De Povos Indígenas no Brasil
Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1991

Araweté

Autodenominação
Bïde
Onde estão Quantos são
PA 568 (Siasi/Sesai, 2020)
Família linguística
Tupi-Guarani

Moça com pintura facial e indumentária típica araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Moça com pintura facial e indumentária típica araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Os Araweté são um povo tupi-guarani de caçadores e agricultores da floresta de terra firme. "Estamos no meio", dizem os Araweté da humanidade. Habitamos a terra, este patamar intermediário entre os dois céus e o mundo subterrâneo, povoados pelos deuses que se exilaram no começo dos tempos. Os Araweté dizem viver agora "na beira da terra": sua tradição fala de sucessivos deslocamentos a partir de algum lugar a leste (o centro da terra), sempre em fuga diante de inimigos mais poderosos. Toda sua longa história de guerras, mortes e fugas, e a catástrofe demográfica do "contato", se não se apagam da memória araweté, nunca chegaram a diminuir seu ímpeto vital e alegria.  

Nome e população

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

O nome "Araweté", inventado por um sertanista da Funai, não significa nada na língua do grupo. O único termo que poderia ser considerado uma auto-denominação é bïde, que significa "nós", "a gente", "os seres humanos". Todos os humanos são bïde, mas os humanos por excelência são os Araweté: os outros povos indígenas e os 'brancos' (kamarã) são awî, "estrangeiros" ou "inimigos".

A população imediatamente anterior ao contato era de pelo menos 200 pessoas. Devido às condições em que o 'contato' com a Funai se realizou, a mortalidade causada por epidemias e desnutrição levou o grupo ao mínimo de 120 pessoas, em 1977. Em setembro de 1992 a população chegou a 206, alcançando assim o efetivo da época pré-contato. Em razão do relativo isolamento em que vivem (mais do que à assistência dos órgãos públicos competentes), não tiveram grandes baixas demográficas devido a doenças estrangeiras até o segundo semestre de 2000, quando a população foi acometida por um surto de varicela (doença virótica popularmente conhecida como catapora). Nesse ano, dados da Funasa registravam 278 índios, dos quais pelo menos 218 foram acometidos pela epidemia, resultando em nove óbitos.

Segundo depoimento de Tarcício Feitosa (membro do CIMI - Conselho Indigenista Missionário) ao ISA na época, a morosidade do DSEI (Distrito Sanitário Indígena) de Altamira em tomar as devidas providências facilitou o impacto da epidemia sobre a população. Desde então, a população retomou seu crescimento e em maio de 2003, segundo dados da Funai, contava 293 pessoas, sendo três recém-nascidos. A seguir, uma lista dos dados censitários disponíveis sobre os Araweté desde o contato oficial:

Série histórica da população Araweté: 1992-2003
Data/Fonte Censo
27.07.76 [inf. Lisbôa, 1992] 27 pessoas chegam ao Posto da Funai no Ipixuna
04.09.76 [Diário João Evangelista de Carvalho] 44 pessoas na aldeia próxima ao Posto
Censo JEC de março 1977 [Müller et al., 1979: 24] 120 pessoas
Meados de 1977 [Censo JEC] (Arnaud, 1978: 10-11) 119 pessoas (59 homens/60 mulheres)
11.05.77 [Censo JEC] 129 pessoas (61 homens/ 58 mulheres)
17.06.77 [Censo JEC] 120 pessoas (62 homens/58 mulheres)
11.10.77 [Censo JEC] 117 pessoas
14.03.78 [Censo Funai] 121 pessoas
Julho de 1978 [Censo Funai] (Müller op.cit.: 25) 122 pessoas
Meados de 1979 [Censo Müller] (op.cit.: 28) 133 pessoas (71 homens/62mulheres)
02.01.80 [Censo Funai] 136 pessoas (66 homens/70 mulheres)
25.04.80 [Censo Funai] 138 pessoas (66 homens/72 mulhres)
Junho de 1981[Censo Eduardo Viveiros de Castro] 130 pessoas (62 homens/68 mulheres)
Abril de 1982 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] 136 pessoas (63 homens/73 mulheres)
Fevereiro de 1983 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] 136 pessoas (64 homens/72 mulheres)
19.12.83 [Censo Funai] 139 pessoas
Dezembro de 1985 [Censo Funai] 153 pessoas
03.11.86 [Censo Funai] 160 pessoas
16.06.87 [Censo Funai] 162 pessoas (85 homens/77 mulheres)
1988 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] 168 pessoas
15.12.89 [Censo Funai] 181 pessoas (91 homens/90 mulheres)
04.04.92 [Censo Eduardo Viveiros de Castro] 195 pessoas (92 homens/103 mulheres)
1992 [Censo Lo Curto-Funai de setembro] 205 pessoas (95 homens/110mulheres)
2000 [Censo Funasa de novembro] 278 pessoas
12.05.2003 [Censo Funai] 293 pessoas

Língua

Foto: Beto Ricardo, 1991.
Foto: Beto Ricardo, 1991.

A língua araweté pertence à grande família Tupi-Guarani. É possível que os Araweté, como vários outros grupos tupi da região, sejam os descendentes da tribo dos Pacajás, objeto de intensa atividade missionária por parte dos jesuítas durante o século XVII. As crônicas missionárias registram que parte desse numeroso povo resistiu à catequese, retornando à floresta. Mas a língua araweté, se comparada às línguas faladas por seus vizinhos tupi-guarani mais próximos (os Asuriní do Koatinemo, os Parakanã, os Asuriní do Trocará, os Suruí, os Tapirapé), todas elas bastante semelhantes entre si, mostra-se bastante diferenciada. Isto sugere que a separação dos Araweté foi mais antiga, ou mesmo que eles podem ter vindo de outra região do Brasil.

Ainda há uma parte significativa da população araweté que não fala Português. E, dentre os falantes, a maioria não possui fluência.

O araweté não é uma língua simples de se aprender: sua prosódia é fortemente nasal, o ritmo é rápido, e há sons de difícil reprodução pelos falantes nativos do português. A sintaxe e a morfologia são bastante diferentes das línguas indo-européias: há várias séries de pronomes pessoais, há aspectos verbais sem correspondente diretos no português… Por outro lado, é fácil reconhecer na língua araweté numerosas palavras que o tupi-guarani deixou no português falado no Brasil, seja no vocabulário comum, seja em falares regionais, seja nos topônimos (nomes de lugares).

A língua araweté ainda não foi estudada por especialistas; a grafia empregada nestas páginas não respeita integralmente o alfabeto fonético internacional, mas procura ser consistente. Os valores sonoros aproximados das letras são: as vogais "a" e "i" soam como no português brasileiro (o "e" sempre aberto); o "i" soa como um "u" pronunciado sem arredondamento dos lábios; o "ï" soa como no inglês "bit", mas produzido com a ponta da língua voltada para baixo; o "o" soa como no inglês "but"; o til indica uma vogal nasal (todas as vogais podem ser nasalizadas; nestas páginas, por dificuldades em codificar a fonte, o "i" nasal será grafado como "î").  

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

As consoantes "p", "b", "m", "n" soam aproximadamente como em português; o "ñ" como o "nh" em português; o "k" como o "c" de "casa"; o "t" como em "tudo", mesmo diante de "i"; o " d" soa como "tch" (como o "t" de "tio", no falar carioca); o "c" como "ts"; o "r" como em "caro", mesmo em começo de palavra; o "d" como o "th" do inglês "that"; o "d" como em "body", na pronúncia americana; o "y", o "w" e o "h" soam como no inglês "yes", "work", "home". O sinal ' entre duas vogais indica uma oclusão glotal suave, isto é, uma pequena pausa entre os dois sons separados por ele. A vogal tônica da maioria das palavras é a última; apenas quando este não é o caso, indica-se o acento por um traço sob a vogal: assim, por exemplo, bïde se pronuncia "bïdé", e Maï se pronuncia "Máï".

Localização

A volta da caçada. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982
A volta da caçada. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982

Os Araweté, em 2021, vivem em 23 aldeias na região do igarapé Ipixuna, afluente da margem direita do Médio Xingu. O Ipixuna é um rio de águas negras, encachoeirado, que corre em um leito rochoso na direção Sudeste/Noroeste. A vegetação dominante na bacia do Ipixuna é a floresta aberta com palmeiras, onde as árvores raramente ultrapassam 25 metros. Nos arredores da aldeia há extensas áreas de "mata de cipó", onde lianas e plantas espinhosas tornam a caminhada difícil. O terreno é pontilhado de irrupções graníticas que em seu topo se cobrem de cactos e bromélias. A caça é abundante, dada a grande quantidade de árvores frutíferas, que atraem os animais O regime de chuvas é bem marcado, com uma estação seca que se estende de abril a novembro, e uma chuvosa nos meses restantes. Entre agosto e novembro o rio se torna impraticável, expondo extensos lajeiros e formando poços de água estagnada propícios à pesca.

De 1978 a 2001, os Araweté habitaram em uma outra aldeia à beira do Ipixuna, a alguns quilômetros da aldeia atual. Desde que se deslocaram das águas do Bacajá em direção ao Xingu, eles circulam por uma área compreendida entre as bacias dos rios Bom Jardim, ao sul, e Piranhaquara, ao norte, que inclui os rios Canafístula, Jatobá e Ipixuna. A Terra Araweté é contígua a três outras: TI Apyterewa (dos índios Parakanã) ao sul, TI Koatieno (dos Asuriní) ao norte e nordeste e TI Trincheira-Bacajá (dos Kayapó-Xikrin) a leste, tendo o rio Xingu como limite oeste.

Histórico do contato

Em meados da década de 60, os Araweté se deslocaram das cabeceiras do rio Bacajá, a sudeste, em direção ao Xingu, no Estado do Pará. Eles eram oficialmente desconhecidos até o começo da década de 1970. Seu 'contato' pela Funai data de 1976, quando buscaram as margens do Xingu fugindo do assédio dos Parakanã, outro grupo tupi-guarani.

Antonio Luís Lisbôa Dutra, o Mano Velho, atendente de enfermagem do Posto Indígena Ipixuna desde 76, e o menino Maekãyi, durante epidemia de gripe. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Antonio Luís Lisbôa Dutra, o Mano Velho, atendente de enfermagem do Posto Indígena Ipixuna desde 76, e o menino Maekãyi, durante epidemia de gripe. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

É possível garantir que eles moram há muitos anos, talvez alguns séculos, na região de florestas entre o médio curso dos rios Xingu e Tocantins. Embora fossem considerados, até o contato em 1976, como "índios isolados", o fato é que os Araweté conhecem o homem branco há muito tempo. Sua mitologia se refere aos brancos, e existe um espírito celeste chamado "Pajé dos Brancos"; eles utilizam há muito tempo machados e facões de ferro, que pegavam em roças abandonadas de moradores 'civilizados' da região; e sua tradição registra vários encontros, alguns amistosos, outros violentos, com grupos de kamarã na floresta.

A história dos Araweté tem sido, pelo menos desde o início do século XX, uma história de sucessivos conflitos com tribos inimigas e de deslocamentos constantes. Eles saíram do Alto Bacajá devido a ataques dos Kayapó e dos Parakanã. Por sua vez, ao chegarem ao Ipixuna e demais rios da região (Bom Jardim, Piranhaquara), afugentaram os Asuriní ali estabelecidos, que acabaram se mudando para o rio Ipiaçava, mais ao norte. Em 1970, com a construção da rodovia Transamazônica, que passava por Altamira (a cidade mais próxima), o governo brasileiro começou um trabalho de "atração e pacificação" dos grupos indígenas do médio Xingu. Os Araweté começaram a ser notados oficialmente em 1969. Em 1971 a Funai estabeleceu a "Frente de Atração do Ipixuna", que manteve contatos esporádicos com os Araweté até 1974, sempre sem conseguir visitar suas aldeias. Nesta época o grupo vivia dividido em dois blocos de aldeias, um mais ao sul, na bacia do Bom Jardim, outro ao norte, no Alto Ipixuna.

Em janeiro de 1976, ataques realizados pelos Parakanã levaram os Araweté de ambas as regiões a procurar as margens do Xingu, resolvidos a "amansar" (mo-kati ) os brancos (pois eles não acham que foram 'pacificados' pelos brancos, mas sim o contrário). A Funai veio encontrá-los lá em maio daquele mesmo ano, acampados precariamente junto às roças de alguns camponeses, famintos e já doentes devido ao contato com os brancos do "beiradão" (que é como as terras da margem do Xingu são chamadas pela população regional). Em julho, os sertanistas da Funai decidem levar aquela população doente e fraca em uma caminhada pela mata até um Posto que havia sido construído no Alto Ipixuna, próximo às antigas aldeias do grupo. Foi uma caminhada de mais ou menos 100 km, que durou 17 dias: pelo menos 66 pessoas morreram no percurso. Com os olhos fechados por uma conjuntivite infecciosa que haviam contraído no "beiradão", as pessoas não enxergavam o caminho, se perdiam na mata e morriam de fome; crianças pequenas, subitamente órfãs, eram sacrificadas pelos adultos desesperados; muita gente, fraca demais para caminhar, pedia para ser deixada para morrer em paz.

Não se sabe quantos começaram a caminhada, mas apenas 27 chegaram junto com os sertanistas que lideravam a marcha; o restante veio chegando aos poucos. Alguns índios se desviaram, no caminho, para as aldeias antigas, ali permanecendo algumas semanas; mas logo um novo ataque parakanã fez toda a população araweté que sobreviveu à caminhada e aos inimigos se juntar no Posto da Funai. Em março de 1977, o primeiro censo feito pela Funai contou 120 pessoas. Os Araweté me desfiaram os nomes de 77 pessoas que desapareceram no período entre sua chegada no Xingu, em janeiro de 1976, e sua chegada no Posto Velho, em julho daquele ano; três dessas morreram no último ataque parakanã: 73, portanto, foram vítimas do contato e da desastrosa caminhada - 36% da população total à época.

Kãyipayerä sentado em cima de latas de óleo na casa do chefe do Posto Indígena Ipixuna. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Kãyipayerä sentado em cima de latas de óleo na casa do chefe do Posto Indígena Ipixuna. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Em 1978, os Araweté se mudaram, juntamente com o Posto da Funai, para um sítio mais próximo da foz do Ipixuna, onde residiram até 2001. Nos primeiros anos, viver com os brancos não era muito fácil. A interação entre índios e funcionários da Funai se fundava em uma série de mal-entendidos culturais, em expectativas estereotipadas e em demandas contraditórias. Era muito comum a emissão professoral de juízos sobre o 'caráter' típico dos Araweté: que eram preguiçosos, que passavam fome por descuido e imprevidência (e no entanto a população era visivelmente bem nutrida), que não eram solidários entre si, que só falavam e pensavam em sexo (o que era sublinhado, na verdade, por ser um dos únicos assuntos em que a vida dos índios interessava os brancos); e assim por diante. Havia toda uma série de procedimentos de 'infantilização' dos índios, pequenos ritos de degradação, como os exames médicos em público, censuras sobre a 'pouca higiene' de certas práticas tradicionais, o costume de se lhes pôr apelidos pejorativos. Só ouvi serem elogiados pelo temperamento cordato, alegre e (deveras!) paciente. Mas na verdade tudo isso não era apenas (às vezes, de forma alguma) uma questão de 'má vontade' ou de brutalidade desse ou daquele funcionário. Havia um sistema; esse era o modo de articulação entre índios e brancos.

Os Araweté dependiam então, como dependem mais ainda hoje, de uma série de bens e serviços oferecidos pelo Posto: combustível, sal, fósforos, panelas, roupas (para os homens), sabão, pilhas, lanternas, facas, machados, facões, ferramentas, tesouras, pentes, espelhos, açúcar, óleo de cozinha, espingardas, munição, remédios.

Em meados de 1988, os Araweté e o chefe do Posto (Benigno Marques, hoje diretor da Administração da Funai de Altamira) encontraram e apreenderam uma grande quantidade de mogno que havia sido derrubada em suas terras por duas companhias madeireiras. Após uma nebulosa negociação da Administração da Funai em Altamira com estas madeireiras, os Araweté e os Parakanã - isto é, o PI Ipixuna e o PI Apyterewa - acabaram recebendo, em janeiro de 1989, uma razoável quantidade de dinheiro à guisa de 'indenização' pela madeira roubada.

Embora a maior parte do dinheiro tenha sido confiscada pelo Governo Collor em março daquele ano, os três meses em que ele esteve disponível foram suficientes para uma mudança radical nas condições do sistema Posto/aldeia. Por um lado, várias melhorias importantes foram feitas no equipamento do Posto Indígena: nova enfermaria, motores para transporte e geração de energia, a aquisição de um barco com alta capacidade de carga, ferramentas etc. Por outro lado, os Araweté passaram a ter um acesso bastante amplo a uma quantidade de mercadorias que antes eram de obtenção difícil, demorada e limitada. Proliferaram as espingardas, panelas, machados, lanternas, pilhas, roupas, tabaco…

Chefe do Posto Indígena Ipixuna (Eliezer G. da Silva) distribuindo bens encomendados pelos índios, comprados em Altamira com o dinheiro resultante da venda à FUNAI de seu artesanato. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Chefe do Posto Indígena Ipixuna (Eliezer G. da Silva) distribuindo bens encomendados pelos índios, comprados em Altamira com o dinheiro resultante da venda à FUNAI de seu artesanato. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

A partir de meados de 1989, a situação começou a piorar, com o confisco da caderneta de poupança 'dos Araweté'. Nessa época, um médico italiano, Aldo Lo Curto, encantou-se pelo grupo e passou a investir na área alguns dos recursos que levanta em seu país de origem, por meio de palestras e exposições sobre os índios brasileiros. Isso permitiu a contratação de uma enfermeira e de uma professora, e a compra de alguns equipamentos para o posto. Mas a manutenção da pauta de consumo do grupo, elevada após a entrada do dinheiro da madeira, permaneceu um problema. Com a aguda recessão do período Collor, e especialmente com o desmonte da máquina administrativa federal, a Funai mergulhou em uma situação de insolvência. Com isso, os Araweté ficaram reduzidos à ajuda de Lo Curto e a arranjos de emergência entre a chefia do PI Ipixuna e a Funai de Altamira. Começaram a faltar alguns itens essenciais, como remédios, combustível e munição. Essa foi a situação que encontramos em 1991, quando visitei o Ipixuna, junto com a equipe do Cedi.

Os Araweté perdidos

Em setembro de 1987, os Kayapó-Xikrin da aldeia Cateté, a centenas de quilômetros a sudeste do Ipixuna, do outro lado da Serra dos Carajás, atacaram um pequeno grupo de índios desconhecidos, matando um homem e um menino, capturando duas mulheres e outro menino pequeno. Um médico da Funai que visitava a aldeia do Cateté reconheceu a pele branca e os olhos castanho-claros dos Araweté, bem como os característicos brincos de pena usados pelas mulheres. Logo se soube que um homem mais velho havia permanecido na mata, tendo conseguido fugir do ataque. Avisados pelo rádio, os Araweté mandaram dois emissários (e o chefe do PI Ipixuna) para resgatar seus parentes perdidos, sem terem a menor idéia de quem poderiam ser. As negociações foram complicadas; os Xikrin exigiram vários bens em troca dos prisioneiros, mas no fim tudo se resolveu. Em seguida, os Araweté foram em busca do velho. Logo o encontraram; no começo ele resistiu a qualquer aproximação, atirando flechas contra o pequeno grupo de resgate. Finalmente, contudo, terminou por reconhecer a língua e se deixou aproximar. Ele e os cativos dos Xikrin foram levados para o Ipixuna para se juntar ao resto dos Araweté.

Na aldeia o mistério se esclareceu. Eles eram os sobreviventes do grupo de Iwarawï (o velho), que tinha se separado do resto da tribo há cerca de 30 anos atrás nas cabeceiras do Bacajá, quando Iwarawï ainda era um rapaz. Durante um ataque kayapó, ele fugiu para a mata com uma moça - filha da irmã de sua mãe - e com dois meninos pequenos, seus sobrinhos. Os Araweté acharam que eles haviam sido mortos ou capturados pelos Kayapó. Na verdade, eles haviam se perdido do resto da tribo, que fugira dos Kayapó na direção oposta, em direção às águas do Ipixuna. Iwarawï e sua irmã (no parentesco araweté, a filha da irmã da mãe é chamada de "irmã"), sozinhos, foram obrigados a casar; tiveram duas filhas, que se casaram com os dois meninos que haviam fugido também. Estas pessoas viveram completamente isoladas durante 30 anos, como uma miniatura da sociedade araweté. Era uma vida muito dura, sempre fugindo ao menor sinal de inimigos: sem tempo para esperar o algodão crescer, as mulheres substituíram sua roupa tradicional por saias de casca de árvore; precisando estar sempre mudando de acampamento, nem sempre podiam plantar e colher milho, dependendo de farinha de coco-babaçu para sua alimentação.

Em fevereiro de 1988, Iwarawï foi levado a Altamira para se tratar de uma grave pneumonia que havia contraído logo após o contato. As duas mulheres, suas filhas, casaram-se na aldeia: Mitãñã-kãñî-hi e seu filho foram viver com um viúvo; Pïdî-hi, respectivamente mulher e mãe do homem e do menino mortos pelos Xikrin, casou-se com um primo solteiro. Embora cercados por seus parentes próximos da aldeia, esses sobreviventes custaram a se acostumar à nova situação. Os outros Araweté os achavam estranhos: falavam com um sotaque estranho, haviam esquecido muitos dos usos e costumes tribais. Enquanto Iwarawï estava em Altamira, suas armas ficaram guardadas na aldeia, e eram mostradas a todos. Seu largo arco, todo furado de chumbo das espingardas kayapó - ele o usara como escudo durante o ataque - havia morto muitos inimigos, índios e kamarã, durante aqueles trinta anos. Suas flechas eram estranhas: tortas, sujas, com uma emplumação diferente da tradicional. Examinando estas armas, um ancião da aldeia declarou:

"é, Iwarawï estava quase se transformando em inimigo, estava esquecendo nosso modo de ser…"

As filhas e o neto de Iwarawï estão hoje completamente integrados à vida dos Araweté. Iwarawï morreu afogado nas águas do Xingu, em um estúpido acidente de barco, em agosto de 1988. Ele não teve tempo de voltar a viver com seus parentes perdidos.

Território e territorialidade

Demarcação da Terra Indígena Araweté. Foto: Leonardo Carneiro da Cunha, 1994.
Demarcação da Terra Indígena Araweté. Foto: Leonardo Carneiro da Cunha, 1994.

Apenas em fins de 1987, uma década depois do contado oficial, a Funai resolveu "interditar" uma área de 985.000 hectares, segundo os limites propostos em um relatório que encaminhei àquele órgão em 1982. Em maio de 1992, essa área foi delimitada, para fins de demarcação, por uma portaria do Ministério da Justiça. A demarcação física do território araweté foi feita por um convênio entre o CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação, ONG embrionária do ISA) e a Funai, em julho de 1993. Os trabalhos foram executados entre junho de 1994 e maio de 1995 com recursos do governo austríaco destinados à conservação de florestas tropicais, concedidos durante a Eco 92. Em 1996, a TI Araweté foi homologada com a extensão de 940.900 hectares.

A concepção araweté de territorialidade é aberta; eles não tinham, até bem pouco, a noção de um domínio exclusivo sobre um espaço contínuo e homogêneo. Chegando ao Ipixuna, deslocados por outros grupos da área que ocupavam, deslocaram por sua vez os Asuriní. Sua história fala de um movimento constante de fuga diante de inimigos mais poderosos. Os Araweté não parecem ter uma geografia mitológica ou sítios sagrados. Sua atitude objetiva e subjetiva era um incessante ir em frente, deixando para trás os mortos e os inimigos. A idéia de reocupar uma área antiga lhes é estranha - o que se constata mesmo dentro dos limites da bacia do Ipixuna.

Vista aérea da atual aldeia. Foto: Pedro Martinelli, 2002.
Vista aérea da atual aldeia. Foto: Pedro Martinelli, 2002.

As guerras em que estiveram envolvidos nunca foram concebidas como disputas territoriais, e as tribos que invadiam "suas" terras eram vistas menos como ameaça à integridade territorial que à sobrevivência física do grupo. É justamente quando do "contato" e fixação em uma área restrita que uma concepção fechada de território começou a emergir. Assim, por um lado, o estabelecimento de uma só aldeia junto ao Posto da Funai rompe com o padrão geopolítico tradicional, que consistia em várias aldeias simultâneas e dispersas, menores que a aldeia atual; a dependência do Posto diminuiu também o raio de movimentação. Por outro lado, o convívio com as concepções ocidentais de territorialidade (transmitidas direta ou indiretamente pelos brancos) e a situação de enclausuramento geográfico levam à emergência de uma noção territorial fechada e exclusiva, consagrando uma nova situação histórica - o fato de um "território araweté".

Cultura material

Moça araweté pintada de urucum. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Moça araweté pintada de urucum. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Os Araweté possuem uma cultura material bastante simples, dentro do horizonte tupi-guarani. Isso se pode explicar, em parte, pelo estado constante de alarme e fuga diante de inimigos a que esse povo esteve sujeito nas últimas décadas; e em parte, pelo trauma do 'contato'.

Os homens araweté têm barba espessa, que costumam deixar crescer em cavanhaque; andavam nus, com apenas um cordão amarrando o prepúcio. As mulheres trazem um costume de quatro peças tubulares (cinta, saia, tipóia-blusa e um pano de cabeça), tecido de algodão nativo e tingido de urucum.

Elas portam brincos feitos de peninhas de arara dispostas em forma de flor, pendentes em linhas em que são enfiadas sementes de iñã (Cardiospermun halicacabum), bem como colares dessa mesma conta. Os homens usam os mesmos brincos, porém mais curtos. O cabelo é cortado em franja reta na testa até a altura das orelhas, de onde cresce até a nuca dos homens e a espádua das mulheres.

Iapi´i-hi preparando o cauim doce. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1981.
Iapi´i-hi preparando o cauim doce. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1981.

A tintura e a cor básica dos Araweté é o vermelho-vivo do urucum, com que cobrem os cabelos e o corpo, untando-os uniformemente. No rosto, porém, podem traçar apenas uma linha horizontal na altura das sobrancelhas, uma vertical ao longo do nariz, e uma diagonal de cada orelha às comissuras labiais. Esse padrão é também usado na decoração festiva, quando é traçado em resina perfumada e recoberto com as penas minúsculas de cotingas de plumagem azul brilhante. A plumagem do gavião-real é grudada nos cabelos.

A despeito de ter uma cultura material austera, os Araweté fabricam três objetos tecnicamente muito elaborados, e que além disto lhes são exclusivos, não possuindo análogos exatos em nenhum outro grupo tupi-guarani: o arco, o chocalho aray do pajé, a vestimenta feminina.

O arco (irapã) araweté é feito de ipê (tayipa, Tabebuia serratifolia), e é mais curto, curvo e largo que a maioria dos arcos indígenas brasileiros. Cada tronco de tayipa pode servir à fabricação de vários arcos. A madeira era trabalhada com ferramentas de osso e pedra (agora, com machados e facões de aço), e é aplainada com um formão feito de dente de cotia, lixada com uma folha áspera até ficar completamente lisa, e por fim cuidadosamente aquecida no fogo e vergada até ganhar a forma adequada. Usa-se o leite do coco-babaçu, ou a gordura das larvas que vivem nessa palmeira, para tornar a madeira mais fácil de curvar. A corda do arco é feita de fibra de curauá, uma bromeliácea cultivada (Neoglaziovia variegata).

Pajé com o chocalho aray. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Pajé com o chocalho aray. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Os Araweté usam três tipos de flecha (o'i): uma para caça grossa, com ponta de taquaruçu (Guadua sp.) e emplumada com penas caudais de gavião-real; e duas para pássaros, peixes e mamíferos pequenos, com pontas de osso de guariba ou de pau farpeado, emplumadas com penas caudais de mutum. A haste das flechas é feita de dois tipos de bambu Guadua sp. ou Merostachys sp.). Usam-se cera de abelha e fios de algodão para a fixação das pontas e das penas. Peninhas de tucano, arara ou cotinga são amarradas na base das flechas à guisa de enfeite.

O chocalho aray de pajelança é um cone invertido trançado de talas de arumã (Ischnosiphon sp.), recoberto de fios de algodão até deixar apenas a parte superior - que é a base do cone - exposta. Um floco de algodão forma um 'colarinho' em volta da parte descoberta; ali se inserem quatro ou cinco penas caudais de arara-vermelha, dando ao objeto a aparência de uma tocha flamejante. Pedaços da concha de um caramujo do mato são colocados dentro do cone trançado. O aray produz um som chiante e contínuo; ele é usado pelos pajés para acompanhar os cantos de Maï e para realizar uma série de operações místicas e terapêuticas: trazer os deuses e almas de mortos à terra para participarem das festas, reconduzir a alma perdida de pessoas doentes, ajudar no tratamento de ferimentos e picadas de animais venenosos.

Flecha grossa para caça, com ponta de taquaruçu (Guadua sp.) e emplumada com penas caudais de gavião-real. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1981.
Flecha grossa para caça, com ponta de taquaruçu (Guadua sp.) e emplumada com penas caudais de gavião-real. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1981.

Durante a fabricação do arco, um homem não deve ter relações sexuais com a esposa, ou a peça de madeira quebraria. O chocalho, em troca, tem seu corpo de arumã trançado pelas mulheres, e a cobertura de algodão imposta pelos homens. Mas uma vez pronto, o aray não pode ser usado pelas mulheres; instrumento muito poderoso, ele evoca os Maï que poderiam quebrar o pescoço da mulher que ousasse chamá-los. Nessa sociedade, só os homens são pajés.

Todo homem araweté, desde a adolescência, possui seu arco e flechas; usa essas armas não só para caçar e pescar, como passeia freqüentemente com elas pela aldeia, e as carrega orgulhosamente durante as danças da festa do cauim. Por sua vez, todo homem casado possui um chocalho aray; embora este seja o instrumento por excelência dos pajés, não há adulto que não tenha ao menos uma vez na vida cantado à noite, após ter visto os Maï em sonho.

Arco e flecha araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Arco e flecha araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Todo homem é um pouco pajé, dizem os Araweté, e pode realizar pequenas curas e cantar suas visões; mas apenas alguns, os verdadeiros peye, são capazes de trazer os Maï e as almas dos mortos para as grandes festas, ou reconduzir as almas dos viventes que tenham sido capturadas pelos Maï ou outros espíritos. O aray é um símbolo do status de homem casado e com filhos; aray ñã, "senhores do chocalho", é um dos epítetos que designa a parte masculina adulta da sociedade araweté. O aray é mais especificamente um emblema da sexualidade masculina: um dos apelidos jocosos dados às mulheres é "quebradoras do chocalho", evocando o fato de que, quando têm relações sexuais com elas, os homens ficam com sono e não cantam à noite - o chocalho se "quebra", isto é, fica mudo-, e sugerindo que o aray é um símbolo fálico.

O aray é o único objeto de propriedade masculina que não pode ser herdado por ninguém, após a morte de seu possuidor; ele deve ser queimado. Ele parece assim ser um objeto pessoal e intransferível, dotado de valores simbólicos profundos.

Esse caráter sexualmente marcado, pessoal e íntimo do aray tem um análogo entre os objetos femininos: a cinta interna, usada por todas as mulheres após a puberdade, também não pode ser herdada por ninguém, ao contrário das peças externas. A roupa tradicional das mulheres araweté é composta de quatro peças: esta cinta (ii re, "peça de dentro"), pequena peça tubular de lona grossa de algodão de cerca de 25 cm. de comprimento, que cobre o púbis e a parte superior das coxas, cingindo-as estreitamente e dando às mulheres um andar peculiar; uma saia de cima (tupãy piki, "veste longa"), de trama mais aberta; uma larga tipóia (potïnã nehã, "peitoral") para carregar as crianças, mas que é usada mesmo por jovens sem filhos; e um pano de cabeça (dacî nehã, "chapéu"), peça tubular como as demais vestimentas femininas, com a mesma trama aberta da saia e da tipóia. As vestes femininas são tecidas em teares simples - dois talos de folhas de babaçu fincados perpendicularmente no chão - e tingidas com urucum. Elas consomem uma grande quantidade de algodão; assim como os homens passam boa parte de seu tempo fabricando e reparando suas armas, as mulheres dedicam muitas horas do dia ao processo de produção dos fios de algodão para as roupas e as redes. Há sempre alguém na aldeia tecendo uma peça de roupa ou uma rede.

Desde pequenas as mulheres usam a saia externa; por volta dos sete anos, costumam trazer também a tipóia e por vezes o pano de cabeça. A cinta é imposta a partir da primeira menstruação- uma de suas funções é absorver o sangue menstrual-, e nunca deve ser retirada na frente de outros homens que não o marido ou o namorado, e mesmo assim apenas para o ato sexual. Mesmo entre as mulheres, as normas do pudor pedem que não se fique ereta sem estar usando a cinta: no banho coletivo das mulheres, estas ficam em geral agachadas, quando estão fora d'água. Os homens manifestam um pudor análogo em retirar o cordão do prepúcio diante de outrem: a nudez para os Araweté é, assim, a ausência da cinta feminina ou do cordão peniano.

A cinta é um objeto de forte conotação sexual, como o aray. O arco não é menos marcado sob esse aspecto. Já mencionamos que sua fabricação impõe a abstinência sexual do homem, como se a sublinhar a natureza fálica do objeto. Mais que isto, a palavra para "arco", irapã (que significa hoje "arma" em geral: arco, espingarda, revólver), designa também os orgãos sexuais masculinos e femininos- cada sexo tem suas "armas", o pênis e a vagina. É interessante portanto observar que os três objetos araweté mais elaborados, dos pontos de vista técnico e simbólico, possuem uma referência à sexualidade humana.

Atividades produtivas

Heweyehie e Heweyerä colhendo milho da roça de IwãMayä para um cauim doce coletivo. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Heweyehie e Heweyerä colhendo milho da roça de IwãMayä para um cauim doce coletivo. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

A agricultura é a base da subsistência araweté, sendo o milho o produto dominante de março a novembro, e a mandioca no período complementar. De todo modo, há uma predominância absoluta do cultivo do milho sobre o da mandioca, o que distingue o grupo dos demais Tupi-Guarani amazônicos. O milho é consumido como mingau de milho verde, farinha de milho, mingau doce, paçoca de milho e mingau alcoólico. Este último (cauim) é o foco da maior cerimônia, que se realiza várias vezes durante a estação seca. Planta-se também batata-doce, macaxeira, cará, algodão, tabaco, abacaxi, cuieiras, curauá (uma bromeliácea usada para cordoaria), mamão, urucum.

A caça também é objeto de intenso investimento cultural. Os Araweté caçam uma grande variedade de animais; em ordem aproximada de importância alimentar, temos: jabotis; tatus; mutuns, jacus; cotia; caititu; queixada; guariba; macacos-pregos; paca; veados; inhambus; araras, jacamins, jaós; anta. Tucanos, araras, o gavião-real e outros gaviões menores, os mutuns, o japu e dois tipos de cotingas são procurados também pelas penas, para flechas e adornos. As araras vermelha e canindé, e os papagaios, são capturados vivos e criados como xerimbabos na aldeia. (Em 1982, a aldeia tinha 54 araras criadas soltas.)

As armas de caça são o arco de madeira de ipê, admiravelmente bem trabalhado, e três tipos de flecha. As armas de fogo foram introduzidas em 1982, e seu uso tem levado à diminuição da população animal nos arredores, obrigando os Araweté a cobrirem um raio maior de território.

A pesca se divide em dois períodos: a estação de pesca com o timbó, em outubro-novembro, e os meses de pesca cotidiana, feita com arco e flecha ou anzol e linha. Embora o peixe seja alimento valorizado, é-o menos que a carne de caça, e a pesca é uma atividade principalmente exercida por meninos e mulheres (exceto as pescarias coletivas com timbó). Os Araweté são índios da terra firme: a maioria das pessoas mais velhas não sabe nadar. A água de beber e cozinhar é retirada de cacimbas abertas na margem arenosa dos cursos d'água ou nos açaizais.

Irawadïdä queimando a entrada de uma colmeia de iwahä (mel de xupé) num jatobá. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Irawadïdä queimando a entrada de uma colmeia de iwahä (mel de xupé) num jatobá. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

A coleta é uma atividade importante. Seus principais produtos alimentares são: o mel, de que os Araweté possuem uma refinada classificação, com pelo menos 45 tipos de mel, de abelhas e vespas, comestíveis ou não; o açaí (Euterpe oleracea); a bacaba (Œnocarpus sp.); a castanha-do-Pará (Bertholetia excelsa), importante na época das chuvas; o coco-babaçu (Orbygnia phalerata), comido e usado como liga do urucum, e para ductilizar a madeira dos arcos; e frutas como o cupuaçu (Theobroma grandiflorum), o frutão (Lucuma pariry), o cacau-bravo (Theobroma speciosum), o ingá (Inga sp.), o cajá (Spondias sp.), e diversas sapotáceas. Destaquem-se ainda os ovos de tracajás (Podocnemis sp.), objeto de excursões familiares às praias do Ipixuna em setembro, e os vermes do babaçu (Pachymerus nucleorum), que podem também ser criados nos cocos armazenados em casa.

Dentre os produtos não-alimentares da coleta, podem-se registrar: as folhas e talas de babaçu para a cobertura das casas, esteiras, cestos; a bainha das folhas de inajá (Maximiliana maripa), açaí e babaçu, que servem de recipientes; dois tipos de cana para flecha; o taquaruçu para a ponta das flechas de guerra e caça grossa; a taquarinha e outras talas para as peneiras e o chocalho de xamanismo; a cuia silvestre para o maracá de dança; madeiras especiais para pilões, cabos de machado, arco, pontas de flecha, esteios e vigas das casas, paus de cavar, formões; enviras e cipós para amarração; e barro para uma cerâmica simples, hoje em desuso com a introdução das panelas de metal.

Os trabalhos e os dias

A vida social e econômica dos Araweté bate em compasso binário: floresta e aldeia, caça e agricultura, chuva e seca, dispersão e concentração.

Nas primeiras chuvas de novembro-dezembro, planta-se a roça de milho. À medida que cada família termina de plantar, vai abandonando a aldeia pela mata, onde ficará até que o milho esteja em ponto de colheita - um período de cerca de três meses. Os homens caçam, estocam jabotis, tiram mel; as mulheres coletam castanha-do-Pará, coco-babaçu, larvas, frutas, torram o pouco milho velho da colheita anterior que trouxeram. Essa fase de dispersão é chamada de awacï mo-tiarã, "fazer amadurecer o milho" - diz-se que, caso não se vá para a mata, o milho não vinga. Em fevereiro- março, após várias viagens de inspeção às roças, alguém finalmente traz os cabelos do milho verde ao acampamento, mostrando a maturidade da planta. Faz-se aí a última grande pajelança do jaboti - atividade típica da estação chuvosa - e a primeira grande dança opirahë, característica da fase aldeã que está para se iniciar. Esse é o "tempo do milho verde", o começo do ano araweté.

Apenas quando todas as famílias já chegaram na aldeia se faz a primeira pajelança de cauim (mingau de milho) doce, a que outras se seguem. O milho de cada festa é colhido coletivamente na roça de uma família, mas processado por cada unidade residencial da aldeia. Essa é também uma época em que as mulheres preparam grandes quantidades de urucum, dando à aldeia uma tonalidade avermelhada geral. A partir de abril- maio as chuvas diminuem, e se estabiliza a fase de vida aldeã, marcada pela faina incessante de processamento do milho maduro, que fornece a paçoca mepi, base da dieta da estação seca.

De junho até outubro estende-se a estação do cauim alcoólico, que recebe seu nome: kã'i da me, "tempo do cauim azedo". É o auge da seca. As noites são animadas pelas danças opirahë, que se intensificam durante as semanas em que se prepara o cauim. Essa bebida é produzida por uma família ou seção residencial, com o milho de sua própria roça. Pode haver vários festins durante a estação seca, oferecidos por diferentes famílias. Eles costumavam reunir mais de uma aldeia - quando os Araweté possuíam diferentes grupos locais- e ainda são o momento culminante da sociabilidade. A festa do cauim alcoólico é uma grande dança opirahë noturno em que os homens, servidos pela família anfitriã, dançam e cantam, bebendo até o dia seguinte.

Na fase final de fermentação da bebida - o processo todo dura uns vinte dias - os homens saem para uma caçada coletiva. Retornam uma semana depois, trazendo muita carne moqueada, o que os dispensará de caçar por vários dias. Na véspera da chegada dos caçadores há uma sessão de descida dos Maï e das almas dos mortos, trazidos por um pajé para provarem do cauim.

A partir de julho-agosto começam a aumentar a freqüência e a duração dos movimentos de dispersão. As famílias se mudam para as roças, mesmo que essas não distem muito da aldeia, e ali acampam por uma quinzena ou mais. É a estação de "quebrar o milho", quando se colhe todo o milho ainda no pé e se o armazena em grandes cestos, depositados sobre jiraus na periferia das roças. Dali as famílias se vão abastecendo até o final da estação seca, quando os cestos restantes são levados para o novo sítio de plantio.

Araweté fazendo um cesto num acampamento na mata. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Araweté fazendo um cesto num acampamento na mata. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Esta temporada na roça reúne em cada acampamento mais de uma família conjugal - seja porque a roça pertence a uma seção residencial (conjunto de famílias aparentadas que moram próximas entre si na aldeia), seja porque os donos de roças próximas decidem acampar juntos. Durante a quebra do milho, os homens saem todo dia para caçar, enquanto as mulheres e crianças colhem as espigas, fazem farinha, tecem; essa é também a época da colheita do algodão.

Tais temporadas na roça são vistas como muito agradáveis. Depois de cinco ou seis meses de convivência na aldeia, os Araweté parecem ficar inquietos e entediados. Nos acampamentos de roça as pessoas ficam mais à vontade, conversam livremente sem medo de serem ouvidas por vizinhos indiscretos.

Durante o auge da estação seca, dificilmente se passa mais de uma semana sem que um grupo de homens decida realizar uma expedição de caça, quando dormem fora de uma a cinco noites. São comuns também, a partir de agosto, as excursões de grupos de famílias, para pegar ovos de tracajá, pescar, caçar, capturar filhotes de arara e papagaio. Exceto nos meses de março a julho, é muito raro haver dias em que todas as famílias estão dormindo na aldeia.

A partir de setembro, a estação do cauim começa a dar lugar ao tempo do açaí e do mel. A chegada dos espíritos Iaraci (o "comedor de açaí") e Ayaraetã (o "pai do mel"), trazidos à aldeia pelos pajés, provoca a dispersão de todos para a mata em busca dos produtos associados a esses espíritos.

Em outubro-novembro, com as águas dos rios em seu nível mais baixo, fazem-se as pescarias com timbó, que também levam à fragmentação da aldeia em grupos menores.

A dispersão criada por todas essas atividades de coleta e pesca, porém, é mais uma vez contrabalançada pelas exigências do milho. Em setembro começa a derrubada das roças novas; no final de outubro, a queimada; e logo às primeiras chuvas de novembro-dezembro, o plantio, logo antes da dispersão das chuvas. Antes de partirem para a mata, colhe-se a mandioca, cuja farinha servirá de complemento à caça e ao mel da dieta da mata.

Este é o ciclo anual araweté: um constante oscilar entre a aldeia e a floresta, a agricultura e a caça-coleta, a estação seca e a chuvosa. A vida na aldeia está sob o signo do milho, e de seu produto mais elaborado, o cauim alcoólico; a vida na mata está sob o signo do jabuti (a caça dominante na estação chuvosa) e do mel.

Organização política

Foto: Eduardo Viveiros de Castro.
Foto: Eduardo Viveiros de Castro.

Os Araweté são um povo orgulhosamente individualista, refratário a qualquer forma de 'coletivismo' e de comando, onde as pessoas se recusam a seguir as outras, preferindo ostentar uma independência obstinada. Aos olhos ocidentais, sempre preparados para julgar as coisas sob o ângulo da 'coordenação' e da 'organização', sua vida dá uma singular impressão de desordem e descaso. Era-me sempre muito difícil determinar o momento inicial de qualquer ação coletiva: tudo parecia ser deixado para a última hora, ninguém se dispunha a começar coisa alguma...

Na verdade, é exatamente pelo fato da ação coletiva ser, aos olhos araweté, ao mesmo tempo uma necessidade e um problema, que a noção de tenotã mõ, "líder", designa uma posição onipresente mas discreta, difícil mas indispensável. Sem um líder não há concerto coletivo; sem ele não há aldeia.

Tenotã mõ significa "o que segue à frente", "o que começa". Essa palavra designa o termo inicial de uma série: o primogênito de um grupo de irmãos, o pai em relação ao filho, o homem que encabeça uma fila indiana na mata, a família que primeiro sai da aldeia para excursionar na estação chuvosa. O líder araweté é assim o que começa, não o que comanda; é o que segue à frente, não o que fica no meio.

Toda e qualquer empresa coletiva supõe um tenotã mõ. Nada começa se não houver alguém em particular que comece. Mas entre o começar do tenotã mõ, em si mesmo algo relutante, e o prosseguir dos demais, sempre é posto um intervalo, vago mas essencial: a ação inauguradora é respondida como se fosse um pólo de contágio, não uma autorização.

Menina araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Menina araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

O puro contágio - a propagação de uma atividade sem concerto, onde cada um faz por sua conta a mesma coisa - é a forma corriqueira de ação econômica araweté. Um belo dia, por exemplo, duas vizinhas põem-se a preparar urucum. Não por haver cerimônia em vista, ou porque esta seja a época do urucum; mas apenas porque o decidiram. Em algumas horas, vêem-se todas as mulheres da aldeia a fazer o mesmo. Um homem passa distraído por um pátio alheio, vê outro a fabricar flechas; resolve fazê-lo também, e daí a pouco estão os homens sentados em seus pátios, a fazer flechas.

Esta forma de propagação deve ser distinguida daquelas atividades onde o sinal para a ação é dado pela natureza. E mesmo aí, a emulação é importante: após um longo período de vida na aldeia, um grupo de famílias decide excursionar; no espaço de alguns dias, vários outros grupos saem, cada qual numa direção, como se de repente todos descobrissem que não agüentavam mais o tédio da vida em comum.

Essa forma de ação 'coletiva' aparece como uma solução interessante para o problema do começar, uma vez que cada um faz a mesma coisa, ao mesmo tempo, mas para si, numa curiosa mistura de submissão ao costume e manutenção da autonomia. Ela manifesta uma tendência à repetição extrínseca das atividades, o que é consoante com a autonomia dos pátios e setores da aldeia.

Mas algumas atividades fundamentais não são realizáveis sem um tenotã mõ. Mesmo que a forma de trabalho seja a cooperação simples, elas supõem um início formal. As principais são: as caçadas coletivas, cerimoniais ou não; a colheita e processamento de milho, açaí etc., para uma festa de peyo (pajelança); a dança opirahë; as expedições de guerra; a escolha do sítio de roças multi-familiares e do lugar de aldeias novas.

Um tenotã mõ é alguém que decide onde e quando se vai fazer algo, e que sai na frente para fazê-lo. Quem propõe a outrem uma empresa é o tenotã mõ dela; quem pergunta "vamos?", vai na frente, ou nada acontece.

Ocasiões diversas têm tenotã mõ diversos, o que faz circular a função de liderança (que às vezes não é mais que este gesto de começar) entre todos os adultos. O líder de uma empresa pode ser aquele que teve a idéia dela, ou que sabe como levá-la a cabo. Tal posição pode caber a mais de um indivíduo, para a mesma tarefa. E a aldeia pode fracionar-se em diversos grupos, cada qual com seu tenotã mõ. Ao líder incumbe a convocação dos demais, e o movimento inicial: aos poucos, os outros o seguem.

Esta posição de tenotã mõ é vista como algo constrangedora. Um líder é alguém que não tem "medo-vergonha" (iyie) de se arriscar a convocar os outros. Ele precisa saber interpretar o clima vigente na aldeia, antes de começar de fato, ou ninguém o segue. O processo efetivo de tomada de decisões é discreto - conversas aparentemente distraídas nos pátios noturnos, declarações a ninguém em particular de que se vai fazer algo amanhã, combinações confidenciais de grupos de amigos, tudo isto termina por gerar um líder para uma tarefa.

Mas, para além dessa forma de determinação de posições temporárias e limitadas de liderança, toda a aldeia reconhece um homem, ou melhor, um casal, como ire renetã mõ, "nossos líderes", uma posição fixa e geral. Contudo, o âmbito das atividades em que esses líderes agem formalmente como tenetã mõ da aldeia é mínimo.

Os "donos da aldeia" são os tã ñã, o casal ou casais que primeiro abriram uma roça de milho no sítio de uma aldeia nova, à volta da qual se foram agregando outras roças e outras casas. O tã ñã, assim, é o fundador de uma aldeia, e é isto que o transforma em tenetã mõ. Ele é o "dono da aldeia" na medida em que esta se ergue em um espaço que ele abriu ou marcou, e que foi derrubado por sua família extensa. Toda aldeia, portanto, é uma ex-roça (ka pe, capoeira) de uma ou mais famílias fundadoras.

Vê-se, assim, que não só a aldeia, mas sua chefia é função do milho, e que a noção de tenotã mõ de aldeia não é mais que o desenrolar temporal do movimento de começar uma aldeia nova. O nome "dono da aldeia" não significa que seu portador disponha de qualquer direito sobre o solo aldeão: não determina onde as famílias dos outros erguerão suas casas, onde farão suas roças; não é responsável por nenhum espaço comunal; não coordena trabalhos públicos.

A situação dos Araweté desde 1976, particularmente o fato de que sua única aldeia ser uma fusão dos remanescentes de diversos grupos locais, tendo, além disso, uma população bem maior que a das aldeias tradicionais, certamente explica a grande autonomia dos setores residenciais, e conseqüentemente a minimização da posição de "dono da aldeia" e "líder". A autoridade de um "dono de aldeia" tradicional deverá ter sido algo maior, exatamente porque os grupos locais eram menores. O que hoje é a grande autonomia dos setores residenciais, no passado deve ter sido a autonomia dos grupos locais, que então estavam mais próximos de sua matriz sociológica, a família extensa uxorilocal.

Aldeia e sociedade

Araras domesticadas são presença constante na aldeia. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Araras domesticadas são presença constante na aldeia. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Os Araweté parecem viver em aldeias por causa do milho; todos os seus movimentos de reunião em um só lugar se fazem em função das exigências do cultivo desta planta. Isso já se mostra na instalação de uma nova aldeia. Se toda roça foi, antes, mata, toda aldeia foi, antes, roça. Quando um grupo decide mudar-se para outro lugar, abre primeiro as roças de milho, e se instala no meio delas. Com o passar do tempo e das safras as plantações vão recuando, e resta uma aldeia.

Ao contrário das aldeias dos povos indígenas do Brasil Central, com suas casas geometricamente dispostas em círculo em torno de um pátio cerimonial, a aldeia araweté dá a impressão inicial de um caos. As casas são muito próximas umas das outras, não obedecendo a nenhum princípio de alinhamento; os fundos de umas são os pátios fronteiros de outras; caminhos tortuosos atravessam a aglomeração, entre moitas de árvores frutíferas, troncos caídos e buracos. Cascos de jaboti e resíduos da faina do milho estão em toda parte; o mato cresce livremente onde pode, as fronteiras entre o espaço aldeão e a capoeira circundante são vagas.

Em 1982, quando passei meu mais longo período entre os Araweté, apenas três das então 45 casas da aldeia estavam ainda construídas ao modo 'tradicional': pequenas choupanas inteiramente cobertas de folhas de babaçu, sem distinção teto-parede, com diminutas portas dianteiras fechadas com esteiras. As demais seguiam o estilo camponês regional: paredes de taipa, telhado de folha de babaçu, planta retangular. Alguns princípios da arquitetura pré-contato foram mantidos, porém, como a ausência de janelas e o pequeno tamanho da porta. Em março de 1992, a aldeia contava com 55 casas, todas construídas nesse novo estilo, que também corresponde à totalidade das casas da aldeia atual.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Os moradores de uma casa formam uma família conjugal: um casal e seus filhos até 10-12 anos. Nessa idade, os meninos constróem pequenas casinhas iguais às dos pais, próximo a estas, e ali dormem sozinhos, embora continuem a usar o fogo de cozinha familiar. As meninas dormem na casa dos pais até a puberdade, quando então devem deixá-la e casar (os Araweté sustentam que os pais de uma menina morreriam se ela menstruasse em sua casa natal).

Cada residência possui um hikã ou terreiro, uma área mais ou menos limpa de mato em frente ou ao lado da porta. É ali que ficam alguns instrumentos - pilões, tachos, panelas -, e que se trabalha de dia, torrando milho, fazendo flechas, tecendo esteiras e roupas. Ali se cozinha, na estação seca. O terreiro é o lugar onde se conversa e se tomam as refeições, e onde se recebem as visitas. É algo raro que uma pessoa (exceto se mãe ou irmã da dona) entre em casa alheia. À noite trancam-se as portas, veda-se qualquer pequena abertura nas paredes, para que os espíritos perigosos que rondam a aldeia não entrem.

Mas a desordem espacial da aldeia é apenas aparente. Embora cada casa conjugal tenha seu próprio terreiro, grupos de casas tendem a dividir um espaço comum, fundindo seus diferentes pátios em uma área contínua. A aldeia é uma constelação desses pátios maiores, que são o cenário principal da vida cotidiana. Tais setores da aldeia que se congregam em torno de um mesmo pátio estão organizados de acordo com a unidade social básica araweté, a família extensa uxorilocal (forma de residência pós-marital onde o homem vai residir junto à família da mulher): um casal mais velho, seus filhos solteiros de ambos os sexos e suas filhas casadas, genros e netos. Isto não quer dizer que cada setor da aldeia seja ocupado sempre por casas de pessoas ligadas dessa forma. Na verdade, os arranjos residenciais araweté são bastante variados, assim como a distinção entre os diferentes setores nem sempre é espacialmente clara.

Refeição coletiva na aldeia. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Refeição coletiva na aldeia. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Os setores residenciais da aldeia podem ser divididos em dois tipos: aqueles formados por famílias com duas gerações de membros casados (cujo modelo é a família extensa uxorilocal), e aqueles formados por grupos de irmãos (irmãos e/ou irmãs) casados, com filhos ainda pequenos. O primeiro tipo forma unidades espacialmente mais compactas e socialmente mais integradas, voltando-se de fato para um pátio comum; o segundo é antes composto por pátios próximos ou adjacentes. Esses dois tipos de setor representam dois momentos no ciclo de desenvolvimento temporal das famílias: se a tendência após o casamento é idealmente uxorilocal, com o passar do tempo e a morte do casal mais velho pode-se observar um movimento de reunião espacial de irmãos casados, que se mudam com seus respectivos cônjuges. Como também é comum o casamento entre grupos de irmãos - dois irmãos casando-se com duas irmãs, ou um par irmão/irmã unindo-se a outro par -, muitas vezes os dois tipos de setor residencial se encontram combinados.

Os setores formados por famílias extensas tendem a abrir uma só roça, que abastece todas as casas do setor; essa roça é identificada ao casal mais velho (os sogros dos homens casados e pais das mulheres). Nos setores compostos por grupos de irmãos adultos, cada casa abre sua própria roça, em geral adjacente às dos outros irmãos.

O que sobressai, na estrutura da aldeia araweté, é seu pluricentrismo, isto é, a ausência de um espaço 'público', cerimonial e centralmente situado. A aldeia parece um agregado de pequenas aldeias, 'bairros' de casas voltados para si mesmos. A festa do cauim fermentado, a mais importante cerimônia araweté, é sempre realizada no pátio da família que oferece a bebida. A oferenda alimentar mais perigosa, a de açaí com mel para o canibal celeste Iaraci, é feita no pátio do pajé encarregado de "trazer" esse espírito. Ou seja: a organização cerimonial, se efetivamente contribui para unir a comunidade local, não chega a constituir um centro marcado por um simbolismo religioso. A pajelança cotidiana tampouco se realiza em qualquer espaço comunal. O templo de um pajé é sua casa: é ali que ele sonha e canta à noite, saindo para seu próprio pátio quando os Maï descem. Se precisa devolver a alma de alguém, vai ao pátio do paciente, ou à beira do rio (quando o ladrão de alma é o espírito Iwikatihã,  o Senhor da água). Entre os Araweté, portanto, não só não se acham as 'casas cerimoniais' de outros povos tupi-guarani, como tampouco o sistema das 'tocaias', pequenas tendas de palha onde os pajés recebem os espíritos, presente em quase todos os Tupi-Guarani da Amazônia.

Tudo isto sustenta esta conclusão: a aldeia é uma forma derivada, um resultado e não uma causa. Economicamente, ela é função do milho; sociologicamente, é a justaposição de unidades menores, não seu centro organizador. Ela é o produto do equilíbrio temporário entre as forças centrípetas e centrífugas dos diversos pátios.

Um dia na estação seca

Afora alguns homens que saíram bem cedo para caçar mutum, é só lá pelas sete horas que a aldeia começa a se movimentar. As famílias comem algo em seus terreiros; alguns vão visitar o Posto; outros passeiam por pátios vizinhos, informando-se dos planos dos demais; outros se quedam trabalhando: nessa época, desde cedo as mulheres descaroçam e batem os flocos de algodão, fiam e tecem. A família então decide o seu dia. O homem sai para caçar, em geral com dois ou três companheiros; se não, vai ajudar a mulher a torrar milho, ou sai com ela à roça, buscar milho e batata, aproveitando para caçar nos arredores. Ao meio-dia a aldeia está vazia. Quem foi à roça já voltou e está dentro de casa, fugindo do sol forte.

O calor da tarde começa a amainar às quatro; a aldeia se reanima. As mulheres pilam milho, recolhem lenha, buscam água, à espera dos caçadores. Os homens que ficaram na aldeia ajudam no serviço do milho, ou trabalham na feitura e manutenção de suas armas.

Entre as cinco e seis horas, já escurecendo, vão chegando os caçadores. Sozinhos ou em grupo, entram apressados e silenciosos, ignorando os comentários que sua carga desperta nos pátios por onde passam, só parando no terreiro de suas casas. Vão-se então banhar, enquanto as mulheres acendem as fogueiras para a refeição noturna. Quando a caçada do dia foi abundante, a animação toma conta de todos. Quem não está ocupado em cozinhar passeia pelos pátios, observando o que lá se prepara. As crianças correm, dançam e brincam pela aldeia; as araras gritam estridentemente, e seus donos começam a recolhê-las.

No cair da noite começa uma ronda gastronômica de pátio em pátio. Quando a carne é muita, isto se estende até as dez horas ou mais, cada família convidando, sucessivamente, as outras. Os homens dão gritos agudos e prolongados, convocando os moradores de outros setores residenciais a comer o porco, o mutum ou o tatu que se prepara. As famílias vão-se reunindo no pátio do anfitrião, trazendo ou não seus filhos pequenos, conforme as estimativas da comida disponível. Cada casal que chega traz seu próprio cesto com paçoca de milho. Todos se sentam em esteiras no chão, perto da carne; tagarela-se, ri-se, a balbúrdia é geral.

Sigamos a marcha do dia. Após as refeições noturnas, a aldeia começa a silenciar. As famílias voltam para seus pátios, onde se deitam a conversar. Por volta da meia-noite, quase todos já estão dentro de suas casas - a menos que uma dança opirahë esteja sendo realizada em algum lugar da aldeia.

Cauinagem

Mastigação de Cauim de milho (Mitähi). Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Mastigação de Cauim de milho (Mitähi). Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Quando uma família decide oferecer uma festa de cauim, avisa a toda a aldeia, e pede quanta panela houver, de todas as casas. Inicia então a labuta: marido e mulher pilam milho, cozinham-no, a mulher mastiga a massa (para fermentar) e coa o mingau. O casal deve manter abstinência sexual durante todo este período, ou o mingau não fermentará. O marido sai menos para caçar, indo todo o dia à roça buscar milho. As panelas cheias vão sendo enfileiradas dentro da casa, ao longo das paredes.

Ninguém de fora deve olhar o cauim fermentando, ou o processo desanda. Todas as noites, dança-se no pátio do anfitrião, para "fazer esquentar o cauim" - uma referência não só ao cozimento do mingau, mas ao processo de fermentação, que libera uma considerável quantidade de calor. As manhãs são marcadas pelo consumo coletivo do hati pe, o bagaço azedo que é separado do líquido em fermentação.

Entrementes, o dono do cauim convida um homem para ser o cantador da festa; ele será também o líder da caçada ritual que precede a cerimônia. Quando todo o mingau já foi processado e está a fermentar, o dono avisa ao cantador que é tempo de sair para a caçada, dita kã'i mo-ra, "fazer fermentar o mingau".

A expedição de caça reúne todos os homens da aldeia, com exceção do anfitrião, que deve permanecer na aldeia zelando pela fermentação da bebida, e do pajé que estiver encarregado de realizar a cerimônia do "serviço do cauim" (kã'i dokã).

Expedição de caçadores retornando para uma caiuinagem e tocando suas trombetas terewo. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Expedição de caçadores retornando para uma caiuinagem e tocando suas trombetas terewo. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Liderados pelo cantador, os homens partem. Na aldeia, ficam as mulheres a torrar milho e recolher lenha para a carne que virá. Toda noite, elas dançam no pátio do anfitrião, lideradas pela esposa do cantador. Essas danças são arremedos jocosos do opirahë masculino: as canções araweté, de dança ou de pajelança, são sempre de autoria masculina, pois só os homens são guerreiros e pajés, e só eles podem trazer os Maï à terra. Por isso, as mulheres podem apenas repetir as canções masculinas, jamais compondo novas canções.

A pajelança chamada "serviço do cauim" realiza-se tarde da noite, na véspera da chegada dos caçadores. As panelas são trazidas de dentro da casa do dono, colocadas em seu colo, e esvaziadas pelos Maï e almas de mortos trazidas pelo pajé para tomar a bebida. O pajé narra uma festa de cauim invisível, onde os Maï e os mortos se atropelam em volta das panelas, bebendo até à saciedade. Essa cauinagem mística é assistida pelas mulheres, que depois contam a seus maridos o que disseram os visitantes celestes. O cauim alcoólico será, quando tomado no dia seguinte pelos homens, definido como Maï dëmïdo pe, "ex-comida dos deuses". Essa é a mesma expressão que designa os mortos celestes, que foram devorados pelos Maï ao chegar ao céu e em seguida ressuscitados por estes.

Horas antes da festa, os homens retornam da caçada. Perto da aldeia, detêm-se a esperar os retardatários e aguardam o cair da tarde. Todos então se banham, e põem-se a fabricar os terewo, trombetas espiraladas feitas de folíolos de babaçu, de som cavo e pungente. Prontos, seguem caminho, soando os terewo, que se ouvem desde muito longe. As mulheres correm a banhar-se e embelezar-se, e acendem as fogueiras. Ao chegar na aldeia, os homens se dispersam silenciosos e compenetrados, indo para suas casas. As carnes que trazem são postas sobre moquéns ou jiraus para continuar a assar. Logo se ouve o dono do cauim a convocar todos - em primeiro lugar, o cantador - para uma prova da bebida que será servida. Cai a noite. As famílias vão para seus pátios decorar-se; essa é a ocasião em que os Araweté se apresentam mais enfeitados, sobretudo o cantador, com o diadema de penas de arara, a cabeça emplumada de branco, o rosto decorado com penas de cotinga e resina perfumada, o corpo rebrilhando de urucum fresco: Maï herî, "como um deus". O dono do cauim, ao contrário, não se pinta nem se enfeita; ele é um servidor dos convivas.

Casal patrocinador de um cauim alcóolico (Kan 'Da). As panelas pertencem a toda a aldeia e são emprestadas para a ocasião. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Casal patrocinador de um cauim alcóolico (Kan 'Da). As panelas pertencem a toda a aldeia e são emprestadas para a ocasião. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Por volta das nove horas, o cantador se levanta em seu pátio, e começa a convocar os demais. Chama primeiro os marakay rehã, aqueles que dançarão a seu lado, posição combinada durante a caçada, e que cabe a alguns de seus apöhi-pihã, amigos cerimoniais.

Após a chegada do cantador, que ocupa com sua família o lugar mais próximo à porta do anfitrião, as famílias vão-se instalando em esteiras à volta do pátio da festa. Aos poucos começa a dança, constantemente interrompida pelo dono do cauim, sua esposa e filhos, que servem cuias cheias de bebida aos dançarinos. É ponto de honra tomar de um só gole todo o conteúdo da cuia (meio litro). As panelas se esvaziam rapidamente, e vão sendo amontoadas num canto. Todos devem beber - exceto a família dos donos da bebida, que apenas serve. Diz-se também que parentes próximos do casal anfitrião devem tomar pouco da bebida, sobretudo se dividem o mesmo pátio e plantam a mesma roça de milho. Essa norma sugere duas idéias: não se deve tomar cauim mastigado por uma parenta próxima, nem produzido com o milho da própria roça.

A situação atual de reunião de todos os Araweté em uma só aldeia esconde uma oposição que era fundamental na festa do cauim: o cantador deveria vir sempre de uma aldeia outra que a do dono do cauim. Essa festa reunia tradicionalmente mais de uma aldeia, e os homens das aldeias convidadas formavam o núcleo principal dos dançarinos, entremeados por alguns amigos cerimoniais da aldeia do anfitrião. O patrono do cauim encarnava a aldeia anfitriã, o cantador as aldeias convidadas; os co-residentes do dono da festa estariam numa situação intermediária, dançando menos e tomando menos cauim que os convidados. Os co-residentes do casal patrono, contudo, também saíam para caçar; como hoje, apenas o dono do cauim ficava na aldeia, para acompanhar a fermentação.

Voltemos à festa. Com o passar do tempo e das sucessivas rodadas de cauim, os dançarinos vão-se embriagando, e algumas mulheres se animam a dançar. Os homens vomitam o cauim que lhes é implacavelmente servido; o maracá do cantador, os aray dos pajés (que podem estar, em diferentes locais do pátio, fechando o corpo de crianças pequenas para que seus pais possam beber sem prejudicá-las), os cantos de uns e dos outros se misturam; ouvem-se gritos e risadas. Alguns começam a chorar desesperadamente, os mais velhos porque lembram dos filhos mortos, outros apenas balbuciam frases sem nexo. Quando se está bêbado de cauim, dizem os Araweté, espigas de milho ficam a girar diante de nossos olhos, entontecendo-nos.

A cauinagem termina às primeiras luzes da aurora; poucos restam de pé. O cantador é sempre o último a se retirar do terreiro. Se ainda sobraram panelas de cauim, no dia seguinte a festa tem de continuar. No cair da tarde os homens se reúnem dentro da casa do dono, e ali ficam cantando e bebendo até que o sol se ponha. Só então se transferem para o pátio, onde cantam até a última gota da bebida ser servida. Exaustos - nem todos agüentam essa segunda rodada -, dispersam-se; é o fim da festa.

Durante a festa do cauim, ninguém come nada - nisso os Araweté se parecem mais uma vez com os Tupinambá, que chamaram a atenção dos primeiros observadores europeus (vindos de uma civilização onde se tomava vinho durante as refeições) por jamais beberem enquanto comiam e vice-versa. No dia seguinte à festa, as mulheres dos caçadores, lideradas pela esposa do cantador, vão até a casa da dona do cauim e lhe entregam parte da caça trazida por seus maridos. Essa carne é o kã'i pepikã, o "pagamento do cauim". O casal dono do cauim irá convidar, em seguida, todos os membros da aldeia para comer da carne que receberam; o 'pagamento', como se vê, termina sendo repartido com aqueles mesmos que 'pagaram': são razões sociais que presidem a estas trocas alimentares, não razões meramente econômicas.

Valores simbólicos da cauinagem

Por trás dessa festa aparentemente confusa e tumultuada, existe uma série de associações simbólicas importantes: o cauim é uma bebida carregada de significados. Vejamos, em primeiro lugar, o papel do dono do cauim. Ele ocupa uma posição feminina: dedicado ao milho, não caça, não dança, não bebe. Por outro lado, seu papel é uma síntese de dois estados masculinos típicos: o do pai de criança pequena, e o de homem em trabalho de fabricação de filho. Como o primeiro, ele não pode ter relações sexuais, nem deve sair da aldeia; como o segundo, ele "esquenta o cauim", cozinhando-o e zelando por sua fermentação, como um homem deve "esquentar o feto" por meio de cópulas freqüentes com sua mulher, um processo indispensável à boa gestação. (Os Araweté, como a maioria dos outros povos indígenas brasileiros, sustentam que um só ato sexual não é suficiente para uma boa concepção: o feto é literalmente fabricado por um aporte constante de sêmen paterno durante os primeiros meses da gestação).

Os Araweté não me traçaram paralelos explícitos entre a fermentação do cauim e a gestação. Mas há uma série de associações entre esses dois processos. Em primeiro lugar, tanto a fermentação quanto a gestação fazem-se através das mulheres, e são vistas como transformações (heriwã) de uma matéria-prima: o sêmen masculino, matéria exclusiva da criança (os Araweté sustentam que a mulher não contribui com nenhuma substância na formação do filho), é transformado no útero materno; o milho cozido com água transforma-se em cauim na boca da mulher que o mastiga. Por isso, aliás, uma mulher menstruada não pode mastigar cauim, e se uma dona do cauim que estiver grávida abortar durante a fabricação da bebida, esta deve ser jogada fora. Os pais de crianças pequenas não podem ter relações sexuais nem tomar cauim: a criança se encheria com o sêmen paterno ou com o cauim tomado, engasgando-se e morrendo sufocada.

Vê-se uma oposição entre sêmen e cauim que reforça sua ligação: o primeiro vai dos homens para as mulheres, mas o segundo vai das mulheres - que o mastigam, e que quase não bebem - para os homens. A cauinagem é a única ocasião em que as mulheres (ou o casal anfitrião, que ocupa uma posição feminina) servem os homens. Cheios de cauim, os dançarinos incham e dizem ficar barrigudos como as mulheres grávidas. Tem-se como um processo de 'inseminação artificial', onde o cauim surge como uma espécie de sêmen feminino.

Por seus efeitos entontecedores, o cauim é ainda comparado ao timbó, a liana usada pelos Araweté como veneno de pesca. Diz-se que o cauim é um "matador de gente" como o timbó é um "matador de peixe": "na cauinagem ficamos como os peixes, bêbados de timbó". A comparação é boa, pois o timbó não é veneno propriamente, mas um narcótico: se os peixes não forem capturados enquanto tontos, reanimam-se e escapam. Esse caráter de veneno atenuado do cauim de milho tem uma expressão proverbial: "o suco da mandioca brava nos mata de verdade, o do milho não".

Outra associação do cauim é com o leite materno: o leite é dito ser o "cauim das crianças". Por isso, os pais de criança de peito devem submetê-las à operação de "fechamento do corpo" executada por um pajé: caso contrário, o cauim, este leite dos adultos, passa para o corpo da criança e a mata. Tal associação entre o cauim e o leite reforça-se quando recordamos a posição 'nutriz' das mulheres diante dos homens, durante a cerimônia. Note-se ainda que é comum as mães alimentarem seus bebês com comida previamente mastigada por elas - como o cauim o é. Sêmen feminino, veneno suave, leite azedo, o cauim é uma bebida que condensa diversas evocações simbólicas.

Finalmente, a principal referência da cauinagem é a guerra. A caçada cerimonial que precede a festa é simbolicamente uma expedição guerreira. O cantador, líder da caçada, é um guerreiro; um dos apelidos jocosos dados aos inimigos é kã'i nãhi, "tempero do cauim" - isto é, aquilo que lhe dá sabor, que o anima. Isto evoca o fato de que a morte de um inimigo na guerra era sempre comemorada com uma grande cauinagem, onde o guerreiro que matou o inimigo oficiava como cantador.

A dança opirahë

Dança opirahë. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1981
Dança opirahë. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1981

O opirahë é a única forma de dança praticada pelos Araweté: uma massa compacta de homens, dispostos em linhas, que se desloca lentamente em círculos anti-horários, cantando. Na linha do meio, e no meio desta, vai o cantador (marakay), que toca um chocalho de dança para a marcação do ritmo. O cantador começa cada canto, repetido em uníssono pelos demais dançarinos. Após um bloco de canções, os dançarinos se dispersam, sentando nas esteiras à volta do pátio da dança com suas mulheres. Passados alguns minutos, o cantador se levanta; o grupo então se refaz, com cada homem ocupando a mesma posição no interior do conjunto que na etapa anterior. Cada linha, composta de dançarinos com os braços entrelaçados, segue praticamente colada à linha seguinte. Nas linhas da frente seguem os mais jovens. As mulheres podem vir-se juntar ao grupo: passam o braço por debaixo do de seu parceiro, segurando seu ombro e ali repousando a cabeça; elas sempre formam no exterior do grupo, nunca ficando entre dois homens. Uma mulher dança com seu marido, ou então com seu apöno, seu "namorado"; nesse caso, seu marido deve dançar com a esposa daquele homem, no outro extremo da mesma fila.

Um opirahë pode ser organizado por simples diversão, por um grupo de jovens; ou pode ser parte do ciclo de danças noturnas executadas durante a preparação do cauim, e que tem seu clímax na noite da festa; ele é também a forma de comemoração da morte de uma onça ou de um inimigo. Seu modelo, porém, é sempre o mesmo: o opirahë é uma dança de guerra. Todos os participantes devem portar suas armas, ou pelo menos uma flecha, carregada verticalmente contra o peito; e os cantos de opirahë são "música dos inimigos", canções que falam de combates. O paradigma do cantador é o guerreiro.

Parentesco

Moirawï-do e Modïpitã-hi. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Moirawï-do e Modïpitã-hi. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Como parece ser o caso em toda sociedade não-industrial, pequena e morfologicamente simples, a vida cotidiana araweté reserva às categorias e atitudes de parentesco um papel maior. As formas de cooperação econômica, os arranjos residenciais, os alinhamentos políticos, tudo isso é função das relações de parentesco, por consangüinidade ou afinidade, entre as pessoas. O casamento não é uma simples união entre dois indivíduos, mas uma aliança entre suas respectivas parentelas, que pode (e idealmente deve) consolidar-se por outras uniões matrimoniais entre esses grupos de parentes.

Os Araweté se casam muito cedo, as mulheres por volta dos 12 anos, os homens, dos 15; as uniões são muito instáveis até o nascimento do primeiro filho (o que se dá por volta dos dezesseis anos para as mulheres), quando então se tornam sólidas e dificilmente se rompem antes da morte de um dos cônjuges. Como não se concebe a vida de uma pessoa adulta fora do estado matrimonial, dificilmente alguém fica solteiro por muito tempo: pessoas mais velhas, assim que enviúvam, costumam formar uniões com jovens que ainda não atingiram a idade de casar com alguém de sua faixa de idade. É assim relativamente comum ver homens de sessenta anos morando com meninas de dez anos, ou de mulheres de 50 anos com rapazolas de doze. Trata-se de arranjos sobretudo econômicos, em que o casal funciona como uma unidade de residência, de produção e consumo alimentar; mas os jogos sexuais não estão excluídos.

O termo genérico para "parente" é anî, que em sua acepção mais restrita denota os irmãos de mesmo sexo que ego; meus parentes são meus di, meus "outros-iguais", gente semelhante a mim. O termo para "não-parente" é tiwã, cuja determinação genealógica mais próxima são os primos cruzados de mesmo sexo; os tiwã são amite, gente "diferente". Tiwã é um termo ambíguo. Ele traz uma conotação agressiva ou 'picante', e não se costuma usá-lo como vocativo para um outro Araweté. Ele indica uma ausência de relação de parentesco, um vácuo que pede preenchimento. Um tiwã é uma possibilidade de relação: um cunhado ou um amigo potenciais. Os tiwã se tratam apenas por nomes pessoais. Tiwã é o vocativo com que os Araweté tratam os brancos cujo nome desconhecem; e é o termo de tratamento recíproco entre um matador e o espírito do inimigo morto. Aplicado a não-Araweté, ele particulariza a 'relação' genérica negativa que há entre os bïde e os awî. Chamar alguém pelo vocativo awî é impensável, pois awî são seres "para matar" (yokã mi), com os quais não se fala; chamar um inimigo de tiwã, assim, é criar este mínimo de relação que reconhece ao outro a condição de humano (bïde).

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

A terminologia de parentesco araweté é extensa, e se organiza segundo princípios bastante diferentes daqueles que subjazem a nossa forma de classificar os parentes. Basta aqui observar que os Araweté chamam de "irmão", "irmã", "filho", "filha", "pai", "mãe", uma quantidade de pessoas que para nós seriam consideradas como primos, sobrinhos ou tios, e às vezes simples parentes distantes. Em princípio, todas as mulheres classificadas como "mãe", "irmã" ou "filha" são proibidas a ego dos pontos de vista sexual e matrimonial; digo "em princípio" porque essa norma se aplica com rigor apenas para as parentas mais próximas destas categorias, as primeiras delas sendo a mãe, irmãs ou filhas 'reais' - aquelas consideradas como tendo gerado ego, ou tendo sido geradas pela mãe ou esposa de ego. O casamento com a filha da irmã (a sobrinha uterina) é considerado permissível, e mesmo desejável, embora a maioria dos Araweté entenda que este tipo de união só é realmente apropriado quando se trata de uma "sobrinha" distante. O casamento com a sobrinha uterina, chamado em antropologia de casamento avuncular (do latim avunculus, "tio materno", pois se trata de uma união entre um tio materno e sua sobrinha uterina), é bastante comum entre os povos Tupi-Guarani e Caribe da América do Sul.

Ao contrário da maioria das sociedades indígenas brasileiras, os Araweté não consideram que todos os membros do grupo sejam aparentados; para uma pessoa qualquer, muitos dos demais moradores da aldeia do Ipixuna são tiwã, não-parentes. A presença de tantos tiwã em uma sociedade de duzentas pessoas se explica em parte pela separação longa entre os grupos meridional e setentrional de Araweté, antes do contato; os tiwã eram em geral qualificados como iwi rowãñã ti hã, "gente do outro lado da terra", isto é, de um outro bloco de aldeias.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982
Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982

O ideal verbalmente expresso define os primos cruzados como os cônjuges por excelência. O casamento com a filha do irmão da mãe é chamado "casamento do iriwã", um pássaro que em um mito se casa com a filha da cobra jararaca, seu tio materno; o casamento com a filha da irmã do pai é o "casamento do gavião-real", conforme outro mito. é comum que os adultos determinem os cônjuges futuros das crianças, emparelhando-as a seus primos cruzados. De 1983 a 1991, observei que apenas um pequeno número desses casais chegou a estabilizar-se; mas muitos dos primeiros casamentos deram-se entre primos cruzados.

Outra forma de compromisso matrimonial é aquela em que um tio materno ou uma tia paterna reserva uma criança para futuro cônjuge, pedindo-a à própria irmã (mãe da criança) ou irmão (pai da criança). Esses casamentos (e aqueles os com primos cruzados) são vistos como uma forma de se manterem juntos parentes próximos, ou mais precisamente como o resultado da ligação afetiva entre irmão e irmã. "Desejam-se" (pitã) os filhos dos irmãos de sexo oposto, para si mesmo ou para os próprios filhos - assim, dizem os Araweté, "não nos dispersamos". Observa-se por fim uma tendência à repetição de alianças entre parentelas, gerando redes de aparentamento muito intrincadas.

Não conheço palavra específica para "incesto". Há um termo, que não sei traduzir, que qualifica uniões não muito próprias, awîde. Ele se aplica a casamentos entre irmãos distantes e a uniões entre tios e sobrinha reais. Menos adequados que os casamentos com tiwã, os casamentos awîde não são a rigor incestuosos. O incesto (que se descreve como um "comer" a mãe, a irmã, etc.) é algo muito perigoso: o casal culpado morre de ha'iwã, definhamento que sanciona toda infração cósmica; e pior que tudo, os inimigos se abatem sobre a aldeia. As aldeias de incestuosos, diz-se, costumam acabar tão crivadas de flechas inimigas que os urubus sequer conseguem bicar os cadáveres.

O tom das relações interpessoais é bastante relaxado, e as posições de parentesco são pouco diferenciadas em termos das atitudes. Uma única relação é definida como envolvendo "medo-vergonha", por definição: entre irmão e irmã. (Digo "por definição" porque outras situações envolvem "medo-vergonha" temporário e extrínseco. Assim, todo jovem que vai residir uxorilocalmente sente-se constrangido diante dos sogros, mas isso rapidamente se dissipa). Isso não significa evitação: irmãos de sexo oposto visitam-se freqüentemente, demonstram grande estima recíproca, e são o principal apoio moral de uma pessoa. Uma mulher recorre ao irmão mais que ao marido, em uma briga com estranhos; se estoura uma querela conjugal, são sempre os irmãos de sexo oposto que acorrem a consolar os cônjuges. Essa solidariedade é respeitosa, e as brincadeiras de fundo sexual tão apreciadas pelos Araweté jamais têm por objeto um germano de sexo oposto.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

O ataque de inimigos sobre uma aldeia tornada "mole" (time) e desprevenida sanciona outra falta grave às normas sociais: a hostilidade física ou mesmo verbal entre irmão e irmã. Vemos assim que as infrações simétricas da distância própria entre irmão e irmã - amor demais ou de menos, digamos - atingem a sobrevivência do grupo inteiro, o que sugere a centralidade desta relação na vida social araweté.

Irmãos de mesmo sexo são igualmente solidários, e são os parceiros de trabalho mais comuns. A liberdade entre eles é grande, embora não chegue nunca à camaradagem jocosa dos apihi-pihã (ver abaixo). Irmãs, sobretudo, são extremamente unidas. Note-se contudo que a ordem de nascimento, marcada aliás na terminologia de parentesco, gera uma diferença que se exprime na autoridade dos mais velhos sobre os mais jovens.

As relações conjugais araweté são notavelmente livres, mas ambivalentes. O contato corporal público é admitido, e quando as coisas vão bem os casais são muito carinhosos. Por outro lado, cenas de ciúme são freqüentes. Os maridos de mulheres jovens são muito ciosos, e vigiam de perto as esposas. Quando a união consolida-se com o nascimento de filhos, são as mulheres que passam a demonstrar ciúme, especialmente se mais velhas que o marido. A violência física (não muito violenta, na verdade) é comum entre casais jovens, e em geral as mulheres são mais agressivas. Fora da relação conjugal (e das raríssimas sovas dadas em filhos pequenos) não há qualquer espaço para a violência na sociedade araweté, que não se traduza imediatamente em choque armado. Por isso o casamento fica sobrecarregado, canalizando tensões que pouco têm a ver com ele. Isso responde, entre outras coisas, pela alta instabilidade conjugal.

A diferença de idade entre os cônjuges é um traço comum nas sociedades tupi-guarani. Ela se acha também entre os Araweté, mas trata-se de uniões secundárias e temporárias, nas quais os velhos iniciam sexualmente meninas pré-púberes, e as velhas acolhem rapazes sem esposa disponível.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Entre afins de mesmo sexo e geração, as relações são pouco marcadas. Não há evitação de qualquer espécie, nem solidariedade especial, como se observa em tantas sociedades indígenas. "Cunhados são como irmãos", dizem os Araweté: saem para caçar juntos, podem ficar muito amigos, ou podem se ignorar. Como parte dos laços de solidariedade entre irmão e irmã, eles estão entre os convidados mais freqüentes ao pátio de uma pessoa. Note-se entretanto que o costume de irmãos de sexo oposto virem consolar os cônjuges nas brigas conjugais traduz uma óbvia tensão latente entre cunhados de mesmo sexo, que nunca vi passar de admoestações curtas mas veementes por ocasião das desavenças conjugais - ocasião, portanto, em que o marido da irmã e a irmã do marido fazem valer seus direitos fraternais contra os respectivos cunhados. Dois cunhados ou cunhadas podem ter relações sexuais com uma terceira pessoa, mas não podem entrar em relações de amizade sexual cerimonial (apihi-pihã) enquanto estiverem ligados como afins: partilha de cônjuges e afinidade se excluem.

Entre afins de sexo oposto e mesma geração as relações são livres. A relação de dois irmãos de mesmo sexo frente aos cônjuges respectivos é concebida como sendo de sucessão potencial: com a morte de um dos irmãos, é comum que o outro herde seu cônjuge. As relações sexuais entre, por exemplo, um homem e a esposa de seu irmão são semi-clandestinas, e no máximo tacitamente toleradas pelo irmão; caso tornem-se conspícuas, um dos envolvidos termina propondo uma troca de cônjuges, o que é freqüente. Essa relação de equivalência diacrônica entre irmãos de mesmo sexo se opõe à partilha simultânea de cônjuges entre os apihi-pihã.

Entre as gerações consecutivas, o quadro de atitudes é variado, dependendo da fase do ciclo de vida e da situação residencial. Há pouca ênfase em estruturas de autoridade baseadas na diferença geracional. Entre pais e filhos concebe-se uma comunidade de substância, e suas relações são afetivamente intensas. Há uma muito vaga idéia de que os filhos são "coisa do pai", as filhas "coisa da mãe", o que traduz apenas a identidade de gênero e suas conseqüências econômicas, pois a teoria da concepção é patrilateral e a organização de parentesco, cognática.

A vida social Araweté manifesta uma forte tendência matrilocal, a qual rege as soluções residenciais. O laço mãe-filhos é mais intenso que o laço pai-filhos, e especialmente a relação mãe-filha. É difícil caracterizar com precisão situação pós-marital. Há algum desacordo quanto à norma. Os homens jovens dizem que o ideal é a virilocalidade; os mais velhos afirmam que, tradicionalmente, os rapazes domiciliavam-se no setor ou na aldeia da esposa, e que só após o nascimento do primeiro filho é que podiam voltar à aldeia de origem (se conseguissem convencer a esposa). Inclino-me pelo parecer dos mais velhos, embora tanto eles quanto os rapazes estejam certamente exprimindo as normas do modo que mais lhes favorece. A uxorilocalidade é efetivamente um princípio conceitual básico para os Araweté. Ela é explicada, caracteristicamente, com argumentos psicológicos: afirma-se que as mães não querem se separar das filhas, e que, ademais, sogra e nora nunca se dão bem, sobretudo se moram na mesma seção residencial. Seja qual for a solução adotada, uxorilocal ou virilocal, o que se tem é sempre uma residência conceitualmente matrilocal: o cônjuge de fora é definido como morando haco pi, "junto à sogra", e o de dentro como ohi pi, "junto à mãe".

A situação real depende de vários fatores, notadamente do peso político das parentelas envolvidas, do número e composição de sua prole, das alianças passadas. Hoje em dia, diz-se, não importa muito a solução residencial, uma vez que há uma só aldeia. O fator que continua determinante é a alocação da força de trabalho. A uxorilocalidade é uma situação essencialmente econômica: o genro passa a trabalhar com o sogro, ou melhor, na roça de milho da sogra. Por isso, um casal-cabeça de família extensa só permite a saída de uma filha para casar se conseguir reter um filho (atrair uma nora), ou se casar mais uma filha, repondo o genro 'perdido'. A boa administração da família consiste em arrumar casamentos que mantenham o máximo número de filhos, de ambos os sexos, na unidade familiar de origem (e sobretudo na roça materna). Como isso é mais ou menos o que todos procuram fazer, o sistema deriva em direção à uxorilocalidade.

Não há regras de evitação entre afins de gerações adjacentes, embora prevaleça certa reserva, e uma comensalidade obrigatória. Conflitos entre sogro e genro são raros, mas ocorrem, sobretudo se o segundo mostra-se negligente no trabalho agrícola (em especial na fase da derrubada). Já os casamentos virilocais são em geral tensos na relação com o casal mais velho; nos dois únicos casos em que as esposas tinham mãe viva, os choques entre sogra e nora - na verdade entre as mães dos cônjuges - eram costumeiros.

Quando eu perguntava se um rapaz, ao mudar-se de aldeia para casar, não ficava intimidado e com saudades de casa, respondiam-me sempre que sim, mas que, além de terem-se parentes na aldeia da esposa, logo criavam-se laços de apihi-pihã entre o recém-casado e os tiwã de lá.

Amizade

Casal araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Casal araweté. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

O casamento não é objeto de nenhuma cerimônia, e a acelerada circulação matrimonial dos jovens faz dele um negócio corriqueiro. No entanto, sempre que uma união se torna pública com a mudança de domicílio de alguém, produz-se uma sutil comoção na aldeia. O novo casal começa imediatamente a ser visitado por outros casais, seu pátio é o mais alegre e bulhento à noite; ali se brinca, os homens se abraçam, as mulheres cochicham e riem. Dentro de alguns dias, nota-se uma associação freqüente entre o recém-casado e um outro homem, bem como entre sua mulher e a mulher deste. Os dois casais começam a sair juntos à mata, a pintar-se e decorar-se no pátio do casal mais novo. Está criada a relação de apihi-pihã.

 A marca característica da relação apihi-pihã é a "alegria": tori. Os apihi-pihã (amigos de mesmo sexo) mantêm um convívio de camaradagem jocosa, sem nenhuma conotação agressiva; eles oyo mo-ori, "alegram-se reciprocamente": estão sempre abraçados, são companheiros assíduos na mata, usam livremente dos bens do outro. Quando os homens da aldeia saem para as caçadas coletivas, as mulheres apihi-pihã vão dormir na mesma casa. Na formação da dança do cauim, é esse o laço focal entre os homens. Os amigos de sexo oposto (a apihi e o apino) recebem o epíteto de tori pã: "alegrador".

Amigos apihi-pihã. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Amigos apihi-pihã. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

O cimento dessa relação é a mutualidade sexual. Os apihi-pihã trocam de cônjuges temporariamente, segundo dois métodos: oyo iwi ("morar junto"), pelo qual os homens vão à noite à casa das apihi, ocupando a rede do amigo, e de manhã retornam para as esposas; e oyo pepi ("trocar"), pelo qual as mulheres passam a residir por alguns dias na casa dos apino. Em ambos os casos, porém, o quarteto é sempre visto junto, no pátio de um dos casais. Os casais trocados costumam sair à cata de jabotis, tomando direções diversas; à noite se reúnem para comer o que trouxeram. Essa mutualidade sexual, assim, é uma alternância, não um sistema de 'sexo grupal'.

O contexto privilegiado para a efetuação da relação de amizade é a mata, especialmente no período da dispersão das chuvas, quando pares de casais assim ligados acampam juntos (no começo da estação do mel, em setembro de 1982, as unidades mínimas de coleta quase sempre envolviam grupos de apihi-pihã). Na floresta, os casais trocados saem para caçar e tirar mel, reunindo-se à noite: "o dia é da apihi, a noite da esposa". As expressões "levar para caçar", "levar para tirar mel", "levar para o mato" evocam imediatamente os laços apihi/apino. Para saber se um homem era mesmo apino de uma mulher (em vez de simples amante ocasional), o critério decisivo era este: "sim, pois ele a levou para o mato em tal ocasião". A relação é assim orientada - o homem leva a mulher à floresta, domínio masculino. A floresta, o jaboti e o mel são os símbolos da 'lua de mel' Araweté, que não se faz entre esposo e esposa, mas entre apihi e âpino; e não envolve um, mas dois casais.

O ciúme está por definição excluído desta relação; ao contrário, ela é a única situação de extra-conjugalidade sexual que envolve seu oposto, a cessão benevolente do cônjuge ao amigo. Mesmo entre irmãos, que têm acesso potencial aos respectivos cônjuges, há margem para ciúmes reprimidos e para desequilíbrios: um homem pode freqüentar a esposa do irmão sem que o mesmo saiba, queira ou retribua. Já a relação apihi-pihã pressupõe a ostensividade e a simultaneidade: é uma relação ritual de mutualidade.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

O complexo simbólico da relação apihi-pihã é absolutamente central na visão de mundo araweté. Ter amigos é sinal de maturidade, assertividade, generosidade, força vital, prestígio. A apihi é 'a mulher', pura positividade sexual, sem o fardo da convivência doméstica. E um apihi-pihã é mais que um irmão, em certo sentido; é uma conquista sobre o território dos tiwã, dos não-parentes, estabelecendo uma identidade ali onde só havia diferença e indiferença: é um amigo.

A freqüente associação econômica entre quartetos de apihi-pihã não envolve trabalho agrícola, para os homens (as mulheres podem ir juntas à roça tirar milho, pilá-lo etc.), mas a caça: a cooperação agrícola supõe pertencimento à mesma família extensa ou setor residencial, o que não pode ocorrer entre apihi-pihã. De qualquer forma, a província por excelência da amizade é a mata no período em que o milho "oculta-se" (ti'î, como se diz também da lua nova). 

 

Mo´inowi-hi e Kirere na margem do lago. Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Mo´inowi-hi e Kirere na margem do lago. Foto: Eduardo Viveiros de Castro

É clara a compensação entre a amizade e a uxorilocalidade: para o jovem recém-casado, o amigo é o contrário do sogro em cuja roça ele deve trabalhar. Nas festas, os apino e apihi se pintam, enfeitam e perfumam mutuamente; quando se vê um quarteto profusamente decorado, com muitos brincos, a cabeça emplumada de branco, o corpo brilhando de urucum, rindo e se abraçando, não há dúvida: são apihi-pihã. Caça, dança, sexo, pintura, perfume, o mundo dos apihi-pihã é um mundo ideal. No céu, a relação entre os deuses e as almas dos mortos é sempre representada pela amizade sexual. Os mortos se casam no céu com os Maï, têm filhos, vivem como aqui. Mas os cantos xamanísticos sempre põem em cena as almas acompanhadas de seus apino ou apihi celestes - como convém às ocasiões festivas. Um dos eufemismos para a morte de alguém alude a este caráter celestial da amizade: "iha ki otori pã kati we" - "ele se foi, para junto de seu 'alegrador'".

Um casal pode ter mais de um outro associado como apihi-pihã, e não há nenhum adulto na aldeia que não chame pelo menos uma meia-dúzia de gente pelos termos da amizade. Mas essas relações se atualizam consecutivamente; é raro que um casal tenha mais que um só outro como parceiro ativo em um dado momento, devido à dedicação exigida pela amizade. As relações não são transitivas: os amigos de meus amigos não são necessariamente meus amigos. É usual que dois irmãos, que não podem se chamar pelos termos de amizade nem partilhar cônjuges, tenham casais de amigos em comum. Trata-se portanto de uma relação diádica e local, envolvendo os casais da aldeia numa rede que se superpõe à teia de parentesco.

Recasamentos por viuvez ou divórcio suscitam a necessidade de se decidir sobre a renovação dos laços de amizade. Se um membro do quarteto morre, é considerado desejável que se reatualizem as relações, promovendo uma troca oyo iwi.

Não é incomum que as trocas temporárias de cônjuges terminem virando definitivas. Aí se diz em sentido próprio que os homens trocaram (oyo pepi) de esposas. A troca definitiva desfaz a relação, que perde o seu sentido.

Embora a relação de amizade envolva dois casais e centre-se no acesso sexual ao cônjuge do amigo, os laços entre parceiros de mesmo sexo são os fundamentais; são eles que persistem preferencialmente após viuvez ou divórcio, e que precisam ser reatualizados. O amigo de sexo oposto é sobretudo um meio de se produzir um apihi-pihã - e isso vale particularmente para os homens. Se um cunhado é o que não se pode deixar de 'obter' ao se conseguir uma esposa, um amigo é o que se quer obter ao se estabelecer relações com uma apihi.

Aritãiyihi e Yuriyatä, amigas apihi-pihã. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Aritãiyihi e Yuriyatä, amigas apihi-pihã. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Os apihi-pihã são recrutados entre os tiwã, por definição: isto é, transformam em tiwã aqueles que assim se ligam. Irmãos reais não podem ser amigos. Os Araweté sempre me corrigiam, quando eu designava dois irmãos por apihi-pihã por constatar que haviam trocado (definitiva e domesticamente) de esposas: "apenas aos tiwã é que chamamos apihi-pihã". Essa distinção é importante, pois um tiwã é o oposto de um irmão, mas quando um dos primeiros é transformado em amigo, ele partilha de uma semelhança com o irmão, o acesso lícito às respectivas esposas.

Há, enfim, duas relações centrais no mundo social araweté: entre irmão e irmã, e entre amigos de mesmo sexo. A primeira se caracteriza pela solidariedade e respeito, e é o ponto de apoio da afinidade e da reciprocidade; a segunda pela liberdade e camaradagem, e é o foco da mutualidade. As relações entre cunhados e irmãos de mesmo sexo são pouco marcadas, mas parecem ocultar antagonismos latentes - como demonstra o apoio do germano de sexo oposto nas querelas conjugais, e a competição e ciúmes velados que juntam e opõem irmãos frente às mesmas mulheres. A relação entre marido e mulher opõe-se àquela entre irmão e irmã por manifestar livremente os dois aspectos interditos nesta: sexo e hostilidade. Já a relação entre amigos de sexo oposto é idealmente positiva (e, positivamente, ideal): apino e apihi não brigam, ou deixam automaticamente de estar nessa relação. Finalmente, a "alegria" da amizade entre amigo e amiga se opõe ao "medo-vergonha" (respeito) entre irmão e irmã.

As idades

Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro

Produzir uma criança é um trabalho lento, que exige cópulas freqüentes e grande dispêndio de sêmen, de forma a aquecer o feto e a formar paulatinamente seu corpo. Todos os componentes potenciais da pessoa estão contidos na semente paterna. O genitor é concebido pelos Araweté como o que "faz" ou "dá" a criança. A mãe é um hiro, receptáculo ou continente desta substância seminal, onde se processa sua transformação em criança.

Os Araweté, ao contrário do que sustentam outras culturas indígenas, não consideram que o sangue menstrual desempenhe qualquer papel na concepção humana. Quando eu observava a semelhança física entre mães e filhos, todos assentiam sem nenhuma surpresa, dando-me uma explicação gramaticalmente abstrata: a semelhança se deve ao fato de que o esperma vira criança ohi ropï, "através (ao longo) da mãe". Essa era a mesma razão aduzida para explicar porque uma pessoa deve fazer abstinência alimentar e sexual também quando um parente pelo lado materno fica doente. Os Araweté entendem que existe um laço de substância entre os parentes, de tal forma que, se uma pessoa adoece, seus parentes próximos devem evitar praticar ações e ingerir alimentos que possam piorar seu estado. Em suma, à teoria patrilateral da concepção soma-se o reconhecimento bilateral da filiação, dos interditos de incesto e da abstinência por doença.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro

A biologia araweté sustenta que uma criança pode ser formada pelo sêmen de mais de um genitor; isto é, mais de um inseminador pode cooperar ou revezar-se na produção de uma criança. Recordemos que as relações de amizade apihi-pihã põem uma jovem esposa em contato sexual regular com dois homens. É considerado positivo, para a saúde de um bebê, que ele tenha sido formado por mais de um genitor: o número ideal parece ser de dois ou no máximo três; mais que isso acarreta partos dolorosos, ou o bebê nasce com a pele manchada.

As precauções do casal envolvido na concepção são poucas, durante a gestação, e algumas continuam após o parto. Não devem comer anta, pois seu espírito pisotearia a barriga da mãe; ou usar de milho cujo cesto de transporte se partiu; o homem não pode comer de fêmeas grávidas de animais. Não devem ainda comer pernis de veado e mutum, o que enfraqueceria as pernas da criança. Os homens devem tomar cuidado na mata, pois as cobras tentarão mordê-los.

Logo que nasce, a criança é banhada em água morna. Seu pai fura-lhe as orelhas, raspa os cabelos que ultrapassam a linha das têmporas, e ela é então "consertada" (mo-kati) por alguém experiente: achata-se suavemente seu nariz, afastam-se as orelhas para fora, massageia-se o peito para "abri-lo", afastam-se as sobrancelhas, ajusta-se o maxilar inferior, empurram-se os braços e os dedos da mão na direção do ombro, apertam-se as coxas uma contra a outra, separam-se os cabelos úmidos com um pauzinho.

Pãyärahi modelando o neto recém-nascido, filho de Homihi. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Pãyärahi modelando o neto recém-nascido, filho de Homihi. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Os pais entram em reclusão, passando a maior parte do tempo em casa e dependendo dos parentes para tarefas domésticas essenciais, como cozinhar e buscar água. Horas após o parto, eles devem tomar a infusão amarga da casca da árvore iwirara'i (Aspidosperma sp.) - a mesma que se toma na primeira menstruação de uma jovem e quando se matou um inimigo na guerra. Essa medida pareceria ter assim uma relação com o sangue que se acumula no corpo nestes estados, e que deve ser purgado. Mas a explicação aduzida pelos Araweté é diferente: toma-se o chá de iwirara'i para poder comer jaboti sem sufocar pela inchação da glote. Trata-se do jaboti de patas vermelhas (Geochelone carbonaria), carne proibida aos pais de recém-nascidos, mulheres na primeira menstruação e matadores de inimigo. Todos os homens que participaram da concepção do bebê devem tomar dessa infusão, mas apenas o genitor principal - via de regra, o marido da parturiente - segue rigorosamente as demais restrições.

A mãe, na noite subseqüente ao parto, deve submeter-se à operação imone, recondução de sua alma ao corpo, executada por um pajé. Todo trauma físico ou psicológico produz esse perigoso descolamento entre alma e corpo.

As restrições puerperais são variadas, e são sobretudo levadas a sério pelos pai de um primeiro filho. Elas são mais rigorosas enquanto o umbigo não seca e cai; vão-se relaxando à medida que a criança fica com o "pescoço duro", em seguida começa a rir (a "ter consciência", ika'aki), depois a andar. Seu término é imprecisamente marcado, e a consolidação definitiva da criança demora bem mais que esse período de restrições de seus pais.

Algumas das restrições visam proteger os próprios pais, agora definidos como ta'i ñã e memi ñã, "donos de filho". Não se devem expor demasiado ao sol e à lua, ou o "excremento" desses astros os enegrecerão; não podem carregar água, andar sobre pedras ou solo áspero, ou certos espíritos da mata flecharão seus pés. A mais importante precaução é tomada pelo pai: ele não pode ir à mata enquanto o umbigo do filho não seca, ou atrairá multidões de cobras surucucus, jararacas e jibóias, que o picarão ou engolirão vivo. Isso significa que o homem se vê impossibilitado de exercer a atividade que o define como adulto casado: a caça.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Outras restrições protegem o bebê: os pais não tocam em espelhos e pentes, pois isso lhe causaria febres e dores; não tocam em couro de onça, ou sua pele ficaria manchada. Evitam-se esforços que possam repercutir na criança: carregar peso, pilar milho, derrubar árvores.

As restrições de ingestão de substâncias são mais numerosas. Os pais não podem cozinhar, nem comer coisas muito quentes. A mãe não pode fumar; o pai só o faz através de um chumaço de algodão. A maioria dos interditos imediatamente em vigor após o parto, como o que incide sobre a carne de jaboti vermelho, visa proteger a saúde dos pais; os interditos de longa duração, ao contrário, protegem a criança. Assim, a carne de vários animais só pode ser consumida por seus pais quando a criança já começou a "rir"; outras, só depois que ela começou a andar. As fêmeas grávidas de animais não são comidas até que a criança tenha uns três anos (as mulheres grávidas podem comê-las, entretanto).

O consumo dessas carnes proibidas, e certas ações como cozinhar ou fumar, acarretariam o hapi, a "queima" da criança. Trata-se de uma espécie de combustão interna que se manifesta como febre, dessecamento e emagrecimento rápido do bebê. A idéia subjacente parece ser a de que o recém-nascido é um ser volátil, que deve ficar longe do contato com coisas quentes. Não se pode também pintá-lo de urucum, ou sua pele descascaria como se sapecada no fogo.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

O sexo e a cauinagem são as proibições mais estritas. Ambas as coisas só podem ser feitas após a criança começar a engatinhar (diziam-me os pais) ou a andar (diziam-me as mães). Antes disso - e mesmo depois, se o pajé não fechar o seu corpo -, ela morreria em meio a convulsões e vômitos. A abstinência sexual parece ser mais demorada para a mãe que para o pai: este, após alguns meses, pode procurar sua apihi "para se esfriar". As ações da mãe são mais diretamente nocivas à criança, que está sempre colada a ela; são as mães que se preocupam em pedir que algum pajé feche o corpo de seus filhos. A razão disto é que elas os amamentam. Para o leite passa tudo que entra no corpo da mãe - o sêmen inclusive. Passa também, como vimos, o afeto: os homens sempre visitam a casa natal, as mulheres se recusam a casar virilocalmente, "porque nunca se esquece o leite tomado".

Com duas semanas de nascidas, as crianças começam a comer cará, batata e banana mastigados pela mãe. Mandioca, milho, outras frutas e carne só são introduzidos na dieta quando elas já estão "prontas" (aye), isto é, quando já demonstram "consciência". É então que recebem o nome, e podem ser pintadas de urucum: já são completamente humanas.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

A noção de "ter consciência" - tradução mais geral do verbo ka'aki -define o grau de humanidade dos infantes. Ela não se confunde com o falar, pois lhe é cronologicamente anterior. Parece designar a capacidade da criança responder a estímulos comunicativos; o principal sinal disso é o riso. Se um bebê morre antes de manifestar consciência, mesmo seus pais o chorarão pouco.

Por alguns anos, a pessoa da criança não está inteiramente estabilizada. Sua imagem vital (î) desprende-se com facilidade do corpo, especialmente devido à cobiça de Iwikatihã, o Senhor do Rio. Crianças até quatro anos são freqüentemente submetidas ao imone, quando o pajé traz de volta a alma errante e a consolida no corpo.

Embora haja esta preocupação em espacejar os nascimentos, ter filhos é um valor essencial. As crianças são adoradas e mimadas por toda a aldeia; mulheres e homens disputam o privilégio de passear com o recém-nascido ao colo. Se uma mulher morre deixando uma criança de peito, outras se incumbem de amamentá-la.

Dos três anos em diante, quando começam a ter autonomia de movimentos, as crianças são referidas como ta'i oho, "filhotes grandes", ou como "homenzinhos" e "mulherzinhas". Entre os sete e onze anos, os meninos são classificados como piri a d;i, "gente verde (não-madura)". Nessa fase, saem para caçar e pescar nas redondezas, e acompanham os pais nas expedições de caça. Começam também a erguer suas casinhas ao lado das dos pais. Por volta dos doze anos, decide-se que é tempo de se lhes amarrar o prepúcio; o pênis já está "cheio" e a glande pode-se desnudar, o que é motivo de vergonha.

A partir dos doze anos, os rapazes iniciam uma longa série de casamentos tentativos, com meninas de sua idade ou pouco mais velhas. Até os quinze anos, mais ou menos, relutam muito em casar, só o fazendo quando não há um adulto disponível que possa tirar da casas dos pais uma menina em idade de menstruar. As meninas então se mudam para as casinhas dos rapazes. esses ensaios de casamento não duram, em geral, mais que algumas poucas semanas.

A partir dos quinze anos, os homens são classificados como pira'i oho ("filho grande de gente"), termo que segue descrevendo todos os homens que ainda não têm filhos casados. O segmento mais jovem dessa categoria é turbulento e empreendedor; dele saem numerosos tenotã mõ de caçadas e expedições de guerra. O segmento mais velho da categoria abriga vários pajés. Entre os quinze e vinte anos, os homens comprometem-se em casamentos mais sérios, mas não menos instáveis que o dos meninos. Raros são aqueles que não tiveram pelo menos cinco esposas nessa fase. Eles se casam com moças de sua idade e com mulheres bem mais velhas.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Os homens entre 30 e 50 anos são definidos como "maduros" (dayi). Nessa fase é que constituem família extensa, atraindo genros e saindo da situação uxorilocal. Dali em diante, são "velhos" (tapïnã). Os homens maduros são um segmento influente, especialmente quando líderes de setores residenciais e quando pajés.

Os anciões araweté não dispõem de poder especial, mas tampouco são marginalizados. Em 1982, os dois homens mais velhos da aldeia ainda caçavam, tinham grandes roças, e famílias que os apoiavam. Aya-ro (de uns 70 anos) ainda era um pajé ativo, mas cantava pouco; seus serviços eram mais solicitados para o fechamento do corpo de crianças e casos de mordedura de cobra - operações que nem sempre envolvem a presença dos Maï. Meñã-no, o outro, já fora "deixado pelos Maï", isto é, não mais cantava.

As meninas entre os sete e onze anos são chamadas de kãñî na'i oho, "mulher-criança". Muitas delas são entregues a um velho ou deficiente físico que não consegue arrumar esposa adulta. Esses 'criam' as meninas, iniciando-as sexualmente. Uma menina não pode menstruar pela primeira vez na casa de seus pais, ou estes morrem de uma doença mística (o ˆha'iwã) que atinge todo culpado de faltas ligadas à sexualidade. Assim, precisam arranjar marido logo. Sustenta-se, por outro lado, que as mulheres só menstruam se previamente defloradas.

As moças pré-púberes não devem comer ovos demais, ou terão partos múltiplos; nem coração de jaboti, veado e outras caças - peças que sangram muito -, ou sua menstruação será abundante e dolorosa. Sua liberdade sexual é considerável, bem como sua capacidade de iniciativa nesses assuntos. Quando ainda meninas, os pais não interferem muito. Mas quando vão-se aproximando da puberdade, o controle sobre seu comportamento aumenta: as moças muito "andadeiras" (iatã me'e) - aquelas que circulam em bandos alegres à noite, à procura de diversão -são temidas pelos genros prospectivos; os jovens maridos são muito ciumentos de qualquer relação extra-conjugal fora do sistema da amizade apihi-pihã.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro.
Foto: Eduardo Viveiros de Castro.

Da puberdade até os 30, 35 anos, as mulheres estão na classe das kãñî moko, "mulheres grandes". Casando-se muito cedo, só vêm entretanto a ter filhos aos 18-20 anos. A mudança de vida após o nascimento do primeiro filho é muito mais radical para a mulher que para o homem. Ela deixa de ser um apêndice da mãe, e volta-se para a própria casa; deixa de pertencer ao bando turbulento de moças solteiras, passando a adotar um comportamento reservado e atento às necessidades do filho. De objeto de ciúmes do marido, passa a ser quem controla suas aventuras. As "donas de criança", mesmo jovens, são respeitadas por todos, e a balança da autoridade doméstica pende sensivelmente para o lado feminino, após o primeiro filho.

As mães são muito ciosas de seus filhos, tomando seu partido cegamente, mesmo quando produzem estragos nas posses alheias, ou comportam-se de modo intolerável à paz da aldeia. Por outro lado, sua autoridade sobre as crianças não é muito maior que a dos pais, e ambos estão sempre ocupados em tentar conter os filhos.

Por volta dos 35 anos em diante, as mulheres são classificadas como adultas (odï mo-hi re, "crescidas"), e após a menopausa como "velhas". Mulheres de meia-idade possuem enorme influência na vida cotidiana. Um setor residencial gira em torno da mulher mais velha, e é normalmente identificado por seu nome. São essas mulheres, mais que seus maridos, que disputam o destino pós-marital dos jovens casais.

Os nomes

Foto: Eduardo Viveiros de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro

Cada indivíduo recebe um nome algumas semanas após o nascimento, e o portará até que lhe nasça o primeiro filho. Esta regra é obrigatória para as mulheres. Os homens podem passar a ser denominados como "X-pihã", "companheiro de X (nome da esposa)", assim que se casam. Quando nasce o primeiro filho ou filha, o casal abandona definitivamente seus nomes de infância e assume outros que fazem referência ao nome da criança: "Y-ro" e "Y-hi", "pai" e "mãe" de y (nome da criança). Assim, por exemplo, o jovem Ñapiri casou-se com a moça Kãñî -ti; esta continou a ser chamada de Kãñîti, ele passou a ser conhecido como Kãñî-ti-pihã. Nasceu-lhes um menino, que recebeu o nome de Karamirã. O casal passou então a ser chamado de Karamirã-no e Karamirã-hi; seus nomes de infância não podem mais ser pronunciados por quem quer que seja. Depois que nasceu seu segundo filho, a menina Kãñî-paka, os dois podem ser ocasionalmente chamados de Kãñî-paka-ro e Kãñî-paka-hi; mas em geral os pais tendem a ser conhecidos pelo nome do primogênito, mesmo se ele veio a morrer ainda muito pequeno.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro

O primeiro filho é nomeado mais rapidamente que os filhos subseqüentes; a escolha de seu nome é objeto de maiores cuidados, e sempre pensa-se no nome que os pais terão, ao nomear-se a criança. De certa forma, o que se está realmente nomeando são os pais: os tecnônimos (termo que designa esses tipos de nomes pessoais que se referem ao parentesco de ego com outrem) são considerados nomes mais 'próprios' que os nomes de infância. Uma vez obtidos tais tecnônimos que marcam o status de adulto (para os Araweté, ser adulto é ter filhos), os nomes de infância tornam-se "dolorosos de ouvir". Curiosamente, entretanto, esses nomes podem continuar a ser pronunciados, quando estão embutidos nos tecnônimos dos pais: assim, por exemplo, Tapaia-hi é o nome corrente da mãe de Iapï'ï-do, um homem cujo nome de infância foi Tapaia (jamais pronunciado em sua presença, e talvez desconhecido de todas as pessoas das gerações mais jovens).

Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro

A nominação das crianças não é objeto de nenhuma cerimônia especial, e não há, como em muitas outras sociedades indígenas, nominadores pré-determinados por parentesco. A maioria dos nominadores das crianças são pessoas maduras, em geral parentes próximos de um dos pais. O pai e a mãe podem escolher por sua própria conta os nomes de seus filhos, mas isso é muito raro no caso do primogênito: ainda jovens, os pais curvam-se à opinião dos mais velhos, e especialmente dos próprios pais. Só há uma regra que deve ser respeitada na escolha do nome: não pode haver duas pessoas vivas com o mesmo nome. Isso se aplica ao nomes de infância dos adultos, que mesmo abandonados por eles não podem ser conferidos a crianças. Um nome precisa ser, ou novo, ou de alguém que já morreu.

A onomástica araweté depende de três critérios. Uma criança pode ser nomeada "conforme um morto do grupo" (pirowi'hã ne), "conforme uma divindade" (Maï de), ou "conforme um inimigo" (awî ne). Esses três critérios de nominação não devem ser confundidos com as classes a que remetem os nomes. Isso é importante porque a maioria dos nomes araweté são "nomes de deuses" ou "nomes de inimigos", mas podem ter sido conferidos "conforme um morto", isto é, a intenção da nominação foi repor em circulação o nome (de origem divina ou inimiga) de um parente morto.

Alguns dos nomes conferidos "conforme um morto" são intraduzíveis; mas muitos têm significado: nomes de ancestrais míticos, de animais (pássaros, quase sempre), de plantas, de objetos, verbos, qualidades... A maior parte dos nomes, porém, são classificados como "nomes de inimigos" ou "nomes de divindades".

O processo de reposição onomástica efetuado pela nominação "conforme um morto" manifesta uma intenção afetiva e comemorativa. Não se concebe nenhuma reencarnação de almas via os nomes, nem se transmitem as relações de parentesco do antigo portador do nome para a criança nominada (como ocorre em outros grupos indígenas). Um nominador de uma criança escolhe nomes de pessoas que são caras a si mesmo ou aos pais do bebê. Pode haver mais de um morto que portou aquele nome, mas a escolha é feita tendo-se em mente uma pessoa em particular. O que se repõe, ao dar-se um nome de alguém morto a um bebê, é uma tríade, a criança e seus pais. Muitas vezes, o que se visa particularmente é que voltem a existir os X-ro e X-hi, mortos mais presentes na memória do grupo que o X, que pode ser uma criança falecida ainda pequena. Esse critério de nominação é o mais freqüentemente usado para a escolha do nome dos primogênitos, e são as mulheres mais velhas ou os homens enquanto chefes de grupos domésticos (pais e sogros dos pais da criança) que o acionam preferencialmente.

Os nomes dados "conforme um inimigo" também têm significados variados, mas são quase sempre "nomes de inimigos": nomes pessoais ou tribais de inimigos míticos ou históricos (muitos trazidos por mulheres que estiveram cativas entre os Kayapó), palavras estrangeiras que os Araweté sabem nada terem a ver com nomes pessoais, metáforas e frases tiradas dos cantos que comemoram a morte de inimigos na guerra… Aqui se incluem vários nomes e expressões em português (recordemos que os kamarã são classificados como um tipo especial de awî, inimigo). A nominação "conforme um inimigo" é mais freqüentemente acionada pelos homens na qualidade de guerreiros. Em geral, após um combate com os inimigos, os homens que se distinguiram na guerra sonham com os inimigos mortos a lhes revelarem nomes, utilizados então para nomear os recém-nascidos.

Os nomes dados "conforme uma divindade" refletem o variado panteão araweté. Praticamente todos os nomes de deuses celestes e subterrâneos se encontram como nomes pessoais. Não se usam porém os nomes dos espíritos terrestres, malignos. Os nomes "conforme uma divindade" são conferidos por homens maduros em sua qualidade de pajés. Todos os tipos de nome, e critérios de nominação, podem ter origem em visões dos pajés, que sonham e cantam à noite, extraindo destes sonhos e cantos nomes novos ou antigos. Mas os nomes "conforme uma divindade" são invariavelmente conferidos por pajés.

Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro
Foto: Eduardo Viveiros de Castro de Castro

Após a morte, uma pessoa é mencionada por seu nome seguido do sufixo -reme, "finado". Nos cantos dos pajés que trazem as almas celestes dos mortos à terra, estas são nomeadas sem este sufixo de "finado", que conota ausência ou distância. Os nomes de infância dos mortos são livremente mencionados, longe dos ouvidos de seus parentes próximos.

Ao contrário de outras sociedades indígenas brasileiras, onde os nomes marcam posições sociais e papéis cerimoniais, chegando quase a ter a função de títulos, entre os Araweté os nomes são ao mesmo tempo invidualizantes - ninguém pode trazer o mesmo nome que outra pessoa viva, e muitas são as pessoas com nomes que não foram usados por ninguém no passado - e curiosamente 'impessoais' e relacionais. Note-se que o nome mais 'próprio' de uma pessoa, seu nome de adulto, é um tecnônimo, isto é, um nome que designa a relação de paternidade que a pessoa tem com outra. A impressão que me fica é que os Araweté dão nomes às crianças para poderem chamar os pais delas pelos tecnônimos… De outro lado, a onomástica araweté recorre ao que poderíamos chamar de exterior da sociedade para obter os nomes: pois os mortos, os inimigos e as divindades representam, sob diferentes aspectos, aquilo que não pertence ao mundo dos viventes araweté, o mundo propriamente humano. Deuses, mortos e inimigos ocupam o espaço exterior do cosmos araweté - é de lá que vêm os nomes. A identidade de cada araweté, assim, é determinada pelo exterior da pessoa de múltiplas maneiras: os nomes de infância evocam o exterior da sociedade; os tecnônimos dos adultos referem-se à relação da pessoa com outra.

Cosmologia e xamanismo

O pajé Kañî-paye com o aray e o charuto. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
O pajé Kañî-paye com o aray e o charuto. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

No começo os humanos (bïde) e os deuses (Maï) moravam todos juntos. Esse era um mundo sem morte e sem trabalho, mas também sem fogo e sem plantas cultivadas. Um dia, insultado por sua esposa humana, o deus Aranãmi decidiu abandonar a terra. Acompanhado por seu sobrinho Hehede'a, ele tomou seu chocalho de pajé e começou a cantar e a fumar. Cantando, fez com que o solo de pedra onde estavam subisse às alturas. Assim se formou o firmamento: o céu que se vê hoje é o lado de baixo dessa imensa placa de pedra. Junto com Aranãmi e seu sobrinho subiram dezenas de outras raças divinas: os Maï hete, os Awerikã, Marairã, Ñã-Maï, Tiwawi, Awî Peye, Moropïnã. Os Iwã Pïdî Pa subiram ainda mais alto, formando um segundo céu, o "céu vermelho". 

Pajé Kañî-paye benzendo carne de jaboti. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1983.
Pajé Kañî-paye benzendo carne de jaboti. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1983.

A separação do céu e da terra causou uma catástrofe. Privada de suas fundações de pedra, a terra se dissolveu sob as águas de um dilúvio: o jacaré e a piranha monstruosos devoravam os humanos. Apenas dois homens e uma mulher conseguiram se salvar, subindo num pé de bacaba. Eles são os tema ipi, a "origem da rama": os ancestrais da humanidade atual. Na convulsão provocada pelo dilúvio, alguns Maï procuraram escapar dos monstros afundando na água e criando o mundo inferior, onde habitam hoje, em ilhas de um grande rio subterrâneo.

 As marcas da divisão do cosmos estão em toda parte: os morrotes de pedra que pontuam o território araweté são fragmentos do céu que se ergueu; as pedras do igarapé Ipixuna ainda guardam as pegadas dos Maï; as moitas de banana-brava espalhadas na mata são as antigas roças dos deuses, que comiam dessa planta antes de conhecer o milho. As plantas cultivadas e a arte de cozinhar os alimentos foram reveladas aos humanos e aos deuses por um pequeno pássaro vermelho da floresta.

Pajé Moinayärä (peye) em transe e o chocalho aray em cerimônia do cauim doce. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
Pajé Moinayärä (peye) em transe e o chocalho aray em cerimônia do cauim doce. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Bïde, os humanos, são chamados pelos Araweté de "os abandonados", os que foram deixados para trás pelos deuses. Tudo que há em nosso mundo do meio é o que foi abandonado; para os céus foram os maiores animais, as melhores plantas, a mais bela gente - pois os Maï são como a gente, porém mais altos, mais fortes e imponentes. Tudo no céu é feito de pedra, imperecível e perfeito: as casas, as panelas, os arcos, os machados. A pedra é, para os deuses, maleável como o barro para nós. Lá ninguém trabalha, pois o milho se planta sozinho, as ferramentas agrícolas operam por si mesmas. O mundo celeste é um mundo de caçadas, danças, festas constantes de cauim de milho; seus habitantes estão sempre esplendidamente pintados de jenipapo, adornados com penas de cotinga e arara, perfumados com a resina da árvore i d;iri'i (Trattinickia rhoifolia).

Mas os Maï são, acima de tudo, imunes à doença e à morte: eles levaram consigo a ciência da eterna juventude. O exílio dos deuses criou a condição de tudo que é terrestre: a submissão ao tempo, isto é, o envelhecimento e a morte. Mas, se partilhamos dessa comum condição mortal, distinguimo-nos dos demais habitantes da terra por termos um futuro. Os humanos são "aqueles que irão", que reencontrarão os Maï no céu, após a morte. A divisão entre o céu e a terra não é intransponível: os deuses falam com os homens, e os homens estarão um dia à altura dos deuses.

A morte

Pajé cantando em uma cauinagem. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982
Pajé cantando em uma cauinagem. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982

A relação entre a humanidade e os deuses, os Maï, é o eixo da religião araweté. Os humanos e os Maï são ligados por relações de afinidade - pois as almas dos mortos casam-se com os deuses - e por um sistema ritual de oferendas alimentares. Os Maï podem (e finalmente irão) aniquilar a terra, fazendo o céu desmoronar. Toda morte tem como causa final a vontade dos Maï, que são concebidos como, ao mesmo tempo, Araweté ideais e canibais perigosos. Entre as dezenas de espécies de Maï, cuja maioria possui nomes de animais, a mais importante são os Maï hete ("deuses verdadeiros"), que transformam as almas dos mortos em seres imortais, após uma operação canibal. Há ainda os Añi, seres selváticos e brutais que habitam a superfície terrestre, que invadem as aldeias e devem ser mortos pelos pajés.

E há o temido Iwikatihã (Senhor do Rio), um poderoso espírito subaquático que rapta as almas de mulheres e crianças.

Os peye (pajés ou xamãs) são os intermediários entre os humanos e a vasta população sobrenatural do cosmos. Sua atividade mais importante é a condução dos Maï e das almas dos mortos à terra, para participar dos banquetes cerimoniais. Esses banquetes cerimoniais são festas em que alimentos produzidos coletivamente são oferecidos aos visitantes celestes antes de serem consumidos pelos humanos. Os alimentos rituais mais importantes são: jabotis, mel, açaí, macacos guaribas, peixes e o mingau alcoólico (cauim) de milho. A festa do cauim é o clímax da vida ritual araweté, e combina simbolismos religiosos e guerreiros. O líder das danças e cantos que acompanham o consumo do cauim é idealmente um grande guerreiro, que aprendeu as canções da boca dos espíritos de inimigos mortos.  

Pajé cantando em uma cauinagem. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982
Pajé cantando em uma cauinagem. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982

O canto é o núcleo da vida cerimonial. A "música dos deuses" cantada pelos pajés e a "música dos inimigos" cantada pelos guerreiros são os dois únicos gêneros musicais araweté. Em ambas modalidades de canto, trata-se sempre de ouvir as palavras dos 'outros', deuses e inimigos, citadas através de fórmulas retóricas muito complexas.

Os mortos são enterrados em caminhos abandonados na floresta. A morte divide a pessoa em dois aspectos antagônicos: um espectro terrestre associado ao corpo e aos espíritos Añi, e uma alma ou princípio vital celeste associado à consciência e aos Maï. O espectro assombra os vivos enquanto o corpo se decompõe, até que retorna à aldeia natal do finado e ali desaparece. Uma morte provoca a imediata dispersão da população da aldeia na floresta, dispersão que dura o tempo da decomposição do cadáver. A alma celeste é morta e devorada pelos Maï ao chegar ao céu, sendo então ressuscitada mediante um banho mágico que a transforma em um ser divino e eternamente jovem. As almas dos mortos recentes vêm freqüentemente à terra nos cantos dos pajés, falar com os parentes e narrar as delícias do Além. Após duas gerações elas cessam seus passeios, pois ninguém mais na terra recorda-se delas. A condição de guerreiro é a única que torna desnecessária a transubstanciação canibal no céu; os matadores de inimigo, fundidos em espírito com suas vítimas, gozam de um estatuto póstumo especial.

Os Pajés

O pajé Kãyipayerä com o aray e um charuto (petï puku), instrumentos básicos do xamanismo, em cerimônia do cauim doce. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.
O pajé Kãyipayerä com o aray e um charuto (petï puku), instrumentos básicos do xamanismo, em cerimônia do cauim doce. Foto: Eduardo Viveiros de Castro, 1982.

Quem passar um tempo entre os Araweté não deixará de se surpreender com o contraste entre a vida diurna e noturna da aldeia. Durante o dia, 'nada acontece' - há, é claro, as caçadas e pescarias, as tumultuadas refeições coletivas, as intermináveis conversas nos pátios familiares ao cair da tarde, a eterna faina do algodão e do milho; mas tudo parece se fazer de um jeito descuidado, ao mesmo tempo errático e monótono, alegre e distraído. Toda noite, porém, madrugada adentro, ouve-se emergir do silêncio das casas um vozear alto, ora exaltado, ora melancólico, mas sempre austero, solene e às vezes, para ouvidos estrangeiros, algo sinistro. São os homens, os pajés cantando o Maï marakã, a música dos deuses. Certas noites, três ou quatro pajés cantam ao mesmo tempo, ou sucessivamente, cada um sua própria visão - pois tais cantares são a narrativa do Maï de d;ã, a visão dos deuses. Às vezes é apenas um: sempre começando por um trautear suave e sussurrado, vai erguendo progressivamente a voz, cuja articulação entrecortada se desenha contra o fundo chiante do chocalho aray, até atingir um patamar de altura e intensidade que se mantém por mais de uma hora, para ir então lentamente descaindo às primeiras luzes da aurora - a "hora em que a terra se desvela", como se diz em araweté - até retornar ao silêncio. Ocasionalmente (o que significa uma ou duas vezes por semana, para cada pajé em atividade), o clímax da canção-visão traz o pajé para fora de sua casa, até o pátio. Ali, dança curvado, com o charuto e o aray, batendo fortemente o pé direito no chão, ofegante, sempre cantando - é a descida à terra das divindades e das almas dos mortos, trazidas por ele, o pajé, de sua viagem ao mundo celeste.

Os Maï e os mortos são música, ou músicos: marakã me'e. Seu modo de manifestação essencial é o canto, e seu veículo é o peye, pajé. Um pajé é chamado Maï de ripã, "suporte das divindades", ou ha'o we moñîña, "cantador das almas". Não há iniciação ou "chamado" formais à pajelança. Certos sonhos, se freqüentes, podem indicar uma vocação de pajé, especialmente os sonhos com onças e com a "Coisa-Onça", um Maï bastante perigoso. Mas mais que alguém que sonha, um pajé é alguém que fuma: petî ã î, "não-comedor-de-tabaco", é o modo usual de se dizer que um homem não é pajé. O tabaco é o emblema, o instrumento de fabricação e de operação do pajé. O treinamento para pajé consiste em um longo ciclo de intoxicações por tabaco, até que o homem mo-kiyaha, "faça-se translúcido", e os deuses "cheguem" até ele.

O tabaco é onipresente na vida araweté - homens, mulheres e crianças fumam. Os charutos de 30 cm, feitos de folhas de tabaco secas ao fogo e enroladas em casca da árvore tauari, são uma coisa social por excelência. O primeiro gesto de recepção a um visitante é a oferta de uma baforada no charuto da casa, aceso expressamente para isso, e após uma refeição coletiva o charuto corre de mão em mão. Jamais se pode recusar um pedido de tabaco, e jamais se fuma sozinho (exceto durante a pajelança - mas aí se está a dividir o charuto com os deuses). Mas se todos fumam, apenas alguns homens são "comedores de fumo"- os pajés. A fumaça de tabaco é um dos principais instrumentos terapêuticos dos pajés: ela é soprada sobre picadas e machucaduras, e também serve para reanimar os desfalecidos. No céu, os Maï sopram fumo de tabaco sobre os mortos para revivê-los.

Ao lado do fumo, o emblema principal do pajé é o chocalho aray. Todo homem casado, como vimos, possui um aray. Ele pode ser usado por "não-comedores-de-tabaco" como instrumento para pequenas curas, e para acompanhar os cantos noturnos de homens que, mesmo sem serem considerados peye, vêem de vez em quando os Maï em sonho. Isso significa que todo homem adulto é um pouco pajé. Ser peye não é um papel social ou uma profissão, mas uma qualidade ou atributo de todo adulto, que pode ser mais ou menos desenvolvido. Alguns homens realizam tal potencial mais plenamente que outros, e são esses que são conhecidos como peye.

O aray é o instrumento transformador por excelência. "Dentro do aray" ou "por meio do aray" é a explicação lacônica e auto-evidente para qualquer indagação sobre como, onde e por que se realizam as operações de ressurreição e metamorfose narradas nos mitos, ou o consumo espiritual dos alimentos pelos Maï quando estes vêm à terra comer nos festins oferecidos pelos humanos, ou as operações terapêuticas de reassentamento da alma e fechamento do corpo executadas pelos pajés. O aray é o receptáculo de forças ou entidades espirituais: as almas perdidas de crianças e mulheres são trazidas de volta dentro do aray até a sua sede corporal, por ocasião do tratamento chamado imone, freqüentemente realizado pelos pajés.

Com tal equipamento - tabaco, chocalho -, o pajé araweté está capacitado a realizar diversas operações de prevenção e cura, que são semelhantes às terapêuticas típicas da América indígena: fumigação com tabaco; sopro resfriador; sucção de substâncias ou princípios patogênicos (empregada nas mordidas peçonhentas e na extração das flechas invisíveis que certos alimentos contêm); e as operações de fechamento do corpo e de recondução da alma. Os maiores pacientes dos pajés nessas duas últimas operações são as crianças pequenas e as mulheres: as primeiras porque ainda têm a alma mal-assentada e o corpo aberto; as segundas porque são o objeto principal da cobiça dos espíritos extratores de almas (vários espíritos terrestres têm este poder maligno) e dos Maï.

O pajé, este comedor de fumo e "senhor do aray" (outro modo de se o designar), é um suporte dos Maï, as divindades que cantam por sua boca. Cantar a "música dos deuses" é a atividade mais freqüente dos pajés, independendo de situações de crise ou de doença. Não há homem adulto que não tenha cantado ao menos uma vez na vida; mas são peye apenas aqueles que costumam cantar quase toda noite.

A música dos deuses é a área mais complexa da cultura araweté. Única fonte de informação sobre o estado atual do cosmos e a situação dos mortos no céu, ela é o rito central da vida do grupo. "O pajé é como um rádio", os Araweté costumavam me explicar. Com isto estão dizendo que ele é apenas um veículo, isto é, que o sujeito da voz que canta está alhures, não dentro do pajé. O pajé não incorpora as divindades e mortos, ele canta-conta o que ouve destes. Um pajé encena ou representa os deuses e os mortos, mas não os encarna: a pajelança araweté não é uma possessão. Um pajé tem consciência do que cantou durante seu 'transe', e sabe o que se passa à sua volta enquanto está a cantar.

Tipicamente, há três posições enunciativas na música dos deuses: um morto, os Maï, o pajé. O morto é o principal enunciador, transmitindo ao pajé o que disseram os Maï. Mas o que os Maï disseram é quase sempre algo dirigido ao morto ou ao pajé, e referente ao morto, ao pajé ou a eles mesmos. A forma normal da frase é assim uma construção polifônica complexa: o pajé canta algo dito pelos deuses, citado pelo morto, referente a ele pajé, por exemplo. Há construções mais simples, em que o pajé canta o que conversam os deuses a respeito dos humanos em geral, e outras mais intrincadas, onde um morto cita a outro o que uma divindade está dizendo sobre um vivente (que não o pajé) etc.

As músicas dos deuses nada têm de sagradas ou esotéricas. Após terem sido cantadas por um pajé, podem ser repetidas por qualquer pessoa, e muitas vezes viram sucessos populares. Só quem não pode repetir um canto é, precisamente, o pajé que o cantou pela primeira e única vez.


Outras leituras

Os Araweté e o Plano Emergencial, por Guilherme Orlandini Heurich, pesquisador do Museu Nacional/UFRJ.


Fontes de informação

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  • Araweté, povo do Ipixuna. Dir.: Murilo Santos. Vídeo Cor, VHS, 30 min, 1993. Prod.: Cedi/PIB