Aweti
- Autodenominação
- Onde estão Quantos são
- MT 221 (Siasi/Sesai, 2020)
- Família linguística
- Aweti
Os Aweti, falantes de uma língua tupi, vivem no centro da região do Alto Xingu, entre os grupos de língua aruak a oeste e sul, e entre os de língua karib a leste. Tradicionalmente, exerceram um importante papel entre os povos alto-xinguanos como intermediários na circulação de notícias ou bens e como anfitriões para os viajantes, mas a perda populacional catastrófica sofrida nas primeiras décadas do século XX, que quase resultou no seu desaparecimento como grupo, fez com que sua presença na área se tornasse menos visível. Certamente, os Aweti constituem o povo menos conhecido do Alto Xingu, e o mesmo vale para sua língua. Com a recuperação populacional, no entanto, os Aweti retomam muito da vida cultural tradicional e têm procurado marcar presença na atual sociedade alto-xinguana.
(**) Alguns dados e informações deste verbete foram coletados em 2003
Nome
O nome “Aweti” aplica-se originalmente a um dos grupos de fala tupi cuja fusão deu origem aos atuais Aweti. Um desses grupos, de língua semelhante, do qual descendem quase todos os Aweti atuais, conforme sua tradição oral, ,se chamava Enumaniá. Em sua língua, os Aweti se chamam de Awytyza. Talvez esse nome esteja relacionado com a palavra ayté, “homem”; o “-za” indica pluralidade. Os grupos vizinhos também usam nomes semelhantes, como Auyty ou Ahyty.
Nesse nome aparece duas vezes o “y”, uma vogal semelhante ao “i”, pronunciado com a boca quase fechada e os lábios não arredondados, mas com a língua mais para trás, como se fosse um “u”. Possivelmente, Karl von den Steinen - estudioso alemão que primeiro documentou hábitos e costumes de povos indígenas no Brasil Central, inclusive no Alto Xingu -, ao escutar este som, representou-o por um “e” átono e, na sílaba tônica, por “ö”, vogais que no alemão aproximam-se ao “y”.
Como resultado, os Aweti ficaram conhecidos na literatura por décadas como “Auetö”. Em português, adotou-se o “w” em vez do “u” e trocou-se o “ö”, que não existe nesta língua, pelo “i” — produzindo a forma hoje comumente utilizada: Aweti. Os membros do grupo utilizam-na como sobrenome individual quando adquirem a (carteira de) “identidade” formal na sociedade brasileira.
Localização
Os Aweti habitam ainda hoje o local onde os encontrou von den Steinen no final do século XIX: a região vizinha aos remansos, canais e poços que formam o ribeirão Tuatuari, numa faixa de floresta alta que o separa do baixo Kurisevo, cerca de 20 km ao sul do Posto Leonardo (Apakwat, “toca da ariranha”, em aweti). Ocupam assim o coração da área do Alto Xingu, o que favoreceu a posição de intermediários nas relações de troca que parecem ter desempenhado no passado.
Costumam deslocar sua(s) aldeia(s) a cada 15 a 30 anos, permanecendo sempre no interior de uma mesma área, em um diâmetro de uns poucos quilômetros (ainda que tenham chegado pelo menos uma vez a ocupar a margem esquerda do Tuatuarí, onde lembram particularmente de uma aldeia chamada Ajkulula). Porém, o acesso fluvial principal às aldeias sempre foi pelo porto Tsuepelu, no Kurisevo, já mencionado por von den Steinen e em uso até hoje. A maioria das aldeias antigas ainda lembradas ou visíveis encontra-se no caminho reto que liga Tsuepelu ao atual portinho de banho no Tuatuari.
A principal aldeia atual, Tazu’jytetam (“aldeia da pequena formiga de fogo”), localiza-se a cerca de 200 metros do Tuatuari, e a aproximadamente 7 km de Tsuepelu. Há caminhos por terra que a ligam com o Posto Leonardo ao norte, e com a aldeia Mehináku ao sul. Desde 2002, uma nova aldeia vem sendo criada, habitada por uma família extensa e seus associados, localizada também na margem direita do Tuatuari, cerca de 16 km ao norte da aldeia principal, já nas proximidades do Posto Leonardo.
Frequentemente, encontramos mapas em que a aldeia Aweti é localizada erroneamente, perto da fronteira sul do Parque do Xingu, mais ou menos na posição da aldeia atual dos Mehinaku. Esse erro se deu possivelmente na época em que os Mehinaku viviam perto do Posto Leonardo, ao norte dos Aweti.
Língua
Os Aweti falam uma língua que pertence ao grande agrupamento lingüístico tupi, bem conhecido pelos europeus desde o século XVI, quando encontraram, particularmente, os Tupinambá na costa brasileira e os Guarani na região do atual Paraguai. Dessa forma, o primeiro pesquisador a penetrar o Alto Xingu, Karl von den Steinen, reconheceu sem dificuldades essa afiliação lingüística do aweti.
Como as primeiras informações referentes a essa língua restringiam-se a breves listas de palavras, coletadas pelos primeiros exploradores alemães, acreditou-se inicialmente que o aweti pertencia à família tupi-guarani (a principal família do tronco tupi), assim como o kamayurá, falado por seus vizinhos. No fim dos anos 60, porém, iniciou-se o estudo científico do aweti, e embora tenha sido interrompido na década seguinte, aprendeu-se o suficiente para reconsiderar sua classificação.
Apesar de muitas semelhanças, o aweti difere em vários aspectos cruciais das línguas tupi-guarani, por isso se considera atualmente que constitua uma família separada - pequena, com uma só língua (viva) - dentro do tronco tupi.
Semelhante ao sateré-mawé, é evidente que o aweti se aproxima muito mais das línguas tupi-guarani do que as demais famílias do mesmo tronco, mas as relações exatas no interior deste agrupamento “Mawetí-Guaraní" ainda têm que ser estabelecidas.
Um fato interessante do aweti é a variação existente entre a fala dos homens e a das mulheres. Usam-se, por exemplo, palavras diferentes para dizer “eu” – os homens dizem atít, e as mulheres, itó. Isso faz lembrar o caso do kokama, que se suspeita ser uma língua tupi adotada por um povo que originalmente falava uma outra língua. No caso do aweti, pode-se até especular algo semelhante – vale a pena lembrar que várias narrativas dos Aweti e grupos vizinhos os retratam como resultado de uma fusão de diferentes povos, entre os quais povos de língua semelhante à dos Kamayurá, que é tupi-guarani. Estaríamos, pois, diante de uma língua com uma base tupi (mas não tupi-guarani) que absorveu traços de línguas tupi-guarani — o que explicaria, em parte, sua proximidade com esta família? Pesquisas recentes apontam em uma outra direção, mas essas questões, bem como a influência das línguas aruak e karib, que pode ser resultado da convivência desse povo com os demais alto-xinguanos, requerem maior estudo.
Hoje, na aldeia principal, o aweti é a língua claramente dominante, sendo aprendido como língua principal pela quase totalidade das crianças. Isso mostra que o mero número de falantes pode ser menos significativo do que outros fatores que interferem na vitalidade de uma língua. Nesse caso, apesar da redução populacional traumática, sobretudo na primeira metade século XX, uma série de circunstâncias favoráveis podem ser apontadas, dentre elas a capacidade de manter sua própria aldeia e a unidade interna do grupo (que impediu maiores cisões), e a possibilidade de manter reduzido o número de intercasamentos com membros de outros grupos. Mesmo o relativo isolamento em que se mantiveram até recentemente, tanto perante a sociedade envolvente como no interior do complexo alto-xinguano, pode ter tido nesse sentido um papel positivo.
Desde 1998, vem se desenvolvendo um projeto de documentação da língua e aspectos da cultura aweti, que visa a construção de um acervo digital que inclui gravações em áudio e vídeo, com transcrições, traduções e anotações lingüísticas detalhadas. Isso vem sendo feito em colaboração com projetos semelhantes em andamento entre os Kuikuro e Trumai.
População
Os Aweti somavam em 2006 cerca de 140 indivíduos, vivendo em duas aldeias de 85 e 55 pessoas respectivamente. Em 2011 a população Aweti soma 195 pessoas - esse número representa uma grande recuperação populacional diante da profunda crise demográfica que enfrentaram no século XX.
Não sabemos quantos eram ao chegar na região, nem exatamente quantos grupos diferentes contribuiram para a formação dos Aweti atuais. Só podemos especular que a aldeia aweti encontrava-se em condições semelhantes as demais aldeias alto-xinguanas, que tinham entre 150 e 300 habitantes por ocasião da visita dos primeiros exploradores, no fim do século XIX.
Como os demais xinguanos, os Aweti experimentaram, nas primeiras décadas do século XX, um agudo declínio populacional. O Cap. Vicente de Paulo Vasconcelos, que visitou sua aldeia em 1924, já os encontrou reduzidos a cerca de 80 pessoas. Os antropólogos que trabalharam no Alto Xingu no final da década de 1940 registraram uma população de menos de 30 pessoas; a epidemia de sarampo de 1954 lhes custaria oito vidas, reduzindo-os a 23 indivíduos.
A partir daí começam a se recuperar: eram cerca de 45 por ocasião da pesquisa que George Zarur fez entre eles entre 1971 e 1972; nos anos de 1990 atingem a marca dos 90, ultrapassando enfim a população do ano de 1924 (PIB 1996:7).
A chegada no Alto Xingu
Os Aweti chegaram no Alto Xingu muito provavelmente depois que os povos karib alto-xinguanos (os antepassados dos atuais Kuikuro, Kalapalo, Matipu e Nahukwá) ali se instalaram ao lado de grupos aruak previamente estabelecidos na área (ancestrais dos Waurá, Mehináku e dos extintos Kustenau), mas possivelmente algo antes da chegada dos antepassados dos atuais Yawalapíti e Kamayurá. Isso sugere que a entrada dos Aweti na região, e sua própria fixação em seu território atual, tenham se dado entre os séculos XVII e XVIII.
A pesquisa etno-arqueológica recente reforça claramente a hipótese de que uma acomodação de grupos de língua aruak-karib mais antiga tenha constituído a base do sistema alto-xinguano. A penetração dos povos Tupi, dentre outros, na região - provavelmente um efeito das transformações e movimentos continentais desencadeados pela Conquista e colonização, que se acentuam no século XVIII - não poderia certamente ter se dado sem conflitos. O resultado desses conflitos foi, mais do que a expulsão, a acomodação dos recém-chegados. Esta implicou no desaparecimento de vários grupos que foram extintos ou absorvidos por outros, aliados ou inimigos. Deste tempo de guerras, os tupi xinguanos guardam ainda a memória.
Tudo indica que aqueles hoje conhecidos como Kamayurá e Aweti são na verdade os descendentes de uma variedade de contingentes tupi que adentraram a região e aí se instalaram em levas sucessivas. O antropólogo Rafael de Menezes Bastos sugere que o nome "Kamayurá" fosse originalmente aplicado a todos os tupi recém-chegados: Apyap, Karayaya, Arupaci, Ka'atyp, Anumaniá, Wyrapat. Esses grupos desenvolveram políticas de alianças diferenciadas entre si e com os não-tupi, tanto entre os alto-xinguanos quanto entre seus vizinhos/inimigos. Hoje, as diferenças de origem continuam se expressando na fala dos descendentes, e esses ainda se opõem nas disputas políticas no interior das aldeias.
Em suas narrativas, os atuais Aweti se identificam como descendentes de uma combinação entre antigos Aweti e Enumaniá. Referências aos Enumaniá na literatura são escassas, mas existem. Os irmãos Villas Bôas falam dos "Anumaniá" como uma "tribo" desaparecida, aliada dos Aweti. Ambos os grupos teriam invadido a região pelo rio Kurisevo, juntamente com os Bakairi (com os quais os Aweti mantiveram laços estreitos até a saída daqueles da região, no início do século XX), atacando indistintamente todas as "tribos", até eventualmente se fixarem próximos à desembocadura do referido rio. Pouco tempo depois, os Anumaniá teriam se separado e se deslocado para a região da lagoa de Tafununu. Numa visita aos Trumai, então aldeados em Kranhãnhã (sítio na margem direita do Kuluene, abaixo da embocadura do Kuliseu, território de várias aldeias trumai), "lugar relativamente perto da lagoa onde residiam", os homens teriam sido todos massacrados; as mulheres e velhos que não tinham participado da visita refugiaram-se entre os Aweti (Villas Bôas 1970:31-2).
Segundo Bastos, os Enumaniá constituem um dos diversos contingentes tupi que teriam adentrado a região no séculos XVIII-XIX, posteriormente incorporado pelos Aweti. O autor menciona em particular um relato referente a uma guerra dos Kamayurá contra uma aliança Anumania-Wyrawat. Os Anumania, segundo o narrador kamayurá, são os ancestrais dos Aweti, e os Wyrawat um grupo de língua similar ao kamayurá, mas muito parecido com os Aweti, que também absorveram seus remanescentes.
Os Aweti teriam, pois, constituído um segundo pólo de aglutinação dos contingentes tupi. Sua entrada na região nuclear da bacia pode ter sido algo anterior a dos Kamayurá, cuja fixação em Ipavu, antigo território waurá, remonta talvez à primeira metade do século XIX. Na tradição oral kuikuro, a chegada dos Aweti data do tempo em que os ancestrais daqueles karib tinham ainda aldeias no Tafununu — isto é, provavelmente antes de 1750. Segundo uma narrativa aweti, é na região do Tafununu que os Enumaniá, juntamente com aliados (Wyrapat [em Aweti: Wyra’wara] e Bakairi [Makayryza]), partindo de Parua, vão primeiro fazer guerra, para depois se estabelecerem em Tsuepelu, em seu território atual. Embora o narrador se refira apenas aos Enumaniá, o tradutor nos explica: "junto com os Aweti…", indicando que a associação entre os dois povos antecede a fixação em Tsuepelu.
Seja como for, essa fixação representa o momento de acomodação dos Enumaniá e Aweti recém-chegados na teia de relações "pacíficas" que ligava entre si os ocupantes tradicionais da região. Essa acomodação exige uma transformação que o narrador enuncia claramente: é preciso “virar gente", deixar de ser waraju, "índio", quer dizer não-xinguano: abandonar a ferocidade e a guerra. Ela envolve também a adoção de todo um modo de vida, de uma cosmologia, de um complexo de práticas rituais, que constitui o patrimônio comum das tribos da área, e ao qual os grupos formadores dos Aweti também não deixaram de dar sua própria contribuição.
História recente
O primeiro registro histórico da existência dos Aweti deve-se ao pesquisador Karl von den Steinen. Um mapa para ele desenhado pelo chefe Suyá em 1884 localizava-os entre os habitantes do Kuliseu, abaixo dos Mehinaku e acima dos Kamayurá e Trumai, lado a lado com os "Arauiti". A informação foi confirmada na segunda expedição, de 1887, quando o explorador visitou a aldeia aweti, situada a cerca de hora e meia de caminhada de um porto no Kuliseu, o mesmo porto, chamado Tsuepelu, que utilizam hoje.
Viviam já então perto de uma intrincada rede de canais e lagoas através da qual se podia alcançar os Yawalapiti e os Trumai, assim como (fazendo parte do trajeto por terra) os Mehinaku, os Kamayurá e os Waurá. Quando da visita de von den Steinen, a poucos metros da aldeia aweti erguiam-se efetivamente duas casas de "Arauiti", denominação que "já tinha o inteiro valor de uma designação de tribo", apesar de tratarem-se apenas de duas famílias, formadas por homens aweti casados com mulheres yawalapiti — o que sugere que esses dois grupos tenham tido relações especialmente próximas; ainda recentemente, casamentos entre eles se revelavam importantes na teia do parentesco aweti.
Os Aweti vivem ainda hoje nessa mesma região: o antropólogo George Zarur, que fez pesquisa entre eles na década de 1970, contou aí seis sítios de antigas aldeias.
A aldeia visitada por von den Steinen continha um "rancho de festas" ou "casa de flautas", ao lado da qual havia uma sepultura. Os expedicionários foram devidamente recepcionados pelo chefe “Auayato” (Awajatu), enfeitado com colar de garras de onça e diadema de pele do mesmo animal, com um longo discurso proferido no centro da aldeia. O alemão impressionou-se com as máscaras, com as pinturas nos utensílios, postes e traves de uma das casas (o "rancho dos artistas"), e com a quantidade de dardos que, utilizados na dança pelos outros povos, seriam segundo ele empregados pelos Aweti e Trumai como armas de guerra. Chamou sua atenção também a grande presença de indivíduos de outros grupos: Waurá, Yawalapiti, Kamayurá, Mehinaku, Bakairi, e Trumai. Ehrenreich, que o acompanhava, escreve:
os mais simpatizados [dos povos da região] parecem ser os Auetös, talvez devido às qualidades pessoaes do seu cacique, que, na verdade, era um velho excellente e respeitável. As suas aldeias eram constantemente frequentadas por índios de todas as outras tribos e serviam, pode-se dizer, de estações postaes; pois ali chegavam notícias e recados de todos os lados para serem transmitidos em direções oppostas" (1929:255)
As expedições de H. Meyer (em 1895/96 e 1898/99) e M. Schmidt (em 1900/01) reencontraram os Aweti na mesma região. Schmidt pôde visitar a casa de festas, observar as máscaras e flautas e "compor uma pequena coleção etnográfica". Menciona a coexistência de "vários caciques" na comunidade, e registra também um canto do "yauari" (jawari), o dardo de ponta de pedra ou madeira que se apresenta como "principal arma guerreira dos índios auetos". A fase seguinte de exploração dos formadores do Xingu inicia-se com as expedições da Comissão Rondon. O Cap. Ramiro Noronha, que penetrou a região em 1920, não visitou a aldeia dos Aweti, mas alguns desses índios, entre eles um chefe, Tanacú, juntaram-se aos expedicionários. Quatro anos depois, o Cap. Vicente de Paulo Vasconcelos subiu o Kuliseu, indo até a aldeia Aweti, onde se encontrou com o chefe de nome Avaiatú (Awajatu) - talvez um “neto” daquele encontrado por von den Steinen, dada a norma de transmissão de nomes de avós para netos prevalescente na área - retratado pelo fotógrafo Cap. Tomaz Reis. Vasconcelos descreve um círculo de 50 metros de raio em que se dispunham seis casas elípticas bem construídas, mas não fala em casa de flautas, e estima a população em 80 pessoas.
Os pesquisadores das décadas seguintes não acrescentaram muito ao conhecimento sobre os Aweti, sendo escassas as menções ao grupo nos trabalhos etnológicos sobre o Xingu. Oberg os apresenta como hábeis comerciantes, agindo como intermediários entre o posto indígena e outras tribos. Essa posição intermediária dos Aweti nas redes de troca, já notada por Ehrenreich, é mencionada também por Galvão, mas pode ser que, no final dos anos 40, estivesse seriamente ameaçada. Um dos grupos então mais reduzidos — Galvão fala deles e dos Trumai como estando "em vias de extinção" — esses Tupi já enfrentavam possivelmente o relativo isolamento que marcaria sua posição na política intertribal na segunda metade do século XX.
Os Aweti hoje
É notável que os Aweti tenham conseguido manter sua unidade como um grupo distinto, e, em particular, sua identidade lingüística, apesar da catástrofe demográfica que experimentaram.
Contudo, a redução demográfica não deixou de marcar o grupo, especialmente em termos culturais. Várias tradições, passadas de uma geração de especialistas formados para a próxima, foram interrompidas; notadamente não há mais cantores de formação completa na aldeia. O mesmo vale para outras áreas, inclusive para práticas culturais essenciais para a execução da chefia. Também houve, durante décadas, uma falta da “massa crítica” para a execução de grandes festas e rituais intra e intertribais. Só em 1998 os Aweti voltaram a festejar um Kwar’yp, e em 2002 um Jawari. Ainda assim, os jovens da aldeia cresceram sem conhecer, numa base regular na própria aldeia, uma série de rituais, vários dos quais ainda vivos em aldeias vizinhas.
A recente divisão da aldeia também causa preocupações nesse sentido. Aumenta a probabilidade de intercasamentos com membros de outros grupos, o que significa ou uma estagnação demográfica (se o casal se instala na aldeia do parceiro não-Aweti, o que, por várias razões, é o cenário mais provável, independente do sexo do cônjuge Aweti) ou um aumento da presença de outras línguas nas aldeias aweti.
Na aldeia matriz havia, em 2003, somente seis pessoas falantes de outras línguas (sobretudo do Kamayurá, do qual quase todos os Aweti têm no mínimo domínio passivo). Já na nova aldeia, que se constituiu de pessoas vindas tanto da aldeia matriz como de outros lugares, havia uma forte presença de falantes de outras línguas: nove adultos preferiam o Kamayurá (alguns deles nem entendiam bem o Aweti), 12 eram bilingües em graus variados, enquanto 17 adultos tinham o Aweti como língua principal. Mais da metade das 13 crianças cresciam, então, em famílias onde ambos os pais são falantes de outras línguas. Dependerá do comportamento cotidiano, particularmente dos bilíngües, se o aweti manterá sua força nessa aldeia, ou se terá ali uma trajetória semelhante ao yawalapiti.
Ao mesmo tempo, temos que lembrar a presença cada vez mais forte de elementos culturais não-indígenas nas aldeias aweti (como em todas as aldeias alto-xinguanas). O acesso mais fácil à cidade e a chegada da mídia de massa, bem como a presença mais regular de brancos na aldeia, não deixam de ter efeito, pelo menos no plano ideológico e nos interesses, sobretudo da geração jovem. Aos poucos, o cobertor começa a coexistir com o fogo, a televisão com as narrativas orais, e o futebol com o treino para o huka-huka.
Fora das duas aldeias, há alguns Aweti vivendo em outros lugares no Parque Indígena do Xingu, a saber entre os Kamayurá, com os Trumai e no Posto Leonardo. Em nenhum destes lugares a língua aweti é passada para a próxima geração. Há possibilidades de alguns deles voltarem para a aldeia principal, levando suas famílias. Isso significa, certamente, um fortalecimento dos Aweti em termos demográficos e culturais, dependendo do conhecimento e das habilidades das pessoas em questão. Mas, ao mesmo tempo, pode significar um enfraquecimento da língua, com o aumento significativo de falantes de outras línguas na aldeia.
A aldeia e o cotidiano
A aldeia aweti, como as demais aldeias alto-xinguanas, compõe-se de um conjunto de casas coletivas circularmente dispostas em torno de uma praça central. Em julho de 2003, havia uma dúzia de casas na aldeia principal, enquanto a aldeia nova, ainda em construção, conta com somente duas casas prontas. No centro da praça da aldeia original, ergue-se a casa dos homens, que serve como lugar de reunião masculino.
Tradicionalmente, essa construção, o “rancho” típico das aldeias xinguanas, serve também para guardar as flautas sagradas, denominadas em aweti “karytu”. Nesse caso, a casa dos homens torna-se estritamente interdita às mulheres, a quem não é permitido ver as flautas, e menos ainda identificar os tocadores. O complexo ritual das flautas requer a presença na aldeia de, no mínimo, um “dono” de flautas, que as adquire e permite ou solicita seu uso, e tocadores. O desempenho de ambas as funções envolve a circulação de riquezas consideráveis, supondo a cooperação ritualizada de toda a comunidade. A retribuição devida aos especialistas é onerosa, sobretudo considerando-se que, na aldeia aweti, não existe hoje ninguém que saiba como produzir os instrumentos. Possivelmente por essas razões as flautas não têm sido fabricadas, nem seus rituais realizados por talvez mais de vinte anos, embora seja uma tradição que os Aweti possam agora recuperar.
A praça central é, de modo geral, um espaço principalmente masculino, onde os homens se reúnem para fumar e conversar. Além disso, constitui o espaço “público”, onde se realizam as atividades que concernem à aldeia como um todo e, principalmente, aquelas que envolvem o contato e interação coletiva dos Aweti com estrangeiros de todo tipo, humanos ou não: ali são recepcionados os mensageiros e visitantes de outras tribos ou não-índios, se desenrolam as cenas principais dos grandes rituais (em que se contatam vários seres e espíritos diferentes) e são enterrados os mortos adultos. À noite, a praça é dita pertencer a Karytu, o espírito relacionado às flautas rituais cerimoniais.
Novas atividades e novos interesses - alguns introduzidos pelo contato com o mundo dos “brancos”, outros não - criam novos espaços, simbólicos e físicos, que polarizam também a vida na comunidade. Por exemplo, uma boa parte da comunicação tanto com aldeias vizinhas como com pessoas e instituições do mundo dos não-índios se dá, nos dias de hoje, pelo rádio. Assuntos freqüentes são os referentes a saúde, escola, aquisição e manutenção de bens e equipamentos não-indígenas. Desde 1999 localizado na casa do chefe, o rádio consiste em um recurso cujo controle é presentemente uma das insígnias e fontes de prestígio do chefe designado de uma aldeia xinguana, essencial para a o desempenho de sua tarefa de intermediação entre os interesses da aldeia e instituições e indivíduos fora dela. Por isso, quando há assuntos desse tipo a serem tratados, procura-se essa “casa do chefe”, o mo’atap (que é diferente de uma mera casa comum).
Um outro equipamento tecnológico tem um potencial semelhante: a televisão. A aldeia aweti foi certamente uma das últimas no Alto Xingu a adquirir a sua (o que ocorreu aproximadamente em 1998), juntamente com um gerador de eletricidade a diesel e uma antena parabólica. Agora já não é mais a única na comunidade. Durante o dia, quando o barulho do gerador anuncia que a TV está funcionando, dentro de poucos instantes se vê a correria da criançada em direção ao mo’atap. À noite, são os adultos que se reúnem para assistir o telejornal e talvez um filme. Em alguns casos, a TV pode assumir um papel considerável na aquisição do português. O primeiro lugar na preferência da audiência aweti, entretanto, é claramente o futebol (que se entende também sem palavras).
O futebol é, aliás, um elemento cada vez mais importante na vida cotidiana – trata-se certamente do esporte mais praticado na aldeia, antes mesmo do tradicional huka-huka. A praça central também funciona como campo, e competições futebolísticas são uma oportunidade cada vez mais procurada para encontros intertribais (e inclusive uma oportunidade para conhecer futuros noivos e noivas). Meninas e mulheres também se dedicam ao esporte, e com notável sucesso.
Outros espaços novos, potencialmente comunitários, são aqueles onde se concentram atividades como o atendimento sanitário ou a escola. A casa que servia como núcleo de um posto de saúde, a “farmácia” (motang upap), estava localizada dentro do círculo principal das casas ao redor da grande praça central, indicando a integração bem sucedida do papel social do seu “dono”, o agente (indígena) de saúde (que agora, todavia, retirou-se da aldeia principal, juntando-se à sua família na nova comunidade).
Diferentemente da “farmácia”, a escola está localizada em segundo plano, mais afastado do centro da aldeia, atrás da casa de um dos professores. Os professores ainda estão em formação, e apesar de a escola já funcionar com alguma regularidade durante a maior parte do ano, o currículo e sua organização em geral são ainda assuntos em debate na aldeia (como em aldeias vizinhas).
As casas reúnem em geral um conjunto de famílias elementares ligadas por laços de parentesco e afinidade. À família do “dono da casa” (ogitat) agregam-se, assim, aquelas formadas por seus filhos, genros ou cunhados, além de indivíduos dependentes (viúvos, separados), segundo um ideal de residência patrilocal (o homem vive na casa do pai), flexibilizado, porém, por diversas considerações (o tempo de serviço-da-noiva que o jovem deve ao sogro, a isenção desse de que gozam os filhos de chefes etc). Cada unidade doméstica assim constituída forma, em certa medida, uma unidade de consumo: no centro da casa, entre os esteios centrais, localizam-se o fogo, as chapas e as panelas para a produção do beiju que será consumido por todos os seus moradores.
A produção alimentar cotidiana, todavia, dá-se em bases mais individuais. As roças (ko) são plantadas por um homem, que será seu dono, com a ajuda de sua família nuclear, e seus produtos são colhidos pela esposa. A caça (de aves e pequenos animais, como macacos, uma vez que os alto-xinguanos não consomem a carne da maior parte dos animais terrestres) e a pesca (que constitui a maior fonte de proteínas, principalmente na estação seca) são atividades geralmente desenvolvidas individualmente, ou com a colaboração de familiares ou de um amigo ou parente próximo.
Algumas atividades produtivas são, no entanto, desenvolvidas coletivamente, às vezes com a participação de todos os homens da aldeia: a construção de casas, a derrubada da mata para a abertura de roças, e a pescaria coletiva com timbó. Essa cooperação envolve relações e obrigações rituais entre os homens e os espíritos, e em especial com Karytu, espírito que está associado aos homens como coletividade. Assim, quando alguém deseja realizar uma atividade que exija a cooperação de todos os homens, isto é, que exija o “trabalho de Karytu”, deve promovê-la fornecendo ao “dono” desse ritual os alimentos (beiju e peixe) necessários, que serão entregues a todos os participantes e por eles consumidos coletivamente em frente à casa dos homens.
A produção do sal vegetal é uma das especialidades tradicionais dos Aweti no interior do sistema de trocas alto-xinguano, consistindo portanto não apenas em um produto alimentar, mas também em um meio de aquisição de produtos indígenas como a cerâmica fabricada pelos grupos de língua aruak (especialmente os Waurá) ou os colares de caramujo dos Karib. A produção do sal é uma atividade que requer a cooperação de famílias inteiras, mas algumas das atividades de processamento são restritas a um ou outro sexo.
A base alimentar é a mandioca, em forma de diferentes tipos de beiju, para diversos fins e com diferente valor simbólico. A produção e utilização de polvilho “nobre” e a generosidade são fontes importantes de prestígio. Também são necessárias para exercer um papel significativo na organização das “festas”, dos ciclos rituais, um espaço importante na reprodução constante da estrutura social e política da aldeia, sempre em redefinição competitiva.
A maioria das atividades do cultivo e especialmente do processamento da mandioca são privilégio e dever das mulheres. Por isso, o número de mulheres adultas e produtivas é um fator importante no posicionamento econômico e, portanto, social das casas e famílias. Não é a toa que a prática da poligamia, no caso dos Aweti, predomina entre lideranças, embora teoricamente não seja proibida aos demais. Além da mandioca, plantam-se a pimenta, a batata doce (consumida misturada com mani’oky, uma bebida doce e quente, à base de mandioca, chamada pelos brancos de “perereba”) e, hoje, mamãozeiros, bananeiras e outras frutas introduzidas por não-índios. Faz-se também a coleta de diversos frutos semi-cultivados, como o pequi (especialmente importante na cultura xinguana, figurando destacadamente em seu ritual e mitologia) ou a mangaba. O uso do milho se perdeu entre os Aweti há algumas décadas, mas deve ser brevemente recuperado.
Há uma clara divisão de trabalho e funções entre homens e mulheres na produção de objetos artesanais, seja de uso prático (bancos, redes, diversos tipos de recipientes, armas e ferramentas, etc.) ou simbólico (máscaras, flautas, adornos etc.). Por exemplo, a fabricação das redes é domínio das mulheres. Os homens produzem armas, bancos e a maioria dos objetos simbólicos, usados nos rituais. Alguns adornos, especialmente não-tradicionais e com potencial de comercialização, são produzidos por indivíduos de ambos os sexos. Em geral, mulheres podem possuir e negociar seus bens da mesma forma que os homens, e ambos participam de encontros rituais de troca (joro’jyt, em Aweti, geralmente conhecidos pelo nome Kamajurá de mojtarã). Poucas plantas são cultivadas para o consumo não-alimentar; entre elas, o urucu, o jenipapo (em Aweti: jukwãngyt e te-typap; para a pintura de objetos e do corpo humano) e o algodão (amatitu, hoje em processo de substituição pelo algodão industrial). Algumas plantas têm vários usos, especialmente a palmeira buriti (tapaj’yp), utilizada, entre outras coisas, para a produção de redes e cordas em geral, e como palha para cobrir as casas. Um adorno tradicional dos povos xinguanos, que às vezes ainda se vê em indivíduos aweti de idade mais avançada, eram as tornozeleiras grossas de casca de embira.
Os Aweti consomem cada vez mais uma série de bens adquiridos nas cidades – utensílios de metal (facas e outras ferramentas, agulhas, anzóis etc.), roupas, armas e objetos de tecnologia não-indígena (lanternas, bicicletas, relógios e toca-fitas etc.). Para tal, dependem hoje menos do que antes da assistência da Funai. Geralmente, um grupo de homens, em sua maioria pais de família, organiza e patrocina conjuntamente a excursão de alguns deles à cidade, para vender produtos de artesanato (bancos, cestaria, armas, redes, plumária etc.) a compradores especializados, e para comprar produtos comerciais diversos — doces e pilhas, peças de bicicletas, chinelos, roupas e, em alguns casos, máquinas para costurar, televisões. O barco vai e volta maciçamente carregado. Entre os Aweti, diferentemente de outros grupos, ainda é rara a importação de alimentos industrializados. Por outro lado, existe uma quantidade considerável de brinquedos infantis e produtos eletrônicos. Se possível, todos os membros da família recebem uma parte das compras, especialmente aqueles que ajudaram na fabricação dos bens trocados. Por isso, as mulheres, ainda que indiretamente e muitas vezes sem nem saber falar português, participam no processo produtivo e consumptivo do mundo global.
Ciclo de Vida
Fabricando pessoas
As casas coletivas são onde as pessoas xinguanas são formadas como tais, embora a própria concepção provavelmente muitas vezes aconteça no mato ao redor da aldeia, especialmente nas roças ou perto do caminho para a água, onde os casais oficiais, mas particularmente namorados clandestinos, preferem viver seus momentos de intimidade.
Durante a gravidez (como durante a amamentação) a mulher e também o homem têm que respeitar certas restrições alimentares para proteger o bebê das influências patogênicas dos kat, bichos ou “espíritos”. No caso do nascimento do primeiro filho (ou filha), o pai observa um período de repouso imediatamente depois do nascimento, até que caia o umbigo da criança, e depois uma fase de reclusão semelhante àquela da juventude (ver abaixo).
O parto acontece fora, mas perto da casa. A mulher dá à luz de cócoras, com o apoio da mãe, de uma irmã ou tia, mas nenhum homem faz-se presente, com a possível exceção de um pajé (mopat), no caso de um parto de risco. Crianças com claros defeitos físicos, bem como gêmeos, são enterradas e abandonadas, o que também pode acontecer no caso de filhos indesejados, especialmente quando se trata de mães solteiras. No caso de uma gravidez “de risco”, o parto pode hoje em dia acontecer no Posto Leonardo ou em Canarana.
As crianças recebem os seus nomes (que são uma propriedade individual hereditária) dos avós. Como a enunciação dos nomes dos sogros é absolutamente proibida, cada Aweti, homem ou mulher, tem dois nomes, um que é usado pelo pai e seus consangüíneos, e outro usado pela mãe. Os nomes são trocados em algumas ocasiões durante a vida. Os avós, em especial, têm freqüentemente que passar seu nome para um novo neto, e devem então eles mesmos assumir outro(s) nome(s), provenientes mais uma vez de seus próprios avós.
A partir do momento em que uma criança começa a andar e falar, ela torna-se parte da comunidade Aweti; em caso de falecimento, será objeto de cerimônias de luto e receberá uma sepultura no centro da aldeia, como um adulto. Normalmente, os bebês e as crianças pequenas ficam quase o dia todo com a mãe, que os carrega inclusive quando vai buscar água ou quando parte para a roça pela manhã. Quando cresce, a criança pode também ficar com a tia, uma irmã mais velha ou uma avó. Logo passará a maior parte do dia brincando com irmãos, primos e outras crianças na praça central, perto das casas ou no porto de banho.
A introdução da criança aweti a seus deveres sociais dá-se gradativa e ludicamente. As meninas cuidam de irmãos mais jovens brincando de boneca com eles, mas também começam a ralar a mandioca quando se aproximam da puberdade. Os rapazes principiam a acompanhar o pai, tios, irmãos mais velhos ou avôs para a pesca ou a caça. Arco e flecha são seu brinquedo preferido. As crianças participam das danças durante os períodos de festas, sem serem reprimidas quando erram ou brincam.
Em geral, é dificil ver um adulto ralhar com uma criança ou bater nela. A vontade das crianças é respeitada sempre que possível, e é impressionante como crianças (e adultos) conhecem suas habilidades e limitações, tomando desde cedo a iniciativa e assumindo a responsabilidade por seus atos. Um dos sons mais comuns da aldeia é o riso de crianças brincando, imitado inclusive pelos papagaios que por ali estacionam em seu percurso diário.
Por volta dos nove anos começa uma nova etapa na iniciação do jovem aweti. Agora ele é submetido a rituais de fortificação corporal e espiritual, como o vômito ritual após o consumo de bebidas tóxicas, ou a escarificação (o arranhar de dorso, pernas e braços com uma “arranhadeira” [um escarificador] afiada, feita de dentes de peixe cachorra; o corpo ensangüentado é depois limpo com folhas amassadas, em seguida passam-se outras folhas que fortificam o corpo). Alguns meninos passam pela cerimônia da furação de orelhas nessa idade.
O novo membro adulto do grupo emerge de uma transformação corporal e espiritual pela qual os jovens aweti têm que passar. Essa transformação é efetuada por meio da reclusão, um período em que a pessoa fica em um compartimento separado dentro da casa e evita o contato com outros membros da sua família e da aldeia. Ela sairá daí para a vida pública com uma nova identidade social e com novos nomes.
Durante a reclusão, o jovem “preso” recebe comida somente das mãos de pessoas selecionadas, que não estejam tendo relações sexuais – de outra forma, poderá ser atingido por uma doença, pois o estado de transformação em que se encontra implica uma maior vulnerabilidade diante da influência maligna dos kat ou de atos de feitiçaria por parte de inimigos. Durante o dia, o recluso não deixa a casa, saindo apenas à noite para fazer suas necessidades e tomar banho. Ele “trabalha” em sua transformação por meio da ingestão (e vômito) de infusões poderosas, arranhando-se e fazendo outros exercícios.
Quanto mais tempo dura a reclusão, mais efetiva supõe-se ser a transformação. Especialmente no caso de futuros chefes, há registros de reclusões que duraram vários anos. Uma reclusão longa ajuda o jovem a tornar-se um bom lutador de huka-huka, o que aumenta seu prestígio e incrementa potencialmente sua posição social. Por isso, não raras vezes são os pais que insistem no treino e na prática da luta huka-huka.
No caso das mulheres, é comum fazerem-se reclusões de meio ano ou mais. As jovens se esforçam para aproximar-se do ideal estético que prescreve, entre outras coisas, coxas bem grossas. Também não cortam o cabelo durante esse período, de modo que, à saída da reclusão, que se dá muitas vezes por ocasião de uma festa intertribal, são facilmente reconhecíveis, pelo comprimento dos cabelos assim como pela palidez da pele. Nessas festas, elas oferecem ritualmente castanhas de pequi aos chefes das tribos visitantes, e com isso atestam sua maturidade sexual, podendo desde então namorar e casar.
Formando famílias
É comum que os jovens tenham diferentes parceiros antes de casar-se. Há namoros não assumidos (inclusive não tolerados por parte dos pais, por exemplo, por razões políticas) e namoros oficiais, que podem ser considerados como um tipo de noivado. O noivo passa o tempo livre com a moça, os dois conversam muito e se conhecem aos poucos. Também há casos em que o casamento é arranjado entre os pais muito tempo antes de os noivos atingirem a idade de casar-se, especialmente entre primos cruzados, isto é, com filhos da irmã do pai ou com filhos do irmão da mãe. Pelo menos no primeiro casamento, o homem deve ser mais velho do que a mulher.
Se o noivo é de uma outra aldeia, ele usualmente fica na casa de um parente consangüíneo seu – mesmo um parente distante ou meramente classificatório. Em princípio, para um xinguano, é sempre possível determinar a relação de parentesco com qualquer outro xinguano. Isso é necessário para saber de que forma dirigir-se a uma pessoa.
Se o namoro é aceito pelos parentes, especialmente pelos pais dos envolvidos, alguém assume sua aprovação e “faz o casamento”, isto é, leva a rede do noivo para a casa da noiva, colocando-a acima da rede dela. Isto pode acontecer na ausência dos namorados, que muitas vezes são surpreendidos pelo fato de agora estarem casados. A surpresa é ainda maior se o namoro não foi oficial – mas quem viu os dois juntos tem o direito de “fazer o casamento” se isto lhe parece justo.
Na maioria dos casos, o novo esposo vive um período na casa de seus sogros depois do casamento. A duração desse serviço-da-noiva depende de vários fatores, entre eles o prestígio das respectivas famílias. Os filhos de chefes estão possivelmente isentos desse dever, mas nesse caso o pai da esposa deve receber uma outra recompensa.
Depois de certo tempo, o casal fica livre para escolher onde vai morar. Eles podem permanecer na casa dos pais de um dos dois, ou construir sua própria casa. Se decidem mudar de aldeia, o marido deverá preparar uma roça um ano antes. Mesmo se a nova família continua vivendo na casa de outras pessoas, ela passa a constituir uma unidade social específica dotada de seu próprio espaço, onde as redes ficam uma ao lado da outra em torno de um fogo particular (especialmente durante as noites na estação seca). É comum, entretanto, que um dos parceiros visite por períodos a casa dos seus pais ou irmãos, levando ou não os filhos consigo. Em geral, as crianças circulam livremente entre a casa dos pais e a dos avós, de modo que os últimos podem ter um papel significativo em sua formação.
Hoje, na aldeia principal, a maioria das casas abriga somente uma família nuclear, o que difere do padrão mais comum no Alto Xingu. Não está claro se isso é um efeito da redução demográfica, ou se é expressão de uma preferência mais antiga que os Aweti compartilham com alguns outros povos de língua tupi.
Os Aweti temem as conseqüências de intercasamentos com outros grupos, pois o resultado sempre pode ser a partida de um membro da comunidade (e sua família). Hoje, há poucos indivíduos de outros povos morando entre os Aweti, em geral são Kamayurá. Antigamente, havia laços mais estreitos com os Yawalapiti e os Trumai. Há também alguns Aweti vivendo entre os Kamayurá, os Trumai, ou no Posto Leonardo.
Relações extraconjugais com um ou vários parceiros são comuns. Os encontros acontecem clandestina e discretamente, mas mesmo assim são difíceis de esconder diante de uma comunidade tão pequena. Os homens usualmente retribuem os favores sexuais femininos com caça ou peixe. Um homem pode reconhecer a paternidade de uma criança resultante de um destes relacionamentos, especialmente na velhice, quando ele pode passar seus nomes para os netos.
O casamento pode ser desfeito por qualquer um dos parceiros, que leva sua rede ou a rede do parceiro para um outro lugar. Isso não acarreta necessariamente desaprovação da sociedade ou traumas para as crianças, que continuam circulando entre as casas de ambos os pais. Se uma mulher não se casa de novo, ela mesma pode tornar-se uma dona de uma casa e ter sua própria roça.
Envelhecendo
Há poucos velhos entre os Aweti, dado que não indica necessariamente uma alta mortalidade tradicional, mas que está diretamente relacionado às epidemias de meados do século XX. Com a chegada de assistência médica, a mortalidade diminuiu drasticamente – nos últimos 40 anos, os Aweti sofreram pouquíssimas mortes. O xamanismo e o conhecimento dos “raizeiros” hoje convivem com a medicina ocidental, agora também representada por agentes indígenas de saúde nas próprias aldeias.
Os mais velhos continuam ativos e participam normalmente da vida cotidiana. O casal dos anciãos da aldeia mantém sua própria roça; eles vão pescar (muitas vezes juntos, uma ocasião de intimidade para os cônjuges) e participam dos “acampamentos” para as festas intertribais ou para a fabricação de sal. O título de “myrã” (velho) e “aripi” (velha) aplica-se já para adultos com filhos (no início, muitas vezes jocosamente), mas isso não implica que os assim qualificados não possam ter uma vida plena.
O saber dos velhos é altamente respeitado. Mesmo adultos de meia-idade são cautelosos ao dar informações ou asseverar opiniões sobre assuntos de conhecimento de especialistas mais velhos. Usualmente, os jovens não dirigem a palavra a pessoas de gerações anteriores sem convite. Os velhos devem exortar os mais jovens a seguir as tradições, como, por exemplo, levantar-se de madrugada, não usar “roupa de branco”, arranhar-se e lutar o huka-huka.
Morrendo
A morte não é vista como negação da vida, mas como uma outra forma de existência da pessoa. A passagem para esta forma sempre pressupõe a atuação de forças maléficas, usualmente invocadas por inimigos conhecedores de feitiço. Em princípio, não existe morte natural, mesmo quando se é muito velho. Por isso, é comum que depois da morte de uma pessoa, especialmente de um jovem, os parentes acusem alguém de ter atuado como feiticeiro. Essas acusações são a expressão mais grave de conflitos que muitas vezes se originam em outras esferas (especialmente na política), e podem ter conseqüências letais para o acusado.
Os mortos são enterrados no centro da própria aldeia, depois de o corpo ser lavado, enfeitado, e colocado em sua rede. Há casos em que os corpos são transportados por longas distâncias, para não permanecerem em terras estranhas. Há formas de enterros diferentes conforme o status do defunto. Chefes e seus parentes recebem um tratamento especial, sendo deitados numa rede que é pendurada num túnel ligando dois buracos no chão, enquanto pessoas comuns são postas sentadas em um único buraco.
Também serão os mortos de uma linha de chefes que serão comemorados em um kwar’yp, cerimônia que também tem a função de indicar e reafirmar, diante dos chefes da região, o successor do morto quando necessário. O ciclo do kwar’yp começa com o consentimento dos parentes do defunto para a construção de um túmulo especial, yp’jyput, diante da casa dos homens. Essa cerca é a marca da festa e é regularmente limpada, com cantos e soluços de luto, pelos parentes do morto. No dia em que se cortam as árvores kwar’yp (pau do sol) que vão representar os mortos na festa, o yp’jyput é tirado e servirá como lenha para os povos convidados.
O kwar’yp (que usualmente homenageia não apenas o morto “nobre”, mas também outros defuntos “comuns”) é o momento em que as almas daqueles que faleceram no período entre uma celebração sua e a próxima definitivamente partem rumo à aldeia eterna dos mortos. O caminho até lá é perigoso; existem, especialmente, pássaros monstruosos que podem atacar e matar, agora definitivamente, as almas dos mortos. Para os vivos, o kwar’yp é a última ocasião para se despedir do morto querido; o choro contínuo de uma noite inteira e os rituais do dia seguinte limpam também as suas almas e marcam o fim do luto.
Organização social
A base da organização social xinguana, e aweti, são certamente as relações de parentesco e casamento que ligam as famílias e constituem as unidades domésticas. Igualmente importantes, porém, são a instituição da chefia e o sistema ritual.
O problema da chefia no Alto Xingu é bastante complexo: além do título hereditário (karib: anetü; aruak: amulaw/ amunãw; kamayurá: morerekwat; aweti: morekwat), transmitido tanto por homens como por mulheres, há uma série de estatutos nomeados, entre eles os de "dono da aldeia", "dono do meio", "dono do caminho", que estão de alguma forma ligados à função de representação da aldeia no ritual intertribal.
O exercício dessa função, além da filiação a uma linha de titulares, requer uma série de qualidades e competências, lingüísticas em particular. O desenvolvimento destes atributos é a parte da "educação" que entra na formação do chefe, mas é preciso observar que aqui natureza (hereditariedade) e educação são ambas da ordem do fazer, e que esse fazer se exerce nos dois casos sobre o corpo. A aquisição das qualidades pessoais, físicas ou morais (generosidade, autocontrole, mas também beleza e força), que caracterizam o chefe - e o bom lutador (todo chefe foi idealmente um bom lutador) - depende de uma reclusão pubertária bem sucedida (e mais longa que para os homens comuns), durante a qual corpo e personalidade são fabricados, mais que conjuntamente, um através do outro - e esse fabricar é concebido diretamente como um trabalho, realizado pelo pai e comparável ao trabalho investido (através de relações sexuais repetidas) na concepção da criança no ventre materno: em ambos os casos, este pai está "fazendo" o filho, assim como o xamã iniciador "faz" seu aprendiz.
A principal competência necessária ao desempenho da função de representante é provavelmente o domínio dos discursos cerimoniais. Esse domínio se adquire pelo aprendizado especial junto a um parente (pai, em geral) ou, sendo isso impossível, um outro "dono/mestre" desses discursos, nesse caso contra pagamento, e aparentemente apenas sob autorização (mesmo que tácita) da comunidade. O exercício da representação da aldeia, isto é, da chefia como função - e poder - depende, pois, de outros fatores que a hereditariedade, ainda que a chefia "vazia" dos puros titulares continue sendo marcada por ocasião de seus funerais.
Tudo isso faz com que se possa ser “muito” ou “pouco” chefe - e com que haja mais de um “chefe” na aldeia, embora em geral um seja sempre reconhecido como o principal. Essa distinção (morekwat ‘ytoto / morekwat ‘jyt) pode expressar o reconhecimento de uma maior ou menor identidade em termos de substância ("genealógica") entre os chefes ativos e aqueles de quem pretendem derivar sua legitimidade, mas há indicações do uso destes qualificativos para diferenciar, não só os chefes (hereditariamente) legítimos daqueles não tão legítimos, como também os chefes ativos (ou efetivos) daqueles inativos (ou inefetivos). Esta gradação incide assim ao mesmo tempo sobre a legitimidade do título herdado, os méritos do titular, e sua situação no jogo faccional. Há, dessa forma, diversos componentes no estatuto de "chefe" (morekwat), a saber: a filiação (identidade de substância), os atributos físicos e morais cultivados durante a reclusão pubertária, a linguagem aprendida do estilo formal e dos discursos cerimoniais, e a posição de líder de um grupo coeso de parentes e aliados. O não preenchimento de qualquer um destes requesitos implica um distanciamento em relação ao modelo que, como chefes, deveriam encarnar, e é este distanciamento que qualificações como “chefe pouquinho” viriam marcar.
Esse modelo encarna o tipo de civilidade requerido pelas novas condições de convivência na área, em sua dupla dimensão: a da (re)constituição dos grupos locais enquanto comunidades unas, e a de sua interação pacífica - dupla dimensão que se expressa na emergência do chefe como um homem da praça, locus de convergência dos diferentes grupos domésticos bem como, cerimonialmente, dos diferentes grupos locais. Internamente a cada comunidade, o chefe aparecerá como o mediador entre esses grupos domésticos (núcleos potenciais de facções políticas), posição idealmente simbolizada no estatuto especial de sua casa (mo’atap maior que as outras, especialmente decorada, e coletivamente construída).
Externamente, opera a mediação entre as diferentes comunidades, como maestro e pivô do cerimonial intertribal. Essas duas facetas da chefia são interdependentes, da mesma maneira que a presença de outras comunidades se revela, no cerimonial intertribal, essencial à reprodução interna de cada uma: seja à maturação dos seus jovens (furação de orelha dos meninos, saída da reclusão das moças no kwar’yp), seja à partida definitiva das almas de seus mortos para a aldeia celeste (kwar’yp). Essa dupla dimensão, externa e interna, da chefia, revela-se no fato de que cada um desses processos tenha chefes (morekwat) como foco - é preciso um chefe (morto) para que os demais espíritos possam ser devidamente encaminhados (e as mulheres postas em circulação), é preciso um chefe (rapaz) para que os demais rapazes possam ser iniciados - e ao mesmo tempo dependa de uma perfomance ritual intertribal cuja orquestração cabe a estes mesmos chefes.
Ritual, cosmologia e xamanismo
Os seres sobrenaturais ocupam um lugar importante em várias áreas interligadas da vida aweti. Existem diversos tipos de tais entidades, e seu valor simbólico varia em diferentes ocasiões e com o tempo. Alguns figuram como protagonistas em diversos mitos, muitas vezes compartilhando traços humanos com outros animais, usualmente exagerados, monstruosos, e providos de capacidades e habilidades demiúrgicas, ou aparecendo como “donos” de práticas culturais.
Quando os kat, os “espíritos”, interferem na esfera humana, isso significa usualmente perigo para os homens. Eles são responsáveis por várias doenças. Por isso, o processo de cura inclui a interação com o espírito que a causou, na forma de cerimônias específicas. Durante a primeira fase do ritual, os “preparativos” para a festa (por exemplo, num Jamurikumã ou num Karytu), o respectivo espírito é ocasionalmente representado por membros do grupo que exercem funções como a fabricação de objetos que serão utilizados na festa, ou o desempenho de danças para o “dono da festa” - a saber, o doente ou um aliado seu no processo de cura.
O prestígio dos xamãs (mopat) deriva de sua capacidade de interagir voluntariamente com os espíritos, alguns dos quais seus aliados, outros opositores (as outras pessoas encontram os espíritos somente em sonhos ou na doença). No processo de cura dos aflitos e doentes, as “rezas” dos xamãs, que utilizam o fumo do tabaco, símbolo da comunicação com o mundo sobrenatural e privilégio dos xamãs, são complementadas por ervas e raízes providenciadas por “raizeiros”, outro tipo de especialista.
Hoje há uma divisão conceitual entre “doenças de branco” e “doenças de índio” (as fronteiras entre essas classes podem ser incertas, e a classificação de um caso de doença numa ou noutra pode freqüentemente ser disputada).
Os Aweti têm reconhecidamente laços muito estreitos com espíritos fortes, e os homens acima dos 40 anos são em sua maioria considerados xamãs. Eles têm também, em tempos recentes, retomado várias atividades rituais que tinham caído em desuso em decorrência das perdas demográficas que fizeram faltar oficiantes para o desempenho de todos os papéis rituais requeridos pelas festas. Em 1998, realizou-se o primeiro kwar’yp festejado pelos Aweti há várias décadas.
Ainda em 2002, um outro ritual foi reativado pelos Aweti: os Nahukwá (outro grupo alto-xinguano pequeno) foram convidados para um Jawari, uma alegre competição de dardos atirados com um propulsor característico. Os Aweti / Enumaniá estiveram certamente entre os primeiros entusiastas dessa cerimônia no Alto Xingu: conforme um relato kamayurá, os Enumaniá a teriam aprendido dos próprios Payetá, índios de fala similar aos Kamayurá que a ensinaram também aos Trumai. Comenta o narrador das "lendas waurá" registradas por Schultz:
"Trumai mais sabe Javari. Kamayurá sabe. Waurá pouquinho sabe de Javari. Vovô de Trumai sabe de Javari. Aweti sabe muito de Javari…" (Schultz 1965/66:48)
Assim, embora tenham perdido muito com a redução populacional e a conseqüente perda de indivíduos importantes, especialistas em práticas e conhecimentos rituais, como os dos cantores, estão hoje demonstrando como pelo menos algumas dessas tradições podem ser recuperadas, como no caso da planejada aquisição de flautas karytu, que lhes permitirá retomar um dos rituais que continua mais vivo em outras aldeias do Alto Xingu.
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