seu nome (...). Antigamente tinha muitas malocas. Era uma maloca grande e redonda. Toda fechada, só tinha mesmo duas portas. Cabia muita gente dentro. Cada aldeia tinha muitas malocas assim ao redor e no meio ficava o terreiro grande, todo limpinho, onde fazia festa” (Depoimento de Antônio Caibú).
Os Kaxarari vivem atualmente em casa de estilo regional “duas águas”, pau-a-pique, com assoalhos e paredes laterais e internas de paxiúba e cobertas com palha de babaçu.
(Aquino, 1984)
Xamanismo
Os Kaxarari não mais praticam seus rituais tradicionais como o xamanismo. A principal técnica de cura dos pajés era a de sucção.
“Antigamente tinha pajé pra curar a gente. Quando adoecia, ele chupava no corpo e tirava aquelas pedras do corpo do doente e jogava a doença fora. Rezava pro doente ficar logo bom. Tomava rapé e kupá pra curar. Sabia muitos remédio da mata, mas agora não, mais pajé não. Tudo se acabou” (Depoimento de Antônio Caibú, extraído de Os Kaxarari (1984) de Terri Vale de Aquino).
Não existem mais pajés entre os Kaxarari. Também faziam muitas comemorações e cantorias de roda. Era comum em suas festas fazerem vestimentas de palha do olho do buriti, enfeites de penas, couros de onça, máscaras e pinturas. Tinha a festa do buiarri, que era a festa das frutas, quando todos iam para a mata apanhar ingá, naja, frutas de maçaranduba. Uma de suas brincadeiras era o bili, um jogo de bola de caucho, jogado com o joelho, parecido com o futebol dos cariú [não-índio].
O kupá era uma prática xamânica que provocava estados alterados de consciência, que “dava porre, suava muito, fazia sonhar e curava”. Era uma espécie de lavagem feita por um tipo de planta.
A bebida kupá, no princípio era restrita aos homens e ingerida somente pelos mais velhos. Mulheres e crianças não participavam do ritual de abertura dos trabalhos. Curiosamente houve casos de mulheres que atuavam como pajé e ministravam diagnósticos e curas de enfermidades de origem alegada aos espíritos. A cura muitas vezes era ministrada através do sopro de fumaça de tabaco sobre o local ou até mesmo todo o corpo do paciente (biakintahi). Quando sob o efeito do kupá, o pajé podia ver que tipo de enfermidade ou presença espiritual estava agindo no paciente.
(Santos, 2002)
Fontes de informação
- AQUINO, Terri Valle. Os Kaxarari. Relatório de avaliação. CPI-Acre, 1985.
- ----------Relatório de Acompanhamento e complementação do Projeto Kaxarari. Manuscrito. CPI-Acre, 1983.
- ----------Demarcação que é bom nada. In: Aconteceu/Povos Indígenas no Brasil. CEDI, São Paulo, 1982.
- CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). Relatório de vista aos índios Kaxarari (26 a 29 de junho de 1984).
- COUTO, Alexandre. Ortografia Kaxarari: uma proposta. Porto Velho, 2005.
- CRUVINEL, Noraldino. Relatório de Delimitação da Área Kaxarari do rio Azul. Funai, Brasília, 1978.
- GAULIK, Pe. Pedro Maria. Relatório sobre a Situação dos Kaxarari da BR-364. Encaminhado à Funai, 1975 (manuscrito).
- MACEDO, Antônio Luis. Relatório de Acompanhamento do Projeto Kaxarari. CPI-Acre, 1984. (manuscrito)
- MASÔ, João Alberto. “Os Índios Cachararys”. In: Revista da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Tomo XXII e XXIV, pp. 98-10 (1909-1911).
- MEIRELLES, José Carlos & AQUINO, Terri. Entrevista gravada com as Lideranças Kaxarari do rio Azul/Barrinha. CPI-Acre, 1981.
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