From Indigenous Peoples in Brazil

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Avá-canoeiros dão mostra de resistência cultural

09/07/2001

Autor: Marília Assunção

Fonte: O Popular - Goiânia - GO



Seis últimos membros da tribo construíram cabana e abandonaram casas de alvenaria

Tribo reclama que projetos apresentados por Furnas, quando da construção da Usina de Serra da Mesa ainda não saíram do pape

Dezoito anos depois do primeiro contato com indigenistas, os índios avá-canoeiros de Minaçu dão uma surpreendente demonstração de resistência cultural. Mesmo sem que Furnas Centrais Elétricas cumpra alguns dos seus principais compromissos, feitos há nove anos – com a educação das crianças, o incentivo à unificação e ao crescimento do grupo –, os seis últimos avás ignoraram a influência branca, abandonaram as cabanas de alvenaria feitas para eles e se mudaram para um dos pontos mais altos e belos da reserva. Isso, entretanto, sem afastar a revolta pela demora em educar as crianças Trumak, de 14 anos, e Putdjawa, 12. A transferência foi silenciosa e começou há cerca de um ano. A nova moradia fica distante das casas mais de 3 quilômetros de caminhada serra acima. A subida é ofegante para quem não tem o preparo físico deles, que sobem desenvoltos e céleres, mesmo carregando coisas pesadas. A cabana foi construída em um ponto alto, com vista para a Serra do Retrato, do outro lado do Rio Tocantins e principal referência geográfica dentro da Reserva Avá-Canoeiro, de 38 mil hectares. O ponto escolhido tem significado especial: É bonito. Vê longe as serras... Vê a estrada..., aponta Iawi, justificando a escolha que parece ter comandado e agradado especialmente aos adultos do grupo. Ele é o homem mais velho, que divide a liderança do grupo com a primeira mulher, Matcha. Iawi agora se desdobra, com o filho Trumak, em uma engenhoca bolada por ele próprio para levar água até perto da cabana. Com uma picareta e mangueiras solicitadas à Fundação Nacional do Índio (Funai), eles já fizeram a água subir de uma mina cristalina por um trecho e agora cavam valas para cobrir a mangueira por mais de um quilômetro e meio, evitando que rache com o sol ou seja destruída durante uma queimada. Mesmo com pouca água perto da cabana, fruteiras já brotam no chão. Na cabana, que mede cerca de 10 metros de extensão por 5 de largura, seis redes se espalham. Nos cantos, convivem harmoniosamente vários periquitos, papagaios e pombos do mato, além de dois caburés, dois quenquéns, um jacu, uma juriti, duas ararinhas, uma coruja e um gavião. Ao lado, em outra cabana, menor, estão amarrados pelos pés vários galos e galinhas, para evitar que um lobo volte a comer a aves, como já ocorreu. Empresa assumiu compromissos Para formar a represa da Usina de Serra da Mesa, Furnas promoveu uma das maiores inundações de área do País, afetando as terras ocupadas pelos avá-canoeiros da região. Por isso a companhia teve de obter aprovação federal e no Congresso Nacional, precisando se comprometer com a reserva. Desde 1992 a direção da empresa, hoje em mãos privadas, assumiu os seguintes subprojetos para beneficiar os avás de Minaçu: saúde, educação, auto-sustentação, documentação e memória, unificação e crescimento, obras e equipamentos. Tal como o programa de educação, denuncia o chefe do posto, o de saúde também nunca saiu. Se ele existisse, provavelmente a catarata de Matcha teria sido controlada a tempo, afirma, lembrando que levou a mulher de caminhonete, gemendo de dor até um hospital. O mesmo exemplo ele indica para recentes problemas com tratamento dentário do grupo que não teve qualquer atenção. A reserva até hoje sequer foi cercada por Furnas e, segundo Sanches, por isso se tornou comum ver lá dentro gado dos antigos posseiros, que já nem estão mais na reserva – apenas quatro resistem por meio de liminares –, mas que vivem na vizinhança. Há cerca de um mês uma caminhonete da Funai, destinada à segurança da reserva, está parada em uma oficina mecânica de Goiânia. Sanches explica que Furnas assumiu o compromisso de adquirir e manter duas caminhonetes. Agora o carro de segurança está parado por falta de pagamento, no valor de R$ 6 mil, disse. Processo de mudança foi espontâneo São muitas as hipóteses para a mudança do grupo avá-canoeiro das cabanas construídas por Furnas Centrais Elétricas para o rancho no alto da serra. O chefe do posto da Funai na reserva, Walter Sanches afirma que o processo foi espontâneo e que ele próprio foi impedido de visitar a cabana enquanto ela não estivesse pronta. Era como uma surpresa que, aliás, dispensava palpites alheios à idéia deles, afirma. Sanches ficou entusiasmado com a transferência. Quando alguns podiam esperar muito mais que eles fossem atraídos para a cidade, para Minaçu, houve esse sopro de autonomia, declarou. Para trás, o grupo deixou coisas trancadas nas quatro confortáveis cabanas de alvenaria. De vez em quando eles visitam o lugar, vigiado por um funcionário da Funai que mora na reserva, mas ficam poucas horas por lá, marcando o retorno pela posição do sol. Uma das hipóteses para a mudança, contudo, pode ter sido o cansaço de esperar nas cabanas de alvenaria pelas aulas das crianças. O local do posto, todo projetado para ser agradável ao grupo, entretanto, podia ser visto também como uma porta aberta para os meninos serem atraídos para a cidade, apesar da proteção da Funai no local. Não se impediria algo assim, confirma Sanches. Os dois garotos avás nunca tiveram professor ou sala de aula, fora algumas experiências de pesquisadores que foram ao local com a autorização da Funai. Trumak e Putdjawa falam magoados sobre o assunto. Queria aprender. Queria ler direito, conta a meiga Putdjawa. Sei ler e escrever só um pouquinho. Lá na outra casa dá para ter sala e professor para aprender mais, sugere o tímido Trumak. Durante muito tempo acreditei que essa demora fosse fruto da burocracia. Hoje acho que Furnas não tem vontade política para investir na educação, saúde, ou auto-sustentação dos avás de Minaçu, acusa Walter Sanches. Ele receia que em breve as crianças não se adaptem mais ao ensino, por melhor projetado psicopedagogicamente para elas que ele possa ser. Hoje, Trumak e Putdjawa rabiscam papéis, imitando letras invertidas, escrevendo bilhetes por símbolos para lembrar o chefe do posto de algumas necessidades do grupo, mas quando o assunto é estudar, ele conta indignado que, às vezes, escuta Trumak dizer melancolicamente: É mentira sua, não vai ter nunca. Usina de Cana Brava ameaça reserva Os avá-canoeiros de Minaçu parecem predestinados à interferência de usinas hidrelétricas. Depois de Serra da Mesa, agora é a Usina de Cana Brava que pode ter alguma influência sobre a reserva. A situação ainda é de incerteza porque não foi feito estudo dentro da reserva, embora Sanches afirme que existam placas indicando área de risco nas proximidades de algumas barreiras fiscais da Funai, dentro da reserva. Já se sabe que ela trará alargamento da calha do Rio Tocantins ao longo de 30 quilômetros em que ele corta a reserva, afirma o chefe do posto indígena. Informado de que o procurador da República em Goiás, Carlos Vilhena tinha solicitado, em maio, informações mais detalhadas à responsável pelo empreendimento – Gerasul/Tractebel –, ele também apresentou justificativas da Funai para pedir que o licenciamento seja submetido à aprovação do Congresso Nacional, tal como ocorreu com Serra da Mesa. Ela vai abrir a calha, destruir a mata ciliar e possivelmente inundar parte do território indígena sem que se saiba sequer a extensão, já que nunca foi solicitado ou feito estudo, critica Sanches. O presidente da Cana Brava Empreendimentos, Victor Paranhos, nega, contudo, que vá ocorrer alagamento na reserva. Para atender à solicitação do procurador da República, ele vai apresentar essa semana dois relatórios de empresas diferentes provando que a reserva não será atingida. Ele sustentou ainda que já obteve licenciamento ambiental da Agência Goiana de Meio Ambiente. Isso significa que não se compreende área da reserva, que exigiria avaliação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e do Congresso Nacional, concluiu. Relatório pede cumprimento de acordo O presente relatório sugere que o acordo que Furnas fez com a Funai e o Congresso Nacional, que foi apresentado através da sua ‘peça antropológica’, precisa ser ativado com a devida seriedade. Que essa hidrelétrica esteja hoje em mãos particulares não exime Furnas de seu compromisso original. A sobrevivência do povo Avá-Canoeiro encontra-se à mercê do povo brasileiro. Se esse povo não estiver à altura do seu tempo, os avás tornar-se-ão mais um débito moral e humano a ser computado na história do Brasil. É urgente, portanto, que se tome as devidas providências por quem de direito, por quem de dever, ou por quem de consciência. As afirmações são do antropólogo Márcio P. Gomes, que esteve na reserva de Minaçu no final do ano passado. Curiosamente, Márcio Gomes é o autor da peça antropológica encomendada por Furnas e apresentada ao Congresso Nacional em forma de requerimento para o obter o licenciamento da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, quando a empresa se comprometeu com os programas para os Avá-Canoeiros. PrejuízosA conclusão do relatório de campo das pesquisadoras da Universidade Católica de Goiás, Dulce Madalena Rios Pedroso e Celiomar Rodrigues Silva, também não deixa dúvida quanto aos prejuízos com a demora de Furnas. Apesar de citar a colaboração da companhia em alguns projetos elas afirmam: Ela tem protelado ao máximo em assumir os projetos de educação e unificação do povo avá, fundamentais para a sobrevivência e futura autonomia dele. Walter Sanches afirma que até o ano passado o encaminhamento do programa de educação para as crianças estava na mão de uma equipe de Furnas, acompanhada de antropólogos da companhia. A gente dizia que ia fazer, mas eles insistiam que era com eles, até que a gente se cansou e, para deslanchar a coisa, indicamos quem poderia assumir o projeto, declara. A chefe do Departamento de Meio Ambiente de Furnas – o responsável pela reserva indígena –, Norma Vilela, nega que Furnas tenha problemas de caixa para garantir os convênios firmados em benefício dos avá-canoeiros. Não temos problemas com recursos. Essa verba está carimbada, disse ela a O POPULAR por telefone, na quinta-feira. Contudo, Norma afirmou que as dificuldades são contratuais. Ela ainda negou que esteja faltando apoio emergencial à Funai em Minaçu, tais como gasolina ou remédios. O último convênio, que também está com orçamento atrasado, para a manutenção e vigilância do posto indígena, que era com o Centro de Trabalho Indigenista (CIT), foi renovado agora, por indicação da Funai, com a Fundação de Apoio à Pesquisa da Universidade Federal de Goiás (Funape-UFG). Mas esse recurso deve ser liberado em aproximadamente 15 dias, afirmou ela. Já o programa de educação das crianças, que também ficará a cargo da Funape-UFG, para tristeza de Trumak e Putdjawa, não tem data para sair. É ruim filho sem estudar, tá demorando, disse Iawi, pai dos dois, estalando os dedos para simbolizar o tamanho da demora. O programa está no Departamento Jurídico para um parecer e terá tramitação normal, afirmou Norma Vilela, sem precisar quanto tempo isso vai demandar. É importante dizer que em momento algum Furnas se negou a cumprir o acordo, isso é público e notório, declarou Norma. A chefe atribuiu à Funai a demora em indicar qual organização tocaria o programa, embora garanta que tenha boa relação com o órgão em Brasília desde o início das negociações, em 1986. Depois de esperar anos, indicamos a Funape no início do ano passado. Já se passou mais um ano e até hoje nada, retrucou Walter Sanches. Os avá-canoeiros de Minaçu hoje Matcha – aproximadamente 66 anos, mais velha, casou com Iawi após ter perdido o marido e filhos durante o massacre que, pelos seus relatos, pode ter dizimado cerca de 150 avá-canoeiros provavelmente na região da Mata do Café, onde também andaram. É a memória da aldeia, fala quase somente o dialeto, mas entende bem os brancos. Nakwatcha – cerca de 60 anos. É outra esposa de Iawi. É a grande caçadora da aldeia, desenvolta porém de pouca conversa, pronuncia todas as palavras na língua avá e de forma rápida. Costuma levar todas as aves que captura nas arapucas para dentro da cabana. Os filhos morreram durante o massacre. Iawi – aproximadamente 39 anos. É o único homem adulto do grupo. Tem muita iniciativa, ânimo e criatividade para o trabalho, além de bom humor. Adora música e temperos na comida. Foi ele que ensinou todas as mulheres do grupo a cozinhar. Dos adultos, é quem melhor fala e entende o português. Tuia – aproximadamente 30 anos. Foi a única filha de Matcha que sobreviveu. Fugiu com a mãe quando criança. Hoje é a esposa mais nova de Iawi e a única a ter filhos com ele – Fio meu, fia mia (sic), aponta para os meninos, cheia de orgulho. É alegre. Toca, encantada, em todos, mas fala quase somente o dialeto. Gosta de costurar e tece os próprios tecidos retirando o algodão dos caroços com um bilro. Trumak – 14 anos. Seu maior desejo é estudar na própria reserva e um dia poder dirigir uma Toyota. Muito tímido, adora passar o tempo construindo miniaturas de aviões, feitas de sabugo de milho. Já viajou de avião e quando viu os tapirapés dirigindo caminhonetes na reserva do Mato Grosso, não acreditou nos próprios olhos: Um dia também vou poder?, saiu perguntando. Putdjawa – 12 anos. Muito meiga, depois que toma mais intimidade com estranhos, principalmente mulheres, passa a segurar nas pontas da roupa da pessoa e se esconder atrás dela. Corre ligeiro pelo mato e desaparece de uma vez quando faz uma arte barulhenta. Carrega água por longas distâncias para abastecer o grupo. Adora banhos de córrego.
 

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